quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada



exta-feira, 10 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (i)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Preâmbulo liceal

Natural de Lisboa, Jorge Pereira Jardim chegou a ser denominado o “Lawrence de África”. De facto, aprendeu, durante 22 anos, a “sentir e pensar Moçambique” segundo as mais variadas facetas da sua admirável personalidade, entre as quais se contam a de agrónomo, soldado e diplomata, assim como a de jornalista, piloto aviador e pára-quedista. É hoje, pelo menos para as novas gerações, uma figura praticamente desconhecida em Portugal, quanto mais não seja por ter denunciado em Moçambique, Terra Queimada, os aspectos e os acontecimentos mais sinistros que deram lugar, por via do “processo revolucionário” do pós-25 de Abril de 74, à tão propalada e propagandeada descolonização “exemplar”.

Não admira, pois, que na altura tenha sido apresentado na imprensa nacional e internacional como um homem altamente perigoso, tendo inclusivamente, qual animal a abater, sido perseguido em Portugal sob as instruções de Costa Gomes, mais particularmente em Lisboa, de onde, refugiado na embaixada do Malawi, ensaia uma das mais espectaculares fugas cujo relato, feito pelo próprio, o Liceu não deixará, certamente, de assinalar e dar a conhecer.

Além disso, Jorge Jardim foi também colaborador íntimo de Salazar, mantendo, com aprovação e conhecimento de causa do estadista português, cordiais relações no contexto da África Austral, nomeadamente com o presidente Hastings Kamuzu Banda, do Malawi (1966-1994), e com Kenneth David Kaunda, primeiro presidente da Zâmbia (1964-1991). Não deixa, portanto, de ser pertinente e altamente esclarecedora a liberdade de movimentos com que Jorge Jardim actuaria e realizaria a sua missão no sentido de encontrar uma solução política para a província de Moçambique, conforme, aliás, testemunha o Programa de Lusaka (nascido a 12 de Setembro de 1973) que Jardim tão cuidadosamente tratara de conceber em colaboração com os presidentes da Zâmbia e do Malawi. O autor de Moçambique, Terra Queimada, desconstrói assim, por inteiro, a tese do imobilismo que os historiadores de ontem e de hoje vêm falsamente construindo em torno da política nacional e ultramarina de Oliveira Salazar.

De facto, quem deseje compreender o plano premeditado de feição marxista e revolucionária que incendiou o Ultramar português, deve, antes de mais, começar por valorizar os testemunhos directos e de boa-fé de todos os que procuraram, sincera e patrioticamente, encontrar os meios de salvaguardar a Comunidade Lusíada firmada na unidade supra-nacional dos povos de língua e de cultura portuguesa. Ora, Jorge Jardim foi um desses patriotas cuja missão de outrora esclarece e contribui muito mais para a compreensão de um ciclo histórico do que as dezenas ou as centenas de teses universitárias já ideologicamente condicionadas pela historiografia oficial. E tanto assim é que os livros, especialmente os que revelem conteúdo idêntico ao de Jorge Jardim, já praticamente não se encontram à venda nos supermercados livreiros, como seria de esperar.

Mas há, felizmente, quem ainda os tenha. A verdade, contudo, não tem pressa, se bem que já tarde em vir. Em todo o caso, contribuiremos aqui com a divulgação de algumas passagens de Moçambique, Terra Queimada, título, aliás, que desmente logo à partida não ter sido a revolução comunista de 74 tão incruenta e sanguinária como políticos, jornalistas e universitários pretendem fazer crer perante um povo politicamente refém do socialismo triunfante.

Miguel Bruno Duarte


As todos os que morreram por Moçambique

A queimada africana é imparável e assustadora.

Começa no capim seco que arde em altas labaredas. Corre veloz quando o vento sopra em seu favor. Domina os tandos e assalta as florestas, galgando a encosta das montanhas.

A queimada, esse festival africano do fogo, prolonga-se durante dias e chega a durar semanas.

Vista de longe, pela noite, engana facilmente os olhos pouco afeitos em reconhecê-la. Toma contornos aparentes de grande cidade e parece pontuar sobre a terra a presença civilizadora do homem.

Na verdade, porém, é quase sempre consequência de descuido ou fruto de hábitos ancestrais mantidos em tradição milenária.

É bela na sua corrida infatigável. É terrível na força que desencadeia.

As árvores torcem-se, os animais fogem quanto podem e o fumo eleva-se em barreira que tolda a vista e sufoca a garganta.

Mas por muito que alastre e por mais alto que se erga, acaba sempre por extinguir-se. Os homens é que raro sabem como dominá-la.

Só os mais velhos, donos da Ciência aprendida no mato, a encaram sem temor. Esses sabem que a queimada tem força que não dura. Brilha e queima, mas apaga-se.

Depois, surgem mais fecundas as machambas naquela terra que oculta tesouros. O capim tenro nasce viçoso quando as cinzas se dispersam ao primeiro golpe de vento e regressa nova vida no ciclo infindável que prossegue. Até as árvores rejuvenescem libertas dos ramos secos e inúteis que o fogo carbonizou.

É assim. Foi sempre assim. E continuará a ser sempre assim a grande queimada africana.

Só há perigo e se joga o drama, quando homens que vêm de longe (e por isso se consideram mais civilizados) ateiam o fogo para desvendarem a selva que desconhecem ou para se protegerem dos medos que os assaltam.

No reflectir nocturno dos olhos da gazela julgam adivinhar a proximidade agressiva do leão. Fazem crepitar o lume, que não dominam, e depois assustam-se quando a África lhes responde com a força mágica que desencadearam.

Então, até a terra arde.

Julgando tudo saberem, só por nada terem aprendido, esses homens sem cor assistem impotentes à destruição que provocaram. Não acertam em entender de que lado está o vento e tudo tentam explicar, desculpando-se confusamente para fugirem apressados do braseiro.

Atrás deles deixam a terra queimada e abandonam as vítimas inocentes que a surpresa apanhou desprevenidas.

Essa grande queimada, feita fora do tempo, nada tem de africana mesmo quando em África a ateiam. Dessa, até os sábios velhos do mato têm medo. Essa queima as raízes, faz arder a terra e não permite que o capim espontâneo volte a brotar.

Quem ali viveu intensamente longos anos, a ali deixou a alma presa ao feitiço que inegavelmente existe, não pode esquecer a imagem dessa grande queimada de descolonização que não foi mais do que fogo posto por mãos ignorantes e criminosas. Mãos de gente que não pertencia à África.

Mas as dores tiveram de ser sofridas, sem culpa, pelos africanos de todas as raças atingidas pela mais monstruosa traição que naquelas terras se conheceu.

Essa queimada, desencadeada por incendiários, também acabará por apagar-se.

Na história que os velhos irão repetir, em torno da fogueira que em cada noite se renova, ficará apenas a lembrança dessa horrível tragédia.

Lição para todos à custa do sofrimento de tantos. Lição para os jovens aprenderem e para os filhos deles ensinarem.

Os velhos, os jovens e os filhos que haverão de nascer, têm de recordar (para que isso não possa voltar a acontecer) que os homens que atiçaram essa queimada não tinham cor que os distinguisse. Mas sempre repetirão que não eram homens de África.

Dispersas as cinzas, reparadas as destruições e revolvida a terra queimada, nela voltará a reverdecer a vida que nem os séculos puderam abafar. Os homens serão capazes de encontrar a felicidade que ambicionavam. Em novos horizontes, em novas fórmulas de convívio e sempre no autêntico estilo africano. Mesmo sobre as ruínas. Mesmo sobre a terra queimada.

O chão fecundo, as florestas centenárias, os rios sem margens e o oceano de mil cores esperarão amorosamente as gentes que se foram para que de novo venham unir-se às gentes que ficaram.

E todos juntos reconstruirão a África Nova.

Creio que assim haverá de ser, sem que ninguém atente na cor da pele para melhor se ver a cor da alma.

Em África tudo tem cor mas nada tem uma só cor. Nem os rios, nem as montanhas, nem o mar, nem os animais da selva, nem as terras e nem os homens.

Só o céu conserva sempre o mesmo azul ainda quando nuvens passageiras o ocultem.

Para esse insondável infinito se erguem os olhos esperançados, buscando nele alívio para o drama deixado por homens que de África nada sabiam.

Homens que fizeram de Moçambique a terra queimada que tardará anos em voltar a ser fecunda.

Homens que a África terá de esquecer para, depois, lhes poder perdoar.


Todos têm o direito de saber

Não foram poucas as vezes em que, ao longo dos anos, muitos insistiram comigo para que publicasse as minhas "memórias".

Penso que tais solicitações, amigas ou curiosas, resultavam, sobretudo, do conhecimento impreciso sobre missões que desempenhei com certa auréola de aventureirismo triunfante.

Nunca me aprestei a satisfazer aquele interesse que tinha de aceitar ser justificado pelas referências surgidas quanto à minha presença nos acontecimentos do Congo (hoje Zaire) em 1959 e 1960, à participação que tive na guerra de Angola, às deslocações a Goa antes e depois da ocupação indiana, às tentativas de aproximação com Moscovo e Peking, à intervenção activa nas operações em Moçambique, à ligação com os acontecimentos decorrentes da declaração da independência rodesiana (com as minhas qualificadas visitas a Ian Smith, Verwoerd e Vorster), aos contactos de alto nível com o Malawi, a Zâmbia e outros países africanos, bem como aos esforços realizados para entravar, ou combater, a agressividade da Tanzânia.

Conhecia-se, por outro lado, a minha íntima relação com o Presidente Salazar que me confiara tarefas melindrosas e supunha-se a existência de "segredos de Estado" cuidadosamente protegidos, em que me pertenceria a aliciante missão de "agente especial".

Furtei-me sempre a divulgar as minhas recordações e consegui, mesmo, iludir a insistência incómoda dos meios de informação internacionais que me dispensavam interesse partilhado por alguns orgãos da imprensa portuguesa.

(...) Ocorreram entretanto, acontecimentos dramáticos na vida nacional que me forçaram a rever aquela firme determinação que tinha mantido contra todas as solicitações.

Por tal forma as realidades têm aparecido distorcidas, e de tal modo tem alastrado a poluição informativa, que entendi ser menos próprio conservar silêncio só pela comodidade de não provocar novas reacções por parte daqueles para quem a revelação da verdade possa tornar-se desagradável, acrescendo desse modo os riscos que tenho tido de enfrentar.

Aconteceu, ainda, que as poucas tentativas que realizei para repor a exactidão dos factos depararam com estranha muralha de silêncio na "livre" imprensa portuguesa das mais diversas tendências, para já não falar na comprometida indiferença dos departamentos oficiais.

Confrontei, pois, em sério exame de consciência, a admissível obrigação de guardar segredo daquilo que conheço, com o dever moral, imperioso, de revelar o que a maioria ainda hoje ignora e todos têm, hoje, o direito de saber.

Feita a minha opção, com a serenidade que tenho conseguido manter nestes dois anos em que tantas perseguições sofri, não me foi fácil estabelecer critérios quanto à forma de apresentar mais convenientemente os assuntos.

Nunca pensei ser tão absorvente e tão moroso, o trabalho de ordenar, seleccionar e utilizar os papéis acumulados em tantos anos. Tive mesmo de me isolar em lugar tranquilo para conseguir levar a cabo essa tarefa e para que o resultado pudesse ser honesto e apresentar alguma utilidade.

No meio de tudo isto até aconteceu que vulgares ladrões me roubaram, por duas vezes, documentos e rascunhos, tentando a habitual "chantage" acompanhada das clássicas ameaças. Claro que se acobertaram sob a capa de intenções políticas e certamente que não foi a primeira vez, como também não será a última, em que a política serviu de capa a ladrões.

Mas quem não teve medo das emboscadas no mato, não se iria impressionar com a hipótese de enfrentar gatunos na volta de qualquer esquina.

O certo é que em nada me prejudicaram porque os documentos já estavam prudentemente microfilmados, a bom recato, e, por isso, posso agora reproduzi-los. Quanto aos "segredos" que pensassem descobrir irão encontrá-los, divulgados, nos livros que publicarei.

Na imagem: Jorge Jardim

Refiro este incidente porque ele mais me determinou a revelar a verdade que, afinal, parece serem muitos a recear. Não tive dificuldades em identificar a origem do roubo e isso veio libertar-me de algumas limitações que sobre mim poderiam pesar.

Na impossibilidade de tudo condensar num único livro, e de neste seguir ordem cronológica em que os assuntos se encavalitariam, preferi agrupar estas revelações numa curta série editorial em que os problemas possam individualizar-se melhor, com mais claro seguimento.

Dei compreensível prioridade ao caso da descolonização de Moçambique a que este primeiro livro é dedicado.

(...) Neste quadro se inserem muitos aspectos inéditos da vida nacional em que projecta a figura de estadista de Salazar que a mediocridade e o ódio, tentam hoje denegrir. A sua esclarecida visão dos problemas e a capacidade para se adaptar às realidades, creio que ficarão patentes, destruindo a tese do imobilismo atrofiador que em seu torno se procurou tecer.

Admito que nessa análise me possa influenciar a devotada admiração que a Salazar dediquei e se forjou ao longo de mais de vinte anos de estreita colaboração de que nasceu uma íntima amizade. Mas os documentos e testemunhos que possuo, julgo serem objectivamente irrespondíveis e reflectem a sua verdadeira imagem humana e política.

Tudo será publicado a seu tempo. E sem tardança.

Para já, ocupar-me-ei, neste livro, do triste e covarde abandono de Moçambique (in Moçambique, Terra Queimada, Editorial Intervenção, 1976, pp. 11-20).

Continua

 

domingo, 12 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (ii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Lago Niassa

Umboni

Ainda não passaram três anos!

E como tantas esperanças derruíram!

Em 14 de Setembro de 1973 encontrei-me com o Presidente Banda, do Malawi. Não se tratava, porém, de mais uma entrevista como tantas outras tivéramos e em que cimentáramos mútua compreensão e amizade.

Desta vez parecia estar, finalmente, à vista, a possibilidade de se resolverem os problemas de Moçambique terminando uma guerra para a qual nenhum dos lados podia pretender impor uma solução militar.

Nesse dia, o Dr. Banda recebeu-me em Kazungu, sua terra natal, e acompanhava-me Jaime Pombeiro de Sousa que sempre estivera comigo nestes anos de esforços persistentes.

Havíamos regressado de Lusaka, depois de intensas jornadas de trabalho na capital da Zâmbia, em íntimo contacto com o Presidente Kaunda. A coincidência de posições tinha sido completa.

Passáramos a fronteira da simples esperança.

Estava definido e escrito, sob a responsabilidade do Governo da Zâmbia, o programa a seguir para se alcançar a paz e se negociarem as condições de uma descolonização honrosa que permitiria aos moçambicanos ascederem à independência em dignidade, harmonia, justiça e progresso.

Também estavam fixados e escritos, os princípios que esse programa haveria de seguir com expresso respeito pela posição de Portugal, cuja obra meritória se reconhecia, e garantindo-se, em linguagem clara que o novo Moçambique não se converteria em satélite africano das potências comunistas.

Na imagem: Foz do Iguaçu (Brasil)

Ficara sublinhado o carácter autenticamente multi-racial da sociedade moçambicana, como criação de espírito ímpar evidenciado pelos portugueses no convívio com povos a quem haviam dado a unidade e a quem haviam oferecido o contributo da sua cultura e forma de ser. Esquematizara-se a majestosa Comunidade Lusíada na qual o Brasil seria solicitado a assumir participação desejada.

O Dr. Kamuzu Banda comentava com entusiasmo as perspectivas que se anteviam para as metas ambicionadas, coroando o trabalho iniciado há tantos anos.

Compreendia-se que assim fosse porque, em tudo, muito se ficava devendo à posição esclarecida do estadista africano que soubera combinar os anseios do seu indesmentível nacionalismo com o conhecimento das realidades que atentamente acompanhava.

Quando um dia se vier a fazer a história objectiva da descolonização da África Austral terá de reconhecer-se quanto representou, nessa etapa política, a equilibrada intervenção do Ngwazi Dr. Kamuzu Banda.

Aliás, não havia sido menos patente a emoção exteriozidada pelo Dr. Kenneth Kaunda quando, na sua "State House" de Lusaka, analisáramos, durante quase três horas, os resultados do nosso comum exame de problemas. Com isso, concluímos dois esgotantes meses de contactos em que lhe pertencia muito do auspicioso trabalho produzido, sem horas de descanso e com prioridade declarada sobre tudo o mais.

A certeza de que a Tanzânia apoiava o que entendêramos ser uma plataforma aceitável e de que a "Frelimo" participava nos nossos comuns propósitos foi-nos dada (e sempre confirmada) pelo Presidente da Zâmbia.

O "Programa de Lusaka" nascera a 12 de Setembro de 1973 por iniciativa do Dr. Kaunda e como esperança de paz honrosa.

Para além do mais tinha o raro mérito de não ser susceptível de interpretações divergentes. Nisso, ao menos, podíamos orgulhar-nos do trabalho realizado para ser recebido com entusiasmo por todos os moçambicanos e aceite com dignidade por todos os portugueses.

Faltava obter o reconhecimento do Governo de Lisboa ou, na falta disso, mobilizar o necessário para que tivesse de concordar com a solução que arquitectáramos.

Pertencia-me levar a cabo essa missão. Para isso, tudo viemos a discutir minuciosamente.

No apoio do Presidente Banda e do Presidente Kaunda se alicerçava todo este travejamento político.

Daí, aquele encontro em Kazungu depois das entrevistas de Lusaka.

Ainda não passaram três anos!

Rodou o tempo e muito de imprevisto aconteceu.

Em Junho de 1975 nascia a República Popular de Moçambique.

Tudo tão diferente do que se havia programado!

Sem consulta ao povo, sem apoio popular autorizado e sem mesmo as gentes se poderem pronunciar, proclamou-se um estado marxista de inspiração soviética. As poucas dúvidas que pudessem subsistir nos textos legais foram logo supridas pelos dizeres dos discursos dos responsáveis e pelas posições que têm vindo a assumir.

Assistiu-se ao insulto aberto à presença portuguesa de cinco séculos.

Apearam-se estátuas que pertenciam ao património histórico de Moçambique e mudaram-se, no mais afrontoso ridículo, nomes que tinham arreigada tradição.

Desprezou-se a Comunidade Lusíada, em obediência a novas servidões. Provocou-se, sistematicamente, o êxodo de dezenas de milhar de pessoas, no mais exacerbado racismo e sem atender a que a maioria delas era genuinamente moçambicana. Destruiu-se a economia do país, com a saída dos melhores valores profissionais e com imposição de estruturas marxistas inadaptáveis às tradições tribais. A fome alastra e o desemprego cresce. Montou-se a mais severa repressão policial sem respeito pelos mínimos direitos individuais, reduzindo ao silêncio consternado milhões de pessoas que até têm medo de pensar. Eliminaram-se, raptaram-se ou torturaram-se quase todos os elementos politicamente válidos. Os que não conseguiram exilar-se tiveram, para sobreviver, que realizar confissões públicas sob a implacável ameaça dos seus algozes.

Tudo isto se passou sob a criminosa indiferença, ou mesmo cumplicidade, do general Costa Gomes. Esse Presidente da República que o povo português não escolheu, aviltou-se, ainda mais, ao enviar a Moçambique um primeiro-ministro que se humilhou a pedir perdão para um passado de que tínhamos sobradas razões de orgulho e ouvíramos elogiar a estadistas negros qualificados.

As festivas rajadas das metralhadoras dos guerrilheiros tudo abafaram, nessas celebrações da independência, como se não tivesse chegado a hora de se calarem as armas.

Até os fiéis aliados chineses foram surpreendentemente traídos pela minoria soviética que se apoderou do contrôle da "Frelimo".

Os moçambicanos deixaram de ser irmãos para passarema a ser, apenas, camaradas.

Aconteceu isto há menos de um ano!

Como foi possível que tudo se subvertesse?

Como aconteceu que um programa de dignidade e de respeito pelos valores permanentes, fosse substituído em menos de dois anos pelo abandono criminoso?

Porque é que Moçambique não foi o que poderia ter sido?

Porque é que teve de ser tão diferente e tão pior?

Julgo estar em posição de responder e de o poder fazer com apoio em documentos e testemunho incontestáveis.

Por isso me decido a divulgar estas páginas dolorosas.

Mantive-me sempre fiel à palavra dada em Lusaka, em Setembro de 1973.

Vez alguma faltei ao compromisso de honra assumido.

Aceitei e defendi, a participação dominante da "Frelimo" na estruturação política de Moçambique. Por isso defendi, ainda, a negociação directa com a "Frelimo" para se estabelecer a paz.

Fiz isso antes do "25 de Abril" e mantive depois a mesma posição, até ao extremo limite possível. Sei que, por o fazer, fui mesmo chamado de traidor.

Só acontece que aqueles que de tal me acusam nunca partilharam, em Moçambique, dos riscos de guerra que eu aceitei e não têm no corpo as marcas de soldado que, mais do que as medalhas, me honro de ter recebido. Nunca jogaram ali a vida e nunca viram tombar, ao lado, camaradas.

Dizia um companheiro meu, de Angola, que a mira da espingarda não nos faz ver melhor os problemas. Mas acrescentava que nos permitia vê-los com mais autoridade. É essa que falta aos que nunca combateram, para na guerra aprenderem a procurar honrosamente a paz.

Para que desapareçam as dúvidas ou as meias verdades é preciso saber-se ao certo o que se passou nestes últimos anos para se conhecer a evolução dos problemas e das ideias, quais os passos que se deram e como se impediu que prosseguissem. Assim arcará cada qual com o seu quinhão de responsabilidades.

Não enjeito as que me possam pertencer. Posso ter-me enganado, mas nunca traí. Posso ter errado, mas nunca cometi indignidades.

Naquilo que procurei alcançar, Moçambique teria sido a pátria feliz de todos os moçambicanos e onde se sentissem em casa própria para nela aceitarem quantos, com eles, quisessem contribuir para a tarefa comum. Casa com fundos alicerces lusíadas. E, sobretudo, casa livre de hipotecas.

Houve outros que, premeditamente, não quiseram que assim fosse.

Houve outros que não souberam ter coragem de decisão que teria evitado a tragédia. E bem os alertei a tempo.

Como nos julgamentos tribais das gentes vizinhas do Grande Lago Malawi, o testemunho (o UMBONI) tem de ser por mim prestado para que os implacáveis juízes, em torno da fogueira, ditem a sua presença.

Com eles convivi longos anos. Perante eles denuncio e acuso.

UMBONI é testemunho sagrado em que a mentira não pode ter lugar.

Ninguém se atreveria a arrostar com as iras dos espíritos vigilantes que, entre os Nyanjas, guardam a honra e a justiça.

UMBONI, UMBONI, UMBONI, para dizer toda a verdade.

O crime e a traição não podem persistir em Moçambique. Ainda quero crer que, em dia não distante, poderá o país encontrar o seu caminho na independência verdadeira e liberta de novos colonialismos.

Penso que a própria "Frelimo", quando recuperar a sua autenticidade moçambicana, poderá definir os rumos da salvação nacional.

Sei que existe, na "Frelimo", maioria de homens que são, na verdade, os genuínos nacionalistas que o Presidente Kaunda me apresentou com sinceridade da qual, ainda hoje, não duvido. Acredito que não mentiram nas mensagens que me enviaram e nos contactos honrados que tivemos.

Homens da "Frelimo" a quem combati quando foi tempo de lutar, jogando a vida com eles, e a quem não hesitei a apertar a mão quando foi tempo de nos entendermos.

Avalio como devem sentir-se atraiçoados pela minoria despótica que os domina, apoiada por estrangeiros, renegando as esperanças acalentadas em anos de luta e destruindo a curta felicidade que todos os combatentes viveram.

Por estes, também se dirige o meu UMBONI.

Que saibam fazer justiça.

Que saibam libertar Moçambique.

Convivência, diálogo e entendimento

(...) Com efeito os contactos com o Malawi, e concretamente com o Presidente Banda, tiveram incidência directa muito importante no processo preparatório da descolonização e na fase do seu aceleramento que viria a ser interronpida, como mais adiante descreverei, por acções resultantes da revolução portuguesa de 1974.

Sabe-se que desempenhei papel de certo relevo nessas relações com o Malawi mas, para que o processo possa ser correctamente entendido, tenho de referir como se iniciou essa aproximação, quais os intuitos que a conduziram e como isso veio a influenciar, marcadamente, a minha posição no quadro global do problema.

Numa tarde da Primavera de 1963, o Presidente Salazar convocou-me, como tanto era seu hábito, para mais um encontro na sua residência oficial na Calçada da Estrela, em Lisboa. Não tínhamos agenda de trabalho fixada e nem havia problemas concretos a falar.

Nada estranhei porque isso acontecia muitas vezes e o Doutor Salazar não ocultava o gosto por estas conversas em que discorria sobre assuntos de Estado ou sobre coisas de somenos, na certeza de eu nada repetir daquilo que abordávamos e de ter, mesmo, a precaução de ordenar os meus apontamentos por forma a não ser possível alguém interpretá-los.

Recebeu-me com a pontualidade escrupulosa do costume (que só conheceu excepções que foram da minha culpa) nesse gabinete de trabalho sempre ordenado na aparente desarrumação dos papéis que ocupavam a mesa de trabalho, as cadeiras e até parte do velho tapete que cobria o chão.

Eu estava a regressar a África e nessas vésperas de viagem o Doutor Salazar procurava fazer o ponto da situação, no seu jeito sereno de xadrezista, por forma a que pudéssemos ficar sincronizados sobre os problemas, permitindo-me actuar dentro das suas directivas mesmo quando as questões se agudizavam bruscamente e o contacto não era fácil.

Importa muito esclarecer que raramente dava ordens concretas e nem sequer gostava de o fazer. Preferia transmitir o seu pensamento orientador, com vista à mais consciente execução perante o evoluir das circuntâncias. Aceitava o diálogo e sempre me consentiu que formulasse sugestões, discutisse programas ou discordasse de pontos de vista. Não foram poucas as vezes em que transigiu sem constrangimento.

Nessa tarde estava abertamente decidido a conversar. Se não o conhecesse bem, tudo pareceria rotineiro. Notei-lhe, porém, fulgor especial nos olhos e uma quase agitação sorridente de que os menos íntimos certamente se não aperceberiam.

Na imagem: Padrão da Fortaleza Portuguesa de Diu

Recordou os acontecimentos de Angola e do Estado da Índia em que recentemente eu intervira, fazendo a guerra ou realizando missões diplomáticas, felizmente com êxito. Sublinhou a necessidade de estarmos em inteira sintonia e pediu a melhor atenção para o que, com esse intuito, me haveria de expor.

Resumiu a evolução geral dos problemas africanos a que o Ultramar não poderia eximir-se. Esboçou o quadro da política internacional, prevendo a crescente pressão do que veio a chamar-se "terceiro mundo" com desagrado inicial das nações do ocidente e futura aceitação oportunista por essas mesmas potências. Não tinha dúvidas sobre o progressivo reforço do bloco comunista, numa estratégia que classificou de hábil e inteligente, perante a decadência e divisões da Aliança Atlântica.

Concluiu, com frieza analítica, pela inviabilidade de a guerra em Angola se agravar, de a Guiné haver de enfrentar o assalto convergente de interesses diversos e de Moçambique também ter de suportar o conflito que se iniciaria por incursões ao longo das fronteiras.

Não confiava na colaboração da África do Sul ou da Rodésia do Sul que, aliás, não desejava. Explicou-me que não era do nosso interesse aliarmo-nos com países de tendência racista cuja política não coincidia com a visão portuguesa do futuro humano da sociedade africana. Entendia que isso não só era contra a nossa ideologia como seria lesivo da nossa imagem internacional. Preocupava-o, muito, que nada afectasse os laços que nos prendiam ao Brasil, anti-racista, e que pretendia estreitar cada vez mais.

Falou-me, com vibração que anotei, do futuro que antevia para a planeada "Comunidade Lusíada" destinada a cimentar a unidade supra-nacional dos povos que haviam recolhido a influência da língua e da cultura portuguesa.

Em todo este quadro entendia que a presença portuguesa em África poderia ser, não só factor de estabilidade, como lançar a ponte de entendimento para amortecer a confrontação entre blocos raciais extremistas que tenderiam a formar-se.

Lamentando o enfraquecimento da influência britânica (de cuja acção nunca ocultou ser objectivo admirador) o Doutor Salazar previa que, com o rodar do tempo, se moderasse a virulência das atitudes, alcançando-se um momento de compromisso negociador para o qual deveríamos estar preparados. Era isso que justificava a sua política de "aguentar" (opondo a força à força, quando necessário) sem que nunca tivesse defendido a hipótese de vitória militar.

A solução seria sempre política e para isso a necessidade de angariarmos amigos (a converter em potenciais aliados) nos futuros governos da Rodésia do Norte (que veio a ser a Zâmbia) ou do Niassalândia (que veio a ser o Malawi) [1].

Pelas divisões partidárias e enfrentamentos tribais que se registavam, o panorama de Lusaka mostrava-se confuso e era duvidosa a capacidade do Dr. Kaunda para dominar o jogo político interno, assumindo posição de estadista. A futura Zâmbia seria parceiro a acompanhar com atenção e auxiliar nas suas dificuldades de país sem acesso aos oceanos, para não se perderem oportunidades. Mas não parecia ser o interlocutor apropriado para aqueles objectivos de estratégia africana.

Vinha a restar o futuro Malawi que reunia, na visão de Salazar, as condições para se tentar conveniente aproximação.

O Dr. Banda afirmava-se como chefe político incontestado, com personalidade forte e de insuspeitos antecedentes na luta anti-colonial. Não havia choques partidários significantes e o tribalismo não apresentava relevância preocupante. A posição geográfica do país permitia admitir certa moderação pragmática enquanto que o seu potencial humano, que impunha emigração significativa, se apresentava como factor de valorização de outros estados vizinhos.

O Dr. Hastings Banda, embora intérprete de extremismo africano violento, possuía cultura e hábitos em que se patenteava a influência dos padrões britânicos. Era astuto e educado. Reunia todas as condições para vir a ser interlocutor esclarecido, capaz de exercer influência na preservação da paz naquela zona nevrálgica do continente africano.

Toda esta longa exposição conduzia a definir-se um objectivo: apresentar ao líder do futuro Malawi o quadro que me fora traçado e obter a sua colaboração para essa estratégia política.

Ouvi atentamente o que o Doutor Salazar me referiu ao longo de exposição metódica que incompletamente resumo e concordei com a actuação que preconizava. Ficava por saber como isso se realizaria.

Formulei a pergunta e Salazar foi terminante, revelando quanto havia pensado no assunto mas tratando-o como se fosse a coisa mais trivial: "Pois é você quem tem de desempenhar-se de tal missão. Sente-se em África como um africano e não esconde as suas simpatias pelos anseios dos negros. Fez a guerra com coragem mas repete-me, sempre, que só a aceita para se construir a paz. Tem a sua oportunidade".

E acrescentou: "Ou conseguimos isto ou o nosso Ultramar conhecerá uma catástrofe. É do interesse de toda a África evitá-lo. Que me responde?"

Claro que respondi que nunca havia, sequer, visitado o Niassalândia e nunca havia visto o Dr. Banda, cuja personalidade desconhecia. Não sabia, portanto, por que ponta havia de pegar no problema.

Imperturbável, o Presidente Salazar apenas lançou, olhando por cima dos seus meios óculos, um comentário que reproduzo com inteira fidelidade: "Tem graça que eu também não tenho ideia de como isso possa ser. Foi por isso que o chamei a si e lhe expliquei isto tudo. Trate de encontrar a solução. Já se saiu bem de problemas mais complicados". E juntou um comentário que traduzia o carinho que dedicava à minha família: "A sua mulher é que já anda farta disto. Eu sei-o. Espero não lhe criar problemas em casa".

Na imagem: pôr-do-sol em Chamama (Malawi)

Mal podíamos supor, nessa altura, como a Teresa e os meus filhos viriam a adorar o Malawi. Como ali haveríamos de encontrar o calor de amizades inolvidáveis, nas boas e nas más horas que nos esperavam.

Agradeci a confiança. Disse que faria tudo quanto me fosse possível. E fiquei a dar tratos à imaginação.

Assim começou, sem qualquer mérito meu de inventiva, uma nova fase da minha vida e que veio a ser, sem dúvida, a que mais me apaixonou: influenciar o Malawi para uma política africana de convivência, diálogo e entendimento.

Mal podia, então, supor como o Malawi me viria a influenciar a mim (ob. cit., pp. 25-37).


[1] Sobre a situação política referida, desmistifica-se assim o sentido vulgarmente atribuído ao «orgulhosamente sós» de Oliveira de Salazar. Terminantemente o esclarece Franco Nogueira:

«Esta expressão «orgulhosamente sós» logo se transformou num estribilho ou bordão político, invocado por uns como título de nobreza e coragem nacional, por outros como indicativo de isolamento perante o mundo. Mas a expressão não queria dizer que Portugal estivesse só, isolado, sem ajudas. Queria dizer que Portugal estava só na interpretação que dava ao quadro africano e mundial; e às conclusões políticas que tirava» (in Salazar, Livraria Civilização Editora, Vol. VI, p. 8).

Continua







quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (iv)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Palácio do Kremlin

Jornalistas russos em Moçambique

Durante as festas da independência do Malawi (Julho de 1964) encontrei-me, ocasionalmente, em Blantyre, com o enviado do "Pravda", de Moscovo, Mikhail Domogatskiy e estabelecemos certa convivência. Ajudei-o nas facilidades de que carecia para fazer o seu trabalho. Ficou entre atónito e desconfiado quando lhe disse a minha nacionalidade e, mais ainda, a terra em que vivia.

Voltámos a encontrar-nos e a conversar.

Perguntou-me se se podia visitar Moçambique e eu perguntei-lhe quando desejaria fazê-lo. Desta vez o espanto foi total pois lhe assegurei que o visto seria dado sem dificuldade, mesmo num passaporte soviético.

Inquiriu-me se eu falava a sério e se podia referir isso a Moscovo.

Insisti em que não estava a brincar e quanto a isso de consultar Moscovo era problema que, embora o compreendesse necessário, em nada me dizia respeito. Que o fizesse se tinha de pedir licença.

Conversei o assunto com o Dr. Hall Themido, do Ministério dos Negócios Estrangeiros que se encontrava no Malawi integrado na embaixada portuguesa a que presidia o Almirante Lopes Alves. Achou ousada a minha iniciativa mas deu-me todo o apoio. Também ele iria consultar Lisboa.

Tirei-me dos meus cuidados e telefonei ao Doutor Salazar pedindo-lhe que concordasse pois nada teríamos a perder. Mesmo que se tratasse de um agente soviético perigoso, certamente que não iria fazer contactos em Moçambique para nos fornecer o rasto da sua organização. Não me parecia que fosse obter mais informações do que aquelas que já tinha e podia sempre refrescar pelas vias de informação de que dispunham. Afigurava-se-me que o "Prava" não podia dizer pior do que aquilo que já dizia e que, neste terreno, tinha muito menos credibilidade do que os correspondentes americanos que escreviam, ainda por cima, em caracteres legíveis por toda a gente e em língua acessível a muitos. No aspecto positivo o que ficaria era a imagem de consentirmos a entrada em Moçambique mesmo a jornalistas soviéticos. E se eram outra coisa, além de jornalistas, nada se perdia em estabelecermos contactos.

O Presidente Salazar achou bizarra a ideia e atrevida a minha argumentação, mas o consulado português em Balntyre recebeu ordem para dar os vistos a soviéticos que eu recomendasse.

Passados dias, o meu amigo Domogatskiy deu-me o passaporte dele e o de um companheiro para serem postos os vistos. Ficou siderado quando, curtas horas depois, lhos devolvi já devidamente visados.

Antes de nos separarmos, em Blantyre, ficou de contactar de novo comigo para combinarmos a oportunidade da visita. Nisso me ajudou, e muito, um jornalista moçambicano interessadíssimo nesta "caixa".

O calendário rodou, foram-se trocando mensagens (incluindo abundante propaganda) e, finalmente, acordou-se que chegariam à Beira provenientes de Nairobi, e via Blantyre, dois enviados do "Pravda": o já conhecido Mikhail Domogatskiy e Tomas Kolesnichenko. Permaneceriam em Moçambique de 10 a 17 de Março de 1965.

Combinámos que para lhes facilitar a vida, evitando reacções de animosidade ou simpatia, os apresentaríamos como jornalistas austríacos e para o efeito lhes atribuímos os apelidos convenientes. Assegurámos ainda, que nada divulgaríamos sobre a sua visita antes de abandonarem o território.

Ficaram encantados com a ideia, planeámos a viagem a seu gosto e utilizámos o meu avião para irem onde quisessem deslocar-se.

Foram, aliás, simpatiquíssimos e o a ambiente de camaradagem havia de estreitar-se progressivamente ao longo daquela semana. Nunca me foi mais fácil e agradável, acompanhar jornalistas estrangeiros.

No dia seguinte à chegada, jantaram em minha casa, no Dondo. A família e, sobretudo, os pequenos mais velhos inteirados da real identidade dos visitantes, acolheu-os com hospitalidade fria. Mas pronto nos conquistaram com a exibição de notável e bem planeado malabarismo de propaganda.

Na imagem: Sputnik 1 (satélite espacial russo)

Para além do vodka e caviar que nos ofereceram, deram-me uma medalha comemorativa do lançamento do primeiro "sputnik" e trouxeram bonecas para as pequenas. Depois, num alarde de total domínio de informação, entregaram à minha mulher dois estojos com caixas de fósforos soviéticos (artisticamente coloridas) explicando que as tinham trazido de Moscovo porque sabiam que ela faz colecção!

A partir daí resolvemos que não merecia a pena esconder-lhes nada.

Apreciaram objectivamente o que lhes fomos mostrando e iam tirando fotografias sobretudo quando tinham oportunidade de deparar com exemplares de sub-desenvolvimento humano. Mas valha a verdade que os monumentos, ligados à história das descobertas, os entusiasmavam de igual modo.

Na Ilha de Moçambique, na casa que o Dr. Ferreira dos Santos colocara à disposição dos meus amigos "austríacos", tivemos a primeira conversa a sério. Reconheciam que se estava a fazer um esforço no terreno da educação e que o multi-racialismo se ia tornando realidade autêntica.

Não viam, porém, que possuíssemos estruturas para absorver a produção escolar em médio prazo e nem que tivéssemos recursos para essas estruturas preparar. Daqui resultava a inevitabilidade de produzirmos um proletariado, já sem vínculos tribais, que seria o alicerce da futura revolução.

Admiti que fosse assim, mas comentei que, não podendo inventar os meios, nos restava correr o risco. O que não podíamos era travar a ânsia pelo ensino. A liberdade humana tinha o seu preço e aceitávamo-lo na certeza de que o ciclo se encerraria por forma harmoniosa. A expansão do ensino era factor de progresso indispensável. Os períodos de transição dolorosa custam muito aos que os atravessam, mas contam pouco na projecção histórica das nações.

Ficaram atónitos com esta dialéctica e tomaram apressados apontamentos.

Impressionava-os muito, a presença chinesa que tinham notado na Beira. Viriam a alarmar-se com ela quando passámos por Lourenço Marques.

Por mais que lhes explicasse que era gente pacífica e radicada no território, não havia meio de me acreditarem. Domogatskiy disse-me haver passado oito anos na China (sabendo falar e escrever o chinês) e assegurava-me tratar-se de infiltração política que era preciso travar porque bem sabia como os chineses trabalhavam. Quase que se propôs fazer um curso de esclarecimento para as nossas autoridades policiais.

Depois, na Beira, mostrei-lhes armamento apreendido à "Frelimo" e todo ele de fabrico soviético. Não entendia eu esse apoio de Moscovo quando se sabia que, nessa altura, a "Frelimo" oscilava da órbita americana para a chinesa. Pediram-me fotografias com detalhes do equipamento e vieram a informar-me que se tratava de armas que haviam fornecido à Argélia, durante a sua luta contra os franceses, e que dali haviam sido desviadas para a "Frelimo" sem seu conhecimento ou autorização. Quase que estavam indignados por tal abuso.

Em Lourenço Marques, o meu amigo Domogatskiy pretextou um ataque de paludismo (que chegou a preocupar-me) para não acompanhar Kolesnichenko na visita programada ao colonato do Limpopo. Mas mal a caravana partiu, apareceu, fresco e bem disposto, no meu quarto, porque queria conversar comigo.

Estava, cavalheirescamente, preocupado com a ideia de que, depois de lhes haver dispensado tantas atenções, eu confiasse em que fossem fazer apreciações favoráveis. E isso não lhes era possível.

Tranquilizei-o e comentei que pouco me importava o que escrevessem porque muito mais me interessava o que vissem. Presumia, aliás, que o relatório que entregariam ao Partido seria coisa bem diversa do que o que publicariam no "Pravda".

Riu-se, aliviado, e assegurou-me que assim seria.

Depois referiu-me que não os preocupava a concorrência dos americanos, mas reconhecia que estavam com um atraso de 10 anos sobre os chineses. Trabalhando bem as élites da "Frelimo" poderiam, nesse prazo, ou talvez em pouco menos, recuperar o terreno perdido. Tudo estaria em que a libertação de Moçambique se não desse antes disso porque, então, seria uma fatalidade para a África, incapaz de conter o expansionismo chinês. Desse novo colonialismo nunca mais ninguém se livraria.

Pareceu-me sincero e quase que desejoso de dar uma ajuda para que aguentássemos o tempo de que necessitavam.

Na imagem: figuração da China comunista

Compreendi que a África Austral estava destinada a ser terreno de confrontação entre russos e chineses, sem que os soviéticos se resignassem a perder uma influência em que os outros lhes levavam vantagem. A nós ficava-nos algum tempo para manobrar procurando uma solução independente.

Muito do que se veio a passar, encontra explicação nesta estratégia que Domogatskiy (em 1965) me referiu. A Rússia sabia que se não se antecipasse aos chineses, correndo contra o tempo, poderia perder a cartada para sempre.

Quando a revolução de Abril (em 1974) consentiu aos comunistas que ocupassem o poder e a descolonização de desencaminhou para os rumos conhecidos, compreendi que os soviéticos haviam desencadeado a sua estratégia de antecipação. Tinham trabalhado bem e depressa (em Portugal e em África) recuperando o atraso e estavam ansiosos por não perderem a vantagem.

Isso explica a violenta intervenção em Angola e o que está acontecendo em Moçambique.

Interessa reter este aspecto, para se entender quanto referirei adiante.

Quando Kolesnichenko voltou ao Limpopo, ao fim da tarde, preparámos o jantar de despedida.

Durante ele convidaram-me, sem qualquer constrangimento e perante outras pessoas, a retribuir a visita deslocando-me à União Soviética como hóspede do "Pravda". Aceitei com uma só restrição: não queria fazê-lo no Inverno pela dificuldade em suportar o frio.

O convite veio noticiado nos jornais de Moçambique (em 19 de Março) quando se revelou, com algum escândalo nacional, que aqueles correspondentes russos haviam percorrido, na minha companhia, mais de 5.000 quilómetros de norte a sul do território, deslocando-se onde tinham querido.

A despedida, na Beira, foi afectuosa e teve mesmo aspectos de emotividade.

Os russos são sentimentais como nós, e tinha-os visto chorar ao escutarem o fado, num retiro castiço, apesar de não entenderem uma palavra. Não estranhei porque sinto o mesmo quando oiço as baladas russas.

Sobre o convite para me deslocar a Moscovo nunca mais tive notícias directas, apesar de havermos mantido correspondência durante meses. Por amigos comuns fizeram-me chegar, delicadamente, a informação de que tal não era de momento possível dada a oposição influente, contra tal visita, por parte do Partido do Dr. Álvaro Cunhal.

Perplexidade americana

O curioso é que, na minha seguinte visita a Lisboa, a embaixada americana me dispensou um interesse a que não estava habituado. As minhas simpatias pelos EUA nunca haviam sido muito pronunciadas, o que não me impedia de estimar individualmente alguns cidadãos americanos.

Por intermédio de Ted Xantaky, que comigo trabalhava na "Sonap", aceitei assim um convite para almoçar com o embaixador Anderson que conhecera em casa dos Almirante Sarmento Rodrigues quando visitara Moçambique.

O embaixador não esperou pelo café para se referir à visita dos jornalistas do "Pravda" e para me alertar quanto ao que haviam escrito. Acrescentou que sabia tratar-se de perigosos agentes soviéticos que se encobriam sob aquela capa.

Agradeci a boa intenção do aviso mas não lhe dei tempo para me mostrar as informações de que dispunha porque logo o esclareci de que também eu sabia de quem se tratava.

E passei a confirmá-lo. Domogatskiy era o encarregado de penetração soviética na África Oriental, tinha servido, com distinção, nas tropas pára-quedistas durante a última guerra mundial, nascera em Voronege em 1923, tinha-se diplomado em ciências históricas, estivera em Peking de 1953 a 1961, dispunha de invulgar cultura e, sendo conhecido pelos seus sentimentos anti-maoístas, fora colocado depois na Europa e em países do Médio Oriente até ser, finalmente, transferido para Nairobi. Quanto a Kolesnichenko (filho de um alto dignatário soviético) nascera em 1930, tinha-se igualmente formado em ciências históricas, especializando-se em assuntos africanos, muito jovem ainda, havia sido um dos mais influentes conselheiros de Patrice Lumumba sobre quem escrevera um livro que tinha sido premiado e estivera em Zanzibar na altura da revolta contra o Sultão que terminara no trágico massacre dos árabes, encontrava-se baseado em Lusaka e era responsável pela subversão na África Central.

O embaixador Anderson confirmou tudo isto mas perguntou-me como é que, sabendo-o, os havíamos convidado. Limitei-me a observar que era por o sabermos que, exactamente, o tínhamos feito.

Quanto aos artigos que tinham escrito para o "Pravda" não os considerava agradáveis embora fossem muito menos agressivos do que outros publicados por respeitáveis e conhecidas revistas norte-americanas. Tinha, além disso, a vantagem de aparecerem num jornal com posição ideológica conhecida.

Deixei a embaixada, com Ted Xantaky, para que o perplexo embaixador pudesse preparar os seus comentários para Washington.

Na imagem: Muralha da China

Já que tinham impedido de me aproximar de Peking, gostava de os preocupar com Moscovo.

Estimaria voltar a conversar hoje com Domogatskiy para que me explicasse como conseguiram a espectacular recuperação soviética no seio da "Frelimo".

E, sobretudo, como poderão arredar definitivamente os chineses que estão longe de terem perdido as últimas cartadas.

É que me mantenho fiel às minhas preferências.

Na opção com Moscovo, continuo em favor de Peking.

(...) As propostas do Dr. Kaunda

No dia 23 de Julho, Pombeiro de Sousa e eu tomámos, em Blantyre, o avião da "Zâmbia Airways" que deslocou às 13.30.

A bordo serviram-nos uma refeição em que quase não toquei e pouca atenção me mereceram as informações do comandante, italiano, quando sobrevoámos Cahora Bassa. Tudo, para mim, se concentrava no destino.

Nem de "visto" dispunhamos mas tudo estava perfeitamente organizado em Lusaka onde nos esperava Mark Chona, assistente pessoal do Presidente Kaunda, acompanhado por Peter Kassanda e Bosco Chibanda. Não podíamos ser recebidos com maior simpatia e instalaram-nos no Hotel Intercontinental, situado junto do bairro diplomático. Recordo que fiquei no quarto n.º 606 e que os nossos anfitriões se ocuparam dos mínimos detalhes à nossa comodidade.

Deram-nos tempo para descansar um pouco mas, Pombeiro de Sousa e eu, aproveitamo-lo para dar uma olhadela em redor e pudemos, assim, comprovar que existia discreto serviço de segurança que nada nos incomodava. Visavam mais proteger-nos contra qualquer interferência desagradável (em Lusaka estavam instalados diversos "movimentos de libertação") do que vigiar o que fazíamos. Notámos isso com apreço.

Ainda nos parecia um sonho estarmos, finalmente, na Zâmbia.

Vieram buscar-nos pontualmente para nos conduzirem à "State House", residência oficial do presidente da República, de marcado estilo colonial britânico, com os jardins e parques arrelvados impecavelmente conservados, e onde sentinelas imperturbáveis montavam a guarda, como se vivêssemos sob o Império de Sua Majestade.

É facto que em todos os países que conheci, de antiga soberania inglesa, foram, invariavelmente, mantidos esses hábitos importados de Albion. No Malawi, no Pasquitão, na África do Sul, na Zâmbia, na Rodésia e na Índia, o aprumo era sempre o mesmo na marcialidade da guarda, no delicado protocolo do acolhimento e na dignidade natural das instalações conservadas sem alteração. Talvez que só na Índia tenha notado um certo desleixo, mas pode bem acontecer que eu tenha sido influenciado por ali me ter cruzado com gente de uniforme usando, descuidadamente, o pouco marcial chapéu de chuva.

Na imagem: Real Brasão de Armas do Reino Unido

Observei, mais uma vez, que os britânicos haviam sido notáveis colonizadores (e sobretudo hábeis descolonizadores) deixando marcados, bem fundos, os traços da sua presença. Até a maioria dos monumentos e dos nomes (das ruas ou das localidades) perdura com respeito, nesses países que visitei.

Se tinham conseguido isso, apesar do seu inveterado racismo, certamente que melhor poderíamos alcançar nós, apoiados no convívio multi-racial.

A Frelimo não era comunista

O Presidente Kaunda recebeu-nos, com afabilidade, numa entrevista que se prolongou das 17.15 às 19.30. Estava acompanhado por Mark Chona e por Peter Kassanda que ia tomando algumas notas.

Tudo quanto eu pudesse ter previsto para este encontro inicial foi superado pelo que se passsou.

Trajando impecavelmente, com certa informalidade estudada, o Dr. Kaunda evidencia simplicidade e natural simaptia, capazes de conquistarem os que se acerquem mais desconfiados. Não fuma, mas preocupa-se em que tudo esteja disposto para comodidade dos que usem fazê-lo e, enquanto conversa, acaricia sempre um lenço que torna mais fáceis os movimentos das suas mãos expressivas.

Depois das saudações de cortesia, passámos a aspectos essenciais, interessando-se por conhecer a situação em Moçambique e o sentido exacto da política da "autonomia progressiva". Tudo lhe descrevi em detalhe, salientando o desejo generalizado de adquirirmos autêntica independência multi-racial com participação dominante da maioria. Informei dos passos decisivos que se haviam dado na criação das estruturas preparatórias (autonomia orçamental, participação das populações na eleição dos orgãos administrativos, acréscimo de poderes da administração local, manutenção da moeda própria com reservas a ela afectas, capacidade de contrôle sobre as importações, constituição de organismos de crédito habilitados a negociarem operações de financiamento, desenvolvimento do ensino sem quaisquer discriminações na frequência, recrutamento de unidades militares de incorporação moçambicana, etc.) consolidando os propósitos enunciados pelo Primeiro-Ministro.

Salientei que a independência política pouco representaria se não existissem previamente essas estruturas sem as quais seríamos arrastados para a órbita de potências estrangeiras. Mencionei-lhe as condições muito especiais da posição geográfica de Moçambique (fronteiriço com seis países: Tanzânia, Malawi, Zâmbia, Rodésia, Swazilândia e África do Sul) de que lhe resultavam relações que haviam de encarar-se com o maior realismo.

Não omiti as minhas preocupações sobre o conteúdo ideológico marxista da "Frelimo", apontando a limitada influência que tinha sobre a população moçambicana (mesmo admitindo os dados divulgados pela "Frelimo" quanto à sua penetração no território) e critiquei certos procedimentos de guerra que utilizava, numa luta em que, militarmente, nunca se poderia arranjar uma solução.

Parecia-me que estávamos no momento de procurarmos a fórmula negociada que, considerando todas as forças em presença, permitisse estabelecer a paz. Referi as diligências que de há muito se vinham realizando na busca de soluções com a activa e experimentada intervenção do Presidente Banda.

O Dr. Kaunda ouviu-me, sem interromper, com enorme atenção. Pombeiro de Sousa interveio reforçando um ou outro ponto da exposição que previamente havíamos concertado. Mark Chona revelava o maior interesse e fazia sinais de favorável entendimento. Peter Kassanda enchia folhas do seu caderno de apontamentos, apenas erguendo os olhos quando algum ponto lhe parecia mais significativo ou surpreendente.

Notei que o Presidente Kaunda sabia escutar e não perdia palavra do que se dizia.

Quando terminei, agradeceu o desenvolvimento e o interesse da minha exposição, mostrou-se surpreendido por se haver ido já tão longe em aspectos na verdade essenciais para se estruturar todo o funcionamento de um país e muito apreciou saber da existência de uma "frente interna" que se encaminhava para uma solução política que visava atingir a independência. Perguntou-me se haveria muita gente pensando como eu, designadamente no sector não-africano cuja confiança era necessário conquistar, para se manterem as actividades produtivas, enquanto se processasse a evolução.

Expliquei não ser possível mencionar números e nem sequer índices seguros. Mas o mais importante seria saber-se em que sentido evolucionava a opinião do sector que referira e que incluía muitos moçambicanos esclarecidos e dos melhor preparados. Essa tendência apresentava-se francamente positiva e referi vários sinais que o comprovavam. Entretanto, exercíamos discreta acção mentalizadora por intermédio dos orgãos da imprensa e da rádio que já controlávamos.

Admiti a existência de alguns elementos extremistas, de ambos os extremos, que não seriam recuperáveis para esta tarefa e que teríamos de afastar do território, quando chegasse o momento, se persistissem em manter a agressividade perturbadora. De qualquer modo, tratar-se-ia de escassas centenas, se a tanto o seu número chegasse.

Outro ponto abordado, pelo Dr. Kaunda, foi o da efectiva vontade do Governo Português prosseguir uma política integrada nos moldes preconizados e da capacidade de Marcello Caetano para levar a cabo essa tarefa.

Na imagem: Brasão da Costa do Marfim

Com total sinceridade dei esclarecimento idêntico ao que transmitira, em Paris, ao Presidente da Costa do Marfim, acentuando que confiava em que Marcello Caetano fosse capaz de dominar os grupos de pressão que se lhe opunham, sobretudo depois das eleições fixadas para Outubro desse ano, em que era de prever uma sólida vitória do Presidente do Conselho. Se isso não acontecesse, ou se o Doutor Marcello Caetano não soubesse usar a sua autoridade, seria inevitável uma confrontação revolucionária, de iniciativa de qualquer das tendências extremistas.

Por mim, não hesitaria, numa ou noutra dessas situações de crise, em antecipar-me tomando a iniciativa de um golpe de estado em Moçambique.

O Presidente Kaunda manifestou que o mais desejável seria realizar tudo na legalidade, ainda que isso significasse demorar-se mais algum tempo a alcançarem-se os objectivos.

Em seguida, procurou tranquilizar-me quanto aos meus receios de influência marxista na "Frelimo", assegurando-me que essa imagem era errada, não correspondia à ideologia dos dirigentes responsáveis e havia sido fabricada pela propaganda adversa. Considerava indispensável que deixássemos de identificar a "Frelimo" como um movimento comunista (embora no seu seio pudessem existir alguns elementos não significativos com tal formação ou tendência) e garantiu-me que Samora Machel, que bem conhecia, preconizava programa muito próximo daquele que expusera.

Pediu-me, insistentemente, para acreditar nas certezas que me transmitia.

Objectei, citando textos e declarações de Marcelino dos Santos que evidenciavam uma linha doutrinária marxista-soviética que não consentia dúvidas e contei o episódio do nosso encontro no aeroporto de Genève. O Dr. Kaunda comentou ironicamente: "Mas quem é Marcelino dos Santo? Pouco tenho ouvido falar nele. E o que pode representar dentro da Frelimo"?

Insisti em que Marcelino dos Santos era o vice-presidente da "Frelimo", que participara no triunvirato estabelecido depois do assassinato de Mondlane e que vencera o enfrentamento com Uria Simango (cujo prestígio naquele movimento tinha sido muito grande) acabando por o afastar. Não me parecia, pois, que se tratasse de personagem com tão pouca importância. Contava, para mais, com o apoio da União Soviética que o tinha como homem de sua confiança.

O Presidente Kaunda foi terminante, com veemente apoio de Mark Chona, nas garantias que me repetiu e pediu-me que as aceitasse como fruto do seu profundo conhecimento da "Frelimo" que acompanhava nos assíduos contactos que mantinha com Samora Machel.

Nesta posição, tão firme, de Kaunda, não me pareceu delicado insistir, mas não fiquei totalmente convencido. Voltei ao tema, como referirei, noutras oportunidades.

Ao longo desta importante e primeira entrevista o Dr. Kaunda referiu-se, com apreço, à atitude das autoridades portuguesas para concederem à Zâmbia acrescidas facilidades de transporte, através de Moçambique (via Malawi). Acrescentou que o comportamento dos portugueses o havia agradavelmente surpreendido e sabia apreciar a a influência exercida pelo Presidente Banda, bem como a minha intervenção de que se mostrou perfeitamente informado.

Retorqui que essa orientação se limitava a ser coerente com a política invariavelmente afirmada de assegurar o livre acesso dos países do interior aos portos sob soberania portuguesa, oferecendo o melhor serviço possível aos seus utilizadores e sem qualquer discriminação baseada em preferências políticas. Essa posição, de estrita neutralidade na observância de um dever, não tinha sido sempre bem compreendida (como no caso dos transportes para a Rodésia depois do bloqueio britânico e da ONU, em 1965) e era-me agradável saber quanto era, agora, apreciada, dado que diligenciaríamos mantê-la imutável no futuro.

Na imagem: Cataratas Vitória (no Rio Zambeze, na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwe)

Não ocultei ao Presidente Kaunda que poderia, pessoalmente, enfrentar problemas com a realização destes contactos e deslocações a Lusaka, pelo que me parecia conveniente cobri-los com o pretexto da resolução de assuntos de transportes, perfeitamente aceitável pelos observadores, dadas as minhas funções de cônsul do Malawi em Moçambique. Era impossível ocultar por largo prazo estas minhas deslocações e mesmo as visitas ao Dr. Kaunda. O melhor seria dar-lhes aparências, para resposta coincidente às perguntas que, de várias ordens, viriam a surgir.

O Presidente Kaunda concordou inteiramente, combinando-se que esta minha primeira visita à "State House" seria classificada como de mera cortesia e, para tornar as aparências mais verosímeis, fixou-se para o dia seguinte, entrevista minha com Mr Aaron Milner que era, então, secretário geral do governo e tinha, a seu cargo, a coordenação do programa de transportes. Milner deslocava-se com frequência a Blantyre onde já nos havíamos encontrado.

Com esta combinação nos despedimos e Mark Chona veio a revelar-nos que o procedimento fora extremamente útil. Efectivamente, poucos dias depois de eu regressar ao Malawi, a diligente embaixadora americana havia-o interrogado sobre as razões da nossa presença e recebera resposta planeada. Assim conseguimos, com efeito, manter tranquilos os observadores incluindo os diplomatas portugueses, baseados em Blantyre, que só mais tarde vieram a saber do motivo das minhas frequentes deslocações a Lusaka (ob. cit., pp. 66-72 e 93-98).

Continua

sábado, 18 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (v)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Kaulza de Arriaga ao centro

Kaulza de Arriaga deixa Moçambique

(...) Na embaixada de Portugal, em Blantyre, só o administrador Silva Marques (encarregado, entre outras tarefas, de ligação permanente com a Beira) estava a par da nossa deslocação a Lusaka. Conhecia, porém, apenas a versão combinada com os zambianos de havermos tratado de problemas de transportes em cujo quadro se inseriam os ataques da "Frelimo" contra a via férrea e as estradas.

A mesma versão referi ao Major Arnaud Pombeiro, oficial que na Beira conduzia os "SEI" (Serviços Especiais de Informação e Intervenção) que actuavam na minha directa dependência.

Com mais algum desenvolvimento, mas sem revelar os aspectos de negociação política, fiz o mesmo relato ao governador-geral de Moçambique (Eng.º Manuel Pimentel dos Santos) e ao comandante-chefe das Forças Armadas (Gen. Kaulza de Arriaga), quando com eles me reuni em Lourenço Marques, no dia 31.

Nessa noite terminava a sua comissão em Moçambique o Gen. Kaulza de Arriaga e a substituição desse chefe militar inteligente, decidido e lúcido era mais uma razão preocupante quanto ao futuro. Para além da velha amizade que nos ligava, podia confiar no seu patriotismo e capacidade profissional, servidos por invulgar preparação política. Discordámos muitas vezes, em infindáveis e vivos diálogos, porque tínhamos diferentes conceitos sobre a evolução de Moçambique e dos problemas ultramarinos. Estivemos, todavia, sempre solidários no mesmo propósito de serviço nacional, na mesma interpretação da dignidade militar e na mesma honestidade de propósitos.

Objectivamente, o seu afastamento foi uma perda, ainda que se entendessem os motivos que o determinavam. Desta convicção partilhava o governador Pimentel dos Santos que o fez sentir a Lisboa, em repetidas mensagens.

Recordo com emoção o momento da despedida de Kaulza, de quem creio ter bem merecido a dedicatória com que me ofereceu o seu livro que acabara de aparecer e recordava a missão a que se havia devotado durante quase 4 anos: "Para Jorge, camarada ideal na sua inteligência, na sua imaginação, na sua coragem, na sua crítica séria, no seu dinamismo e na sua capacidade global. Camarada ideal nesta luta pela Terra Portuguesa".

O livro intitulava-se "Coragem, Tenacidade e Fé". O Gen. Arriaga tinha tomado, como a sua divisa pessoal, os conceitos expressos nessa trilogia recolhida de homenagem que lhe haviam prestado, no dia comemorativo da carga de Macontene, os cavaleiros do batalhão de cavalaria 2923.

Por se lhe ter mantido fiel conheceu, em Portugal, a prisão arbitrária que se manteve sem julgamento, por mais de um ano, em odiosa perseguição pessoal.

Mais grave do que a saída de Kaulza de Arriaga de Moçambique, era a ascensão do Gen. Costa Gomes ao Vértice das instituições militares portuguesas como chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Isso muito nos preocupava e teve a agravante da sua crescente influência junto do Doutor Marcello Caetano, como conselheiro de confiança. Os meses que se seguiram viriam a confirmar a razão dessas preocupações.

Investigações em Tete

Entretanto, novo factor ia tendo crescente influência internacional e era explorado internamente pelos extremistas da esquerda que procuravam criar dificuldades ao governo. Para isso especulam sobre a condução da guerra repressiva em Moçambique, como o principal fito de atingirem as unidades de recrutamento africano acusando-as de comportamento selvagem.

Costa Gomes detestava essas tropas criadas por Kaulza de Arriaga com a minha activa colaboração. Em resultado dessa influência, o Doutor Marcello Caetano viria a referir-se a esses efectivos, afirmando que "tinham uma concepção cruel da guerra, mantendo os seus preconceitos tribais".

Tratava-se da generalização de alguns casos isolados de que as tropas metroplitanas também não estavam isentas, mas isso convinha a certos desígnios programados e que sabiam que essas forças locais seriam o maior obstáculo a vencer.

O "massacre de Wiryamu" mantinha-se nas manchetes da grande imprensa internacional enquanto os jornalistas esquadrinhavam a zona de Tete em busca de provas que documentassem esse alegado morticínio de populações civis.

Eu também estava interessado em conhecer a verdade e, quando a descobri, ficou provado que as caluniadas tropas africanas nada tinham que ver com os casos lamentáveis que, efectivamente, se tinham registado. A partir daí, a posição do Gen. Costa Gomes modificou-se radicalmente e cuidou, sempre, de encobrir o que se passara. A verdade não era conveniente para os seus propósitos.

Certos missionários (sobretudo espanhóis e alguns deles confessadamente marxistas) empenhavam-se em reunir testemunhos com o afã de provarem afirmações contidas no relatório enviado ao Padre Hastings e que tinham servido de base às sensacionais revelações do londrino "The Times".

Neste ambiente o governador-geral consentiu que eu realizasse uma investigação directa para completo esclarecimento dos factos. Para isso me deu autoridade e facilidades necessárias. Tudo me leva a crer que, nessa altura, o eng.º Pimentel dos Santos estava convencido, como eu próprio, da falta de fundamento das acusações divulgadas.

Eu dispunha de pessoal treinado para este tipo de investigações, tinha razoável conhecimento da região e sabia mover-me com desembaraço no mato. Em ensejos anteriores tínhamos dado provas disso, com a consequente punição dos culpados.

Concretamente, tínhamos intervindo no esclarecimento de incidentes registados na fronteira com o Malawi que motivaram duras e mesmo irritadas reacções do Dr. Banda que chegaram a ameaçar gravemente as relações com Portugal. Essas crises foram ainda complicadas pela atitude da embaixada de Portugal que era incapaz de compreender as realidades africanas.

Na imagem: Palácio das Necessidades

O embaixador Futcher Pereira oscilava entre a tentativa de encobrir actos evidentes e o envio de extensos telegramas para as Necessidades acusando as tropas portuguesas de violação que estavam longe de ser objectivamente comprovadas. Fazia um jogo oportunista de valorização pessoal em que a posição portuguesa, só sensível com a serena apreciação dos casos, foi progressivamente deteriorada.

Com essas manobras e beneficiando de apoio de influências em Lisboa, conseguiu manter-se no posto desde 1969 a 1972 e só dali saiu (para logo ser premiado com uma embaixada da maior confiança política) perante um ultimatum do Presidente Banda que tive de transmitir pessoalmente ao Doutor Marcello Caetano junto de quem Futcher Pereira tinha sabido insinuar-se.

Nos dois casos graves, ocorridos nas zonas de Tsangano e Moatize, a minha inervenção pessoal apoiada na valorosa equipa dos "SEI" tinha conduzido ao exacto apuramento dos factos. Para além das prontas medidas disciplinares, tinha sido feito o pagamento das compensações devidas, no Malawi, às vítimas ou aos seus familiares.

Isso irritava, em extremo, aquele mal capacitado diplomata e conduziu à quase inviabilidade de relações entre nós. As suas atitudes posteriores, sempre marcadas pelo oportunismo pessoal, demonstraram que nada perdi com o afastamento que nos separou.

Com estes antecedentes me desloquei a Tete, em 12 de Agosto, para investigar o que houvesse ocorrido.

Um relatório da Cruz Vermelha (que as autoridades tinham conseguido anular) e os depoimentos de pessoal hospitalar que havia sobrevoado a zona (com facilidades concedidas pelo Com. Paulino, da Força Aérea) forneceram-me os primeiros sinais de que alguma coisa havia efectivamente ocorrido.

Servi-me, em seguida, das estreitas relações pessoais que tinha com o Padre Ferrão, da missão de S. Pedro, nos arredores de Tete, que tinha motivos para em mim confiar por ter conseguido impedir a sua iminente prisão por actos de colaboração da "Frelimo" que lhe eram imputados. O Padre Ferrão era o único sacerdote negro da área, descendente de família prestigiosa ali há muito radicada, e parte das acusações contra ele formuladas tinham fundamento. Obtive que o processo fosse arquivado salvando esse moçambicano, honesto e patriota, que já anteriormente conhecera longos meses de prisão por motivos políticos.

Quando o procurei confirmou-me a existência de actos graves, cometidos por uma unidade militar apoiada pela DGS. Forneceu-me a indicação dos contactos que me poderiam revelar mais detalhes.

Para não comprometer o Padre Ferrão e para manter maior liberdade de movimento, combinámos que em todas as declarações à imprensa deveria sempre afirmar nada saber para além dos rumores que circulavam e, mesmo, referir o seu convencimento de que tudo se limitava a atoardas dos missionários espanhóis. Os jornalistas que estavam nessa altura em Tete (repórter fotográfico francês Patrick Chauvel, correspondente inglês Bruce Loundon e redactor Carneiro Gonçalves do "Notícias da Beira") ficaram impressionados com as respostas do Padre Ferrão e o activo inspector Sabino, da DGS, pareceu tranquilizar-se. Só o Orlando Cristina, meu experimentado companheiro de tantos anos, mantinha sorriso esfíngico e me olhava desconfiado...

Fomos do aldeamento de Mpadua e entrevistei livremente alguns sobreviventes que me tinham sido referenciados. Tinham, aliás, sido assistidos e protegidos pelas autoridades portuguesas, o que constituía forma original de se praticar o proclamado genocídio das populações. Conversando, com a paciente negligência característica dos africanos, dei-me conta de que os padres espanhóis haviam raptado uma das testemunhas mais importantes (o jovem António) e que, na véspera, haviam conduzido à missão de Boroma, a uns 30 quilómetros de Tete e sobre a margem do Zambeze, uma mulher que era a chave do problema (a Podista) a quem tinham dado dinheiro e roupas para a fazerem gravar declarações concordantes com a versão que haviam divulgado.

O meu aparecimento e a rápida intervenção graças às ajudas recebidas, começava a perturbar muita gente.

Tive a sorte de chegar a tempo de evitar o desaparecimento de declarantes imprescindíveis como o foram, além da Podista, a irmã do António, um tio deste, chamado Guisado Xavier e o chefe de povoação, Trumbuco.

Na imagem: Operação Lacrau (Norte de Angola)

O governador de Tete e o comandante militar era o coronel pára-quedista Armindo Videira, meu companheiro de guerra no norte de Angola em 1961. Oficial de notáveis qualidades, caracterizado pela sua dureza operacional, seria incapaz de cometer qualquer acto de violência desnecessária e muito menos de praticar o genocídio de populações civis. Pedi-lhe escolta para excursão investigadora pelo mato, seguindo os guias por mim seleccionados. Foram-me dadas todas as facilidades e concordou em que me acompanhassem os jornalistas presentes em Tete.

Na madrugada seguinte a pequena coluna arrancou do aquartelamento militar sob o comando do Major Xavier. Nela se incorporavam os meus especialistas do "SEI."

Seguindo as indicações dos guias e depois de horas de caminhada por terreno hostil encontrámos as povoações de Chawola, Joawo e Wiryamu com indiscutíveis vestígios de excessos dispensáveis cometidos, meses atrás, por unidade militar que actuou sob instruções precisas que não foram dadas pela ZOT (Zona Operacional de Tete). Pelas datas apuradas e pela localização do que ocorrera, apurámos que não se tratava de tropas africanas.

O Maj. Xavier estava pálido; os jornalistas que tudo documentaram fotograficamente quase sofriam náuseas; os meus homens procediam, imperturbáveis, à recolha de provas; e eu tive de manter a serenidade como se não sofresse a comoção que me assaltava.

Sem ser verdade o que os padres haviam feito correr mundo, o certo é que existia qualquer coisa de muito grave e sem precedentes na guerra em Moçambique. Com esta realidade tinha eu de me enfrentar.

Nada ocultei ao governador de Tete (sobre quem viriam a cair injustamente as responsabilidades), elaborei relatório que lhe submeti e deslocámo-nos ambos a Nampula para relatarmos ao recente comandante-chefe, Gen. Bastos Machado, o que eu acabara de apurar.

Fui, em seguida, a Lourenço Marques, onde me reuni com o secretário-geral (Cor. David Ferreira) e com o chefe de gabinete do governo geral por ter, entretanto, seguido para Lisboa o eng.º Pimentel dos Santos. Manifestei o meu propósito de seguir para Lisboa, sem demora, a fim de relatar ao governo aquilo de que era conhecedor e pedi que enviassem mensagem urgente comunicando esse meu intuito.

Ao raiar do dia, encontrei-me com os jornalistas que haviam regressado de Tete comigo, referindo-lhes as minhas intenções e pedindo-lhes que sustivessem o seu serviço noticioso por uns dias para me permitirem actuar. Foram altamente compreensivos para os argumentos que utilizei e penso que o que mais o impressionou foi a minha honesta emoção que tinham podido avaliar no local dos acontecimentos. Prometeram dar-me toda a possível colaboração. E fizeram-no.

O caso de Wiryamu

Em 18 de Agosto (apenas quatro dias sepois da conclusão das investigações) desembarquei em Lisboa e, no aeroporto, entreguei ao Dr. Feytor Pinto, que me aguardava, relato sucinto para fazer chegar sem demora às mãos do Presidente do Conselho. Disparou para Queluz, onde eu deveria comparecer, pelas 11 horas, participando em reunião que se prolongou até às 13.30.

Ali me encontrei com o Doutor Marcello Caetano que estava acompanhado pelo Ministro da Defesa Nacional (Gen. Sá Viana Rebello), pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros (Dr. Ruy Patrício), pelo Ministro do Ultramar (Prof. Silva Cunha) e pelo Governador-Geral de Moçambique (Eng.º Pimentel dos Santos).

Descrevi, em detalhe, o que apurara nas minhas diligências e entreguei cópias do relatório que era acompanhado por elucidativas fotografias. Sugeri, ainda, minuta do comunicado que me parecia conveniente publicar sem demora.

As opiniões dividiram-se em torno da apreciação dos reflexos internos ou externos de se reconhecer, oficialmente, a prática de actos condenáveis pelas nossas tropas. A única posição firme e que prevaleceu, foi a do Dr. Marcello Caetano ao afirmar que o governo não podia ocultar factos cuja natureza e extensão, agora, conhecia. Tudo se limitava, em seu entender, à forma e desenvolvimento a dar ao indispensável comunicado oficial.

Pediu a minha opinião, depois de os demais se pronunciarem, e creio que fui categórico: nenhum país e nenhum governo pode ser responsabilizado por actos condenáveis praticados no decurso de uma guerra, sobretudo quando esta assume os aspectos característicos da guerra subversiva em que os guerrilheiros se misturam com as populações. Até porque tinha feito a guerra, compreendia a reacção excessiva das tropas perante o choque de acções inimigas que acabavam de vitimar caramadas seus. Nenhum país e nenhum governo pode ser incriminado por rejeitar acusações, enquanto não possui provas sobre a existência desses actos. Mas nenhum governo pode encobrir tais procedimentos quando saiba que eles foram cometidos e deixar de punir, no foro militar, os responsáveis. Se o não fizer torna-se conivente com que haja ocorrido com a agravante de não se poder justificar com a excitação emocional que pode entender-se nos combatentes, mas não se perdoa nos governantes. À luz destes princípios normativos tinha de ser tomada a decisão quando todos sabíamos o que na verdade acontecera.

O Doutor Marcello Caetano apoiou esta posição e retirou-se, por minutos, para voltar com o texto do comunicado que redigira e foi nesse mesmo dia divulgado: admitia-se a prática de, pelo menos, um acto reprovável em Moçambique, por parte de uma unidade militar e anunciava-se o prosseguimento de rigoroso inquérito para punição dos culpados.

Inquérito sem seguimento

O Presidente do Conselho voltou a convocar-me para Queluz, onde passava a época veraniega, no dia 21 (era terça-feira) e conversámos longamente nos jardins do palácio.

Fez-me repetir tudo quanto já anteriormente lhe dissera, manifestou irritação perante a negligência investigadora do Cor. Videira cujo afastamento do governo de Tete decidira e interrogou-me sobre as minhas ideias acerca da condução do inquérito oficial aos "massacres".

Respondi que deveria ser conduzido por um oficial general que conhecesse bem as condições em Moçambique, que tivesse prestígio no Exército para se estar seguro de as suas conclusões serem justas e objectivas, que fosse insuspeito de racismo ou desamor pelas populações africanas e que oferecesse uma verticalidade moral impecável.

Perguntou-me onde seria possível descobrir esse homem excepcional e, embora sabendo da pouca simpatia do Doutor Marcello Caetano pela pessoa a propôr, indiquei-lhe o nome do Brigadeiro Silvino Silvério Marques.

Retorquiu-me que considerava excelente sugestão e assegurou que seria esse o designado. Tudo se passaria em questão de dias.

Separámo-nos e decorreram semanas. O Brig. Silvino Silvério Marques não foi nomeado e nem sequer contactado para o efeito. Segundo informações que recolhi, o Gen. Costa Gomes dissuadira disso o Presidente do Conselho.

Conforme o Doutor Marcello Caetano viria a escrever no seu "Depoimento" editado em Novembro de 1974 (a páginas 183) "daí a tempos, o brigadeiro que seguira para fazer o inquérito regressou, com um relatório onde explicava, a seu modo, os acontecimentos e emitia a opinião de que não deveriam ser levantados os autos de corpo de delito".

E comenta (a páginas 184): "Em todo o caso e até porque o contrário se prestava, como prestou, a especulações graves, os comandos superiores deveriam ter procedido com rigor contra aqueles que, desrespeitando as leis da humanidade, mancharam o nome português" .

No vértice da hierarquia estava o Gen. Costa Gomes que manteve, no entanto, a confiança do Primeiro-Ministro que, por sua vez, presidia ao Conselho da Defesa Nacional.

O tal brigadeiro, que seguira para Moçambique para fazer o inquérito, nunca me procurou ouvir. Cruzámo-nos, por acaso, no aeródromo de Tete e apenas o Cor. Rodrigo da Silveira me disse quem ele era e o que ali fazia.

Se chegou às conclusões referidas pelo Doutor Marcello Caetano e estas foram homologadas pelos seus superiores, é evidente que contradiziam frontalmente o que se continha no meu relatório apresentado ao governo. Pelo menos, eu deveria ter sido responsabilizado pelas afirmações que produzira. Tal não aconteceu e só voltei a ter notícia do assunto quando, em Agosto de 1974, as autoridades revolucionárias pretenderam negociar o meu silêncio.

Isso relatarei adiante, explicando porque não me alargo mais sobre o "Massacre de Wiryamu".

Lapsos a corrigir

Um ponto tenho, todavia, que mencionar para corrigir inexactidão contida no já referido "Depoimento" do Doutor Marcello Caetano.

Com efeito, afirma (a páginas 183): "Só posteriormente vim a apurar o que se passara em Chawola. Insisti com o Ministro da Defesa Nacional e do Exército para que fosse de Lisboa um inquiridor com poderes para imediatamente instaurar autos de corpo de delito contra responsáveis; determinei que não fosse reconduzido o comandante-chefe de Moçambique porque mesmo que não lhe coubessem responsabilidades directivas, era quem deveria ter actuado imediatamente; exonerou-se o governador de Tete".

Ora acontece que isto não é exacto.

Só por meu intermédio e em 18 de Agosto, veio o Primeiro-Ministro a apurar o que se passara em Chawola. O Gen. Kaulza de Arriaga havia deixado o cargo de comandante-chefe de Moçambique mais de duas semanas antes (em 31 de Julho) e a decisão de o substituir havia-lhe sido comunicada quando ainda não tinham surgido em Londres as revelações de Padre Hastings. Apenas por lapso pode o Doutor Marcello Caetano haver relacionado, posteriormente, os dois casos.

Por outro lado, é incompreensível que se tivesse mantido a injustiça à exoneração do Cor. Videira. Se o inquérito conclui não haver motivo sequer para serem levantados autos de corpo de delito e essa conclusão foi superiormente homologada, teria de entender-se que, afinal, o governador de Tete não podia ser punido por actos inexistentes.

Estes comentários evidenciam a desorientação que imperava nos altos comandos e se estendia ao governo. Talvez aí resida a explicação dos casos deploráveis, de violência desnecessária, registados em Moçambique por parte de tropas já desesperadas.

Menos explicável, no entanto, é o silêncio que se fez sobre o assunto depois da "revolução de Abril" e quando o Gen. Costa Gomes lançava diatribes revolucionárias anti-colonialistas contra outros que nunca tiveram actuação semelhante à que naquele lamentável caso se verificou. Até pode ficar a suspeita de que obtidos os efeitos desejados (ou não se alcançando outros que se pretendiam) a campanha internacional emudeceu cumprindo ordens superiores. Essa hipótese também pode esclarecer a manobra de negociação que procurou mais tarde envolver-me.

Colapso militar

Durante aquele meu encontro, em Agosto, com o Presidente do Conselho, fiz-lhe menção das esperançosas perspectivas que pareciam resultar dos encontros de Lusaka que prosseguiam à sombra do problema dos transportes.

Embora descrendo da possibilidade de um entendimento negociado, confirmou-me os encontros que tivera com Mark Chona, que o impressionara por forma muito favorável e os termos em que haviam decorrido.

Encorajou-me a prosseguir os meus contactos pesquisando a viabilidade de soluções honrosas.

O quadro da situação militar preocupava-o, acima de tudo, e encontrei-o numa posição vizinha do derrotismo.

Quando nos despedíamos, perguntou: "Você já pensou no que fará se houver um colapso militar em Moçambique?". Fitei-o perplexo e respondi: "Nunca pensei em tal". Voltou a insistir: "Não pensou ou não mo quer dizer?" Repeti que, efectivamente, nunca tinha admitido tal hipótese.

Disse-me, então, em tom desalentado: "Pois será bom que pense".

Claro que a partir daí, nunca mais deixei de pensar nisso.

E redobraram os meus propósitos de encontrar uma solução negociada.

Paz para todos sem desonra para ninguém

O resto do mês de Agosto e os primeiros dias de Setembro esvaíram-se rapidamente mas as sondagens que realizei, nos sectores mais evoluídos, demonstravam a aceitação muito generalizada de esquema próximo das bases que o Dr. Kaunda me havia proposto.

Aquele papel vinha sendo discutido entre mim e Pombeiro de Sousa e harmonizámos os nossos pontos de vista, antes de voltarmos a Lusaka, em 10 de Setembro.

Assentámos nos seguintes pontos a propor:

a) dividir o documento em dois "papéis" apresentando num, os princípios fundamentais e reservando para o outro a estrutura concreta com vista à independência. Esta separação tinha o propósito de atenuar o carácter monolítico do documento e consentir a apresentação do problema por fases. Se eu conseguisse ter êxito na minha aproximação com Lisboa, apenas exibiria o primeiro "papel" (o dos princípios) como passo mais fácil de ser aceite. Se sentisse encorajamento avançaria, então, com o segundo "papel" mas, na hipótese de insucesso, saberíamos em que terreno estávamos e não teria revelado os propósitos mais concretos que nos animavam. Por outro lado, tínhamos de estar seguros da concordância da "Frelimo" com os expressos termos normativos, contidos no segundo "papel", e para isso, teríamos de pedir garantias aos Dr. Kaunda.

Este procedimento parecia-nos indispensável na difícil posição de negociarmos com os dois lados.

b) No texto, propunhamos substituir todas as expressões que tivessem sentido anti-colonialista ou de condenação da política portuguesa seguida em relação ao Ultramar. Tratava-se, aparentemente, de preocupação secundária, mas a verdade é que o fraseado muito poderia afectar a sensibilidade dos governantes portugueses.

c) Reforçámos a referência à condenável e, sobretudo, indesejável intervenção das grandes potências nos assuntos africanos. Pelo nosso lado, visávamos o bloco comunista (aliás expressamente referido no texto inicial), mas concordávamos em que essa preocupação se dirigisse ao imperialismo capitalista que pretendíamos ver arredado das nossas soluções.

Na imagem: Zimbabwe (antiga Rodésia)

d) Não tocámos nas referências à República da África do Sul e à Rodésia. Nem tínhamos procuração para os defender, nem nos interessava fazê-lo em solidariedade com forças que cada vez mais pareciam desinteressar-se dos nossos problemas e cuja companhia nos era, ainda por cima, incómoda. Limitámo-nos a acautelar, realisticamente, a indispensabilidade da cooperação económica, separando-a da colaboração política e militar.

e) Reforçámos os aspectos ligados ao multi-racialismo, com ênfase na "Comunidade Lusíada" e procurámos generalizar os princípios aos outros territórios ultramarinos portugueses, evitando concretizações que poderiam ser contrárias às diferenças estruturais.

f) Admitíamos, expressamente, a participação da "Frelimo" na futura estruturação político-administrativva de Moçambique, mas sem aceitar que a sua posição (eventualmente dominante) viesse a ser exclusivista. Procurávamos defender o possível pluralismo, com representatividade de todas as forças autenticamente existentes.

g) Encorajavam-se as fórmulas vagas, contidas no documento inicial, quanto à oportunidade de se concretizar a independência e quanto aos passos a dar antes disso. Todos carecíamos de tempo.

A essência das propostas formuladas pelo Presidente Kaunda (dois meses antes) era respeitada e os nossos últimos retoques foram já dados no "Intercontinental" depois da nossa chegada (ob. cit., pp. 107-120).

Continua

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (vi)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: alvorada em Lusaka (Zâmbia)

Compromisso solene

O presidente da Zâmbia confirmou, uma vez mais, a sua capacidade de ouvir e sintetizar conclusões. Apoiou o projecto que tínhamos esquematizado em conjunto, aceitando as modificações do "papel" original. Preocupou-se, de novo, em tranquilizar-nos quanto ao carácter não marxista da "Frelimo" (sem que nós, em tal, houvéssemos insistido) e garantiu-nos a concordância dos dirigentes nacionalistas para a plataforma estabelecida.

Entre mim e Mark Chona esboçou-se o jogo delicado de atribuirmos um ao outro o mérito do que tinha programado e a consequente paternidade dos "papéis". O Dr. Kaunda interveio para decidir: "Pois bem, os papéis são meus". Com esta certidão de baptismo, concordámos em que fossem redigidos por forma a sempre se apresentarem como propostas do Governo da Zâmbia, embora na verdade traduzissem um acordo. Isso me evitaria ou atenuaria dissabores se os "papéis" fossem parar ao conhecimento de terceiros.

Neste ambiente, o Presidente Kaunda interessou-se por conhecer as perspectivas da política portuguesa face às eleições que se avizinhavam. Descrevi-lhe as dificuldades que enfrentava o Doutor Marcello Caetano situado entre as crescentes pressões provenientes da extrema-direita e da extrema-esquerda.

À margem do nosso "programa", foi este o ponto que mais prendeu a atenção do Dr. Kaunda, deixando para plano secundário o "caso de Wiryamu" em referência ao qual mencionei as investigações realizadas e a declarada firmeza governamental de punir os responsáveis. Denunciei-lhe actos condenáveis de agressão terrorista às populações, praticados, comprovadamente, por guerrilheiros da "Frelimo".

O Dr. Kaunda foi muito sensível às atrocidades que lhe descrevi e pediu-me para lhe transmitir indicação dos locais exactos, datas em que esses crimes tivessem sido cometidos e informação quanto aos presumíveis culpados.

Falámos, ainda, dos nossos comuns propósitos para se obter a "descalada" da guerra e acentuei o carácter provocador que poderia assumir a infiltração de rampas de mísseis a partir do território da Zâmbia. Sabíamos que este equipamento já começara a ser desembarcado em Dar-es-Salaam. De tudo tomaram nota, cuidadosamente e voltou a acentuar-se a mais inteira convergência de intenções.

Por último e quase ao despedirmo-nos, afirmei ao Presidente Kaunda que a partir daquele momento me consideraria ligado para sempre ao nosso acordo (que ficou baptizado como "Programa de Lusaka") que desejava resumir numa simples frase que disse em português e Pombeiro de Sousa traduziu: "Paz para todos, sem desonra para alguém". O Dr. Kaunda fez questão de anotar a frase, em português, afirmando que ela expressava fielmente as suas ideias e sentimentos.

Ao separarmo-nos disse-me, textualmente, num prolongado aperto de mão: "Agora, meu irmão, estamos comprometidos, solenemente, em levar a cabo a missão que nos propusemos. Tenho a certeza que, com a ajuda de Deus, o haveremos de conseguir. Pode sempre contar comigo, como eu contarei consigo. Tal como confiamos em si, pode confiar em que nunca o abandonaremos.

Nova e exaustiva sessão de trabalho nos estava reservada para o dia seguinte.

Esgotámos quatro horas (das 9 às 13) dando redacção final aos dois papéis. Nesta fase última, em qua a eficiência das dedicadas dactilógrafas bem foi posta à prova, interviemos: Mark Chona, Peter Kassanda, Pombeiro de Sousa e eu.

Não carecerei de adjectivar a quase euforia que nos dominava e, pelo menos, o texto tinha o mérito de ser claro, embora a forma, contendo repetições resultantes da conjugação de ideias coincidentes, não constituísse um modelo de redacção.

Nenhum de nós buscava o solenismo dos protocolos diplomáticos.

Por isso não deixámos lugar à possibilidade de interpretações ambíguas.

Tudo o que ficou escrito tinha uma só forma de ser lido.

Assim surgiu o "Programa de Lusaka" datado de 12 de Setembro de 1973.

(...) Nada tem ele que ver com o Acordo de Lusaka que ali veio veio a ser assinado, pelos obreiros da descolonização, em 7 de Setembro de 1974.

(...) Comentários ao "Programa"

A reprodução exacta e integral (...) permite analisar o conteúdo do "Programa de Lusaka" e realizar a comparação com a proposta inicial do Presidente Kaunda (...) medindo-se o alcance das alterações introduzidas. Volto a insistir, no entanto, que essas alterações não resultaram de qualquer arranjo ardiloso mas que, muito ao contrário, foram medidas palavra por palavra para traduzirem pensamento inequívoco.

Interessa, assim, salientar que o reconhecimento da posição da "Frelimo", na conjuntura moçambicana, constituía objectiva aceitação das realidades, mas não significava a entrega da autoridade política no território, sem prévia consulta popular. Por isso se escreveu no final da alínea 4. do "papel" que continha a definição dos princípios: "Os Movimentos Nacionalistas, tais como a "Frelimo", devem ser econhecidos como importante factor político cuja participação, no formular da futura estrutura política, não pode ser ignorada".

Para tornar a ideia ainda mais explicita, escrevia-se na alínea 6. do mesmo "papel": "Os dirigentes nacionalistas têm demonstrado a sua disposição para examinarem a criação de condições para a negociação da futura evolução constitucional de Moçambique" .

Este aspecto essencial veio a ser completamente abandonado no acordo de 1974, em obediência a planeada capitulação.

O nosso "Programa de Lusaka" continha, por outro lado, alguns outros pontos fundamentais que se afigura interessante e oportuno destacar:

1 - Pretendia-se desenvolver Moçambique como país estável e próspero, constituindo uma zona de paz em condições de harmonia racial e de justiça que proporcionariam à população de origem portuguesa ou a ela assimilável, melhoria de oportunidades para se integrar na nova nação.

2 - Reconhecia-se e louvava-se a política multi-racial portuguesa cujo prosseguimento se acautelava, diferenciando-a dos casos rodesianos e sul-africanos. A partir daí encarava-se a formação de ampla "Comunidade Lusíada", com a desejável participação do Brasil, na qual Portugal assumira uma posição dominante.

3 - Assegurava-se que a língua portuguesa se conservaria como "língua franca" (o que representava mais do que admiti-la como "língua oficial"), que a cultura lusíada se expandiria em dignidade e respeito, que a educação seria predominantemente de inspiração portuguesa e ministrada por professores portugueses e que as condições religiosas seriam influenciadas pela tradição portuguesa.

4 - Os interesses económicos e financeiros portugueses não só seriam preservados como beneficiariam de tratamento favorecido, como condição para qualquer acordo.

5 - No campo militar, entendia-se que a independência não poderia conduzir a que as grandes potências se aproveitassem do cessar da soberania portuguesa e que, concretamente, nenhuma potência comunista iria preencher o vazio resultante. Nesse delicado campo considerava-se indispensável que se definissem compromissos concretos.

Na imagem: zoologia africana (Tanzânia)

6 - A Zâmbia e a Tanzânia afirmavam a sua orientação não comunista e asseguravam que nunca seriam "testas de ponte" para qualquer infiltração política do comunismo. Estes países (e obviamente o Malawi) defenderiam, em qualquer emergência, as comunidades de origem portuguesa.

7 - A oportunidade para se concretizar a independência seria negociada logo que fossem acordadas as bases necessárias.

Poderá estranhar-se que as repetidas referências ao carácter não-comunista da "Frelimo", constantes do documento proposto pelo Presidente Kaunda, em Julho, tenham desaparecido do texto do "Programa de Lusaka". A iniciativa dessa supressão foi minha por entender que, se aceitavam a doutrina que no "Programa" se continha, não podiam ser comunistas, com certeza. E, não o sendo, essa dispensável redundância podia ter reflexos desagradáveis.

Embora este "Programa" fosse delineado para Moçambique (e isso porque sempre me recusei a considerar o caso de outros territórios cuja situação não conhecia com suficiente detalhe) algumas referências contidas no articulado evidenciam que os mesmos princípios deveriam ser, recomendavelmente,aplicados às demais parcelas do Ultramar. A expressão "colónias", por mim intransigentemente rejeitada, foi por completo eliminada. Essa alteração teve significado político que não pode passar despercebido.

Obviamente que o "Programa de Lusaka" não representava um acordo, para cuja aceitação nem sequer eu tinha qualidade. Traduzia, porém, uma orientação e uma agenda de trabalho para os contactos oficiais que desejávamos ver estabelecidos. Os negociadores dispunham, assim, de caminho balizado por princípios claramente definidos.

Nessa altura parecia-nos, com razoável fundamento, que se havia arquitectado a solução mais justa e equilibrada.

É provável que alguns críticos apaixonados encontrem no "Programa de Lusaka" vestígios preocupantes de neo-colonialismo ou de defesa de certos privilégios. Posso assegurar que nunca nos moveu tal intenção. Mais do que isso, porém, faço notar que essa manobra só seria possível com a conivência expressa do Presidente Kaunda (a cuja exclusiva iniciativa se ficou a dever o texto inicial sobre que o "Programa" veio a redigir-se) e que teria o apoio do Dr. Nyerere, do Dr. Banda e do próprio Samora Machel. Parece, pelo menos, um exagero considerá-los a todos, como suspeitos de albergarem tais propósitos.

Sondagens entre os militares

Pelo que respeitava às Força Armadas, as sondagens que tínhamos efectuado davam-nos a certeza de contarmos com a simpatia dos corpos de élite das unidades metropolitanas (pára-quedistas, comandos e em certa medida fuzileiros, além de considerável número de pilotos militares) sendo dubitativa a atitude dos escalões superiores. As unidades moçambicanas (designadamente, os "Grupos Especiais" e os "Grupos Especiais Pára-quedistas", respectivamente conhecidos por "GE" e "GEP"), não havia dúvida de que nos acompanhariam e o seu potencial era acrescido pelas "milícias" e pelas populações em "auto-defesa", armadas e disseminadas por todo o território.

Na imagem: Carmo Jardim

Estes homens (GE, GEP, milícias e auto-defesa) estavam mentalizados para lutarem por um Moçambique governado por moçambicanos, sem quebra de se conservarem laços com Portugal, cuja colaboração no futuro do país se entendia ser indispensável. Com eles mantinha eu estreito contacto, acompanhando-os em exercícios e operações e a minha filha Carmo tinha a seu cargo a preparação de um grupo de treino mais avançado dos "GEP", sem perder ensejo de intervir operacionalmente.

Combatiam a "Frelimo", na medida em que esta se opunha à realização daqueles objectivos ou servia de veículo à introdução de ideologias que conduziriam a novo colonialismo. Por outro lado, só o pretexto de combater a "Frelimo", dada a carência de unidades metropolitanas ou o desinteresse generalizado em muitas delas, tinha permitido erguer a poderosa força das tropas moçambicanas destinadas a manterem-se, depois da independência, como corpo militarizado que garantiria a lei e a ordem do território.

A doutrinação destas unidades havia sido encaminhada em termos adaptados à formas de ser africana, respeitando os seus valores culturais. Essa mentalização estava por tal forma consolidada que, depois do "25 de Abril", quando oficiais portugueses iniciaram o esclarecimento sobre os rumos da auto-determinação, se encontraram perante a resposta generalizada de ter sido exactamente isso o que a Carmo, e outros instrutores lhes haviam dito muito antes.

À nossa influência só escaparam, sempre, os "Flechas" (corpo militarizado da "DGS") e algumas "milícias" distritais como as que dependiam do famoso comandante Roxo.

Em contrapartida, dispunhamos de sólidos contactos com os "comandos" formados em Montepuez, na sua quase totalidade de recrutamento moçambicano, que constituíam verdadeira formação de élite dotada de alto grau de eficiência militar.

Não seria, pois, pelo lado das tropas que o "Programa" correria risco de difícil concretização.

Análise do xadrez político

No xadrez político também o panorama tinha de ser analisado. Desde a competição presidencial, em que interviera o Gen. Humberto Delgado, tornava-se cada vez mais nítido que as forças democráticas tendiam a ser dominadas, em Moçambique, pelas correntes extremistas que de "democratas" só conservavam o nome. A linha comunista (ou, para ser mais exacto, a linha marxista-soviética) apoiada no activismo de umas dezenas de militantes, defendia, em consonância com dirigentes exilados ou actuando em Portugal, a teoria do abandono e da entrega dos territórios ultramarinos aos movimentos emancipalistas mais da sua simpatia.

Recordo as apreensões que, já em 1959, a esse respeito me transmitira o Dr. Marcial Ermitão que se dera conta da infiltração marxista nas forças oposicionistas, durante a campanha eleitoral. O Dr. Ermitão havia estabelecido banca de advogado na Beira depois de haver sido deportado para Moçambique, no seguimento da falhada revolução na Guiné. Fora oficial do Exército com brilhante folha de serviços e altas condecorações. Era genuíno republicano e democrata, em firme e coerente oposição ao regime do Doutor Salazar.

Em torno dele e do grupo dos "históricos" (como Cardiga, Dr. Palhinha, Dr. Neves Anacleto, Carvalho e Dr. William Pot) tinha-se reunido grupo mais jovem com alguns idealistas (como Francisco Barreto, Dr. Alberto Moreira, Nunes de Carvalho e Nogueira Pereira) e com outros que cedo denunciaram os seus propósitos pouco democráticos. Estes activistas quase que haviam assaltado o comando da campanha oposicionista causando graves apreensões ao honesto Dr. Ermitão.

De resto, o fenómeno não era exclusivo de Moçambique e alargava-se a todo o território nacional.

Esta orientação que se desenhava (e tentei combater) veio a ser comprovada à sociedade demonstrando-se, depois do "25 de Abril", o acerto das minhas denúncias. Veremos, adiante, como isso se processou e a estratégia que seguiram.

O pior é que esta actuação extremista se confundia com os anseios dos verdadeiros nacionalistas moçambicanos, existentes no interior do país e até acabava por os confundir na via pela qual expressavam os seus anseios.

Ao mesmo tempo, essa agitação política motivava reacções da extrema oposta que encontrava argumentos para combater tudo o que tivesse vislumbres de separatismo e sem medir as diferenças profundas que existiam entre o "abandono", preconizado pelos "democratas", e a "evolução para a independência" defendida pelos nacionalistas.

A confusão era habilmente conduzida pelos marxistas e ingenuamente combatida pelos opositores.

Entre os dois extremos, tínhamos de tomar a posição de combater o abandono enquanto condenávamos o integracionismo. Por isso, na campanha eleitoral de 1973, optei por defender consistentemente as teses do Presidente do Conselho em favor da "autonomia progressiva e participada", com todos os meios que tinha ao meu alcance.

Aí, fui apanhado, muitas vezes, no turbilhão das emoções e no calor das discordâncias. Não tinha alternativa e esforcei-me por salvaguardar o que era essencial à marcha de Moçambique para o futuro.

Nesse confronto eleitoral, de Outubro de 1973, a expressão mais conflitiva situou-se, na Metrópole, em torno do problema ultramarino. Em Moçambique, isso foi mais limitado por a actividade oposicionista ter sido arredada, por expediente administrativo e verdade seja que sem reacção muito viva por parte dos excluídos. Limitaram-se a protestos formais, em papel selado, acontecendo mesmo que o principal signatário de um deles me referiu, pessoalmente, o carácter profissional com que se limitara a intervir e a falta de convicção sobre as teses expendidas. Tratava-se do Dr. António de Almeida Santos. (...)

Tudo começou na Beira

Em Janeiro de 1974, precipitavam-se, em Moçambique, acontecimentos que vieram a ter, na vida nacional, impacto que era dificilmente previsível.

Certas acções de guerrilha afectaram o distrito de Vila Pery causando a morte de colonos europeus e a destruição de propriedades. Desencadearam-se reacções descontroladas ou habilmente exploradas por parte da população branca e que atingiram o paroxismo quando uma família foi brutalmente atacada na zona de Vila Manica, próximo da fronteira com a Rodésia.

Estava eu no Malawi quando isso sucedeu e ao deslocar-me a Tete fui ali informado de que havia eclodido, na Beira e em Vila Pery, um movimento de protesto contra a actuação militar e que essas demonstrações tendiam a alastrar a outros pontos do território.

Compreendi, desde logo, que se estava em face de manobra destinada a confrontar a população civil e as Forças Armadas, afectando o que restava de confiança mútua e destruindo a solidariedade que era indispensável manter na "frente interna". Se tudo se esboroasse, abrindo fendas difíceis de colmatar, a "Frelimo" encontraria campo propício ao seu progresso e não precisaria de discutir soluções, depois de conquistado o terreno e dominadas as vontades.

Por isso andei numa roda viva de Tete para Nampula, para Vila Pery e por último para a Beira.

Consegui serenar os ânimos, evitar arremetidas de desespero, impor alguma disciplina e detectar agitadores que me foi possível neutralizar.

Mas não me foi possível impedir o que havia já acontecido e conduzira, na Beira, a manifestações exaltadas que remataram com o ataque de populares à Messe dos oficiais, no Macuti, a par de insultos incríveis.

Tudo extremamente grave e prejudicial para os altos interesses em jogo.

Para além disso, os acontecimentos prejudicavam seriamente os meus propósitos.

Importa deixar registado que a agitação teve o seu princípio num apelo da Associação Comercial da Beira para que os estabelecimentos encerrassem as portas em sinal de luto pelo assassinato cometido nos arredores de Vila Manica e consequente protesto contra a inoperância das forças militares. Com a paralização das empresas, foram lançadas para a rua milhares de pessoas, em estado de excitação emocional, criando-se as condições para serem manipuladas pelos agitadores.

O que é notável e por isso o sublinho desde já, é que o método voltou a ser repetido (e de novo com êxito) em Lourenço Marques, apenas alguns meses volvidos. Adiante o recordarei.

A Associação Comercial, que havia sido assaltada pela influência liderante dos "democratas", fora habilmente motivada por homens como Malaquias de Lemos, Afonso dos Santos, Manuel Rezende e Armindo de Brito.

Na maior parte eram "Frelimistas" convictos (como vieram a revelar-se ou declarar-se) que aproveitavam um acto de guerra da "Frelimo" (cujas características nunca vieram a ser exactamente esclarecidas) para levantarem as populações europeias em manobra cujos intuitos transparecem hoje nítidos: provocar a afronta aos militares e levarem estes à reacção de desforço inevitável que se integrava no planeamento estabelecido.

O movimento desencadeado tinha, para mais, cunho vincadamente racista que lhe emprestava tonalidades antipáticas. Poucos dias antes tinha-se registado horrível massacre dos habitantes africanos de um aldeamento, em Tete, sem que uma só palavra de repulsa se ouvisse.

Nessa altura, surgia na Beira o Gen. Costa Gomes que se instalou em casa de uma sua irmã e com aparato de protecção pessoal realmente notável.

Na imagem: o Ministro do Ultramar, Silva Cunha, em Tete (Moçambique)

O dispositivo de escuta de que dispunhamos nos correios, graças a cumplicidades dedicadas, veio a informar-me que em resposta a sugestão do Ministro da Defesa (Prof. Silva Cunha), feita de Lisboa, o general referia a impossibilidade de se deslocar a Vila Manica, "por não existirem condições de segurança". Isto, apesar de contar com meios de que mais ninguém dispunha e de escoltas com que os colonos nem sequer podiam sonhar.

O mais notável, porém, foi ver surgir os mesmos farisaicos promotores das manifestações beirenses como lídimos representantes da população e serem recebidos por Costa Gomes, a quem entregaram exposição dirigida ao governo e que o chefe do Estado Maior General lhes prometeu que seria devidamente considerada. Nesse documento (que se afirmava expressar o sentir da opinião pública, mas foi elaborado, no mais absolito segredo, no escritório de Afonso dos Santos) atacava-se o comportamento dos militares, preconizava-se a solução política do problema moçambicano, pretendia-se a aberta discussão das soluções e sugeria-se uma ampla consulta popular.

Foi este o primeiro contacto, evidente, de Costa Gomes com essa minoria activista. Apesar de tudo, ainda hoje me faz impressão lembrar como foi possível a um chefe militar receber, flacidamente, um papel dirigido contra os seus camaradas que em Moçambique se batiam.

A menos que se tratasse de incrível encenação planeada com outros fins.

Essa hipótese, no entanto, melhor explicaria a perturbação que lhes causou a minha interferência ao conseguir controlar as populações e evitar que os incidentes assumissem a dimensão que estava planeada com a marcha (que sustive) dos colonos do Chimboio sobre a Beira.

O Cor. Pinto Ferreira, desprestigiado comandante dos "GEP", cuidou de construir a tese, que alguém lhe inspirou, de ser eu o responsável pelos levantamentos populacionais. Sustentava-se que se me tinha sido possível dominá-los isso só significaria que os havia desencadeado.

Houve quem chegasse, honestamente, a acreditar nesta versão fantasista mas, politicamente, conveniente. Todavia, certos documentos apreendidos depois do "25 de Abril" demonstraram que eu não tivera a inventada intervenção provocadora.

A reacção dos militares

A reacção dos militares não tardou a surgir, pela forma desejada.

O "Movimento dos Capitães" (até essa altura marcadamente profissional e mesmo de defesa de classe) encontrou a motivação politizadora que o converteu no "Movimento das Forças Armadas". Tudo nasceu na Beira.

Os "democratas" (marxistas) cumpriram os objectivos que lhes tinham sido assinalados.

Os oficiais mais dignos converteram-se, por o serem, em agentes da rebelião extremista ao reagirem contra o gravame que os atingira. O texto dos seus telegramas, das circulares e das exposições dirigidas aos altos ccomandos agudizava-se progressivamente.

Efectivamente, em 21 de Janeiro, o directório do "Movimento" (em Nampula) fazia seguir a mensagem telegráfica que transcrevo:

"Virtude actos terrorismo fazenda Vila Pery população civil esta cidade, Vila Manica e Beira realizou manifestações. Na cidade Beira manifestação realizou-se em 17 JAN 74, começou junto edifício governo distrito, terminou messe oficiais. População civil evidenciou falta confiança FA, apedrejou edifício messe, partindo vidros, disparou alguns tiros pistola sobre o mesmo. Começam concretizar-se nossos receios criação bode expiatório. Solicitamos medidas urgentes conduzam impedir FA continuem sendo enxovalhadas.

Clique na imagem para ampliar

Manifestações Beira já referidas e repetidas dia seguinte com pedradas, insultos ao Exército incluiram general comandante chefe que foi alvo directo insultos. Cidade Vila Pery situação agrava-se ameaçando recontros entre população civil europeia e Exército. Cap. Cmds. Garcia Lopes ferido consequência pedrada. Elaborado texto documento para apresentar general Costa Gomes altura sua vinda Nampula e circular ser subscrita todo pessoal exigindo medidas imediatas. Sugerimos medidas referindo manifestações e declinando responsabilidade situação subversiva, exigindo PRETO NO BRANCO. Prestígio FA muito afectado, enxovalho ameaça irreversibilidade".

Imediatamente (em 23 de Janeiro) a comissão coordenadora do "Movimento" (a cuja direcção presidia o Cor. Vasco Gonçalves) difundia, em circular, aquele texto considerado o motivo imperioso e solidarizando-se com os anseios dos camaradas de Moçambique, anunciando o propósito de contactar imediatamente como "o mais alto escalão militar".

Para isso, aliás, não parecia ser necessário que os oficiais de Moçambique se deslocassem muito longe, uma vez que o Gen. Costa Gomes (máximo escalão militar) andava, ostensivamente, por terras moçambicanas (em zonas onde houvesse "condições de segurança") encontrando tempo para recepções e banquetes, sem que os enxovalhados denunciados lhe quebrantassem o apetite ou lhe moderassem o luzido uso das condecorações.

Oficiais mostraram-me o texto da carta-circular que lhe foi dirigida, por intermédio do comandante-chefe e em que exigiam, sem eufemismos, "a demissão imediata do governador da Beira e demais autoridades coniventes na passividade, perante as manifestações" e "imposição às entidades competentes que tomem as medidas necessárias para que não se esbocem sequer semelhantes factos". Isto era exposto colectivamente afirmando-se que "os abaixo assinados não podem deixar de assumir drástica posição, caso não venham a ser tomadas, de imediato, as medidas apontadas".

Quando conheci o documento, observei que os termos usados me pareciam pouco compatíveis com a noção que eu tinha da disciplina e comentei que se fosse eu a receber um tal papel e tivesse farda com estrelas nos ombros, não hesitaria em actuar de acordo com o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) independentemente do número, da qualidade e da razão dos oficiais signatários.

Em resposta ouvi a jocosa observação: "Na verdade deveria ser assim, mas nós sabemos a quem estamos a escrever!"

Aquelas circulares tiveram ampla expansão em todos os sectores (dos quartéis às universidades, das empresas aos jornais) comprovando a capacidade de difusão de tudo quando seja clandestino.

Os incidentes da Beira (que só não foram mais graves porque eu o impedi) assumiram o simbolismo a que estavam destinados. Converteram-se em argumento revolucionário e fundamento reivindicativo.

Quando poucas semanas mais tarde (em Março de 1974) se difundiu em Lisboa o documento intitulado "O Movimento, as Forças Armadas e a Nação" (com orientação política que havia de servir de base ao programa do "MFA") afirmava-se a certa altura:

"À medida que as guerras em África se iam prolongando, as FA descobriram, não sem espanto por parte de muitos militares que pela primeira vez viam claro, o seu divórcio real da Nação. As FA são então humilhadas, desprestigiadas, apresentadas ao país com o responsáveis máximos do desastre.

Estava inventado o "bode expiatório" e criadas as condições para qua Nação deixasse de confiar nas suas FA. E, daí em diante, o desprestígio das instituições militares não deixa de aumentar".


Depois desta análise de quase auto-crítica (que não seria despropositado repetir, em 1976, em face da responsabilidade que as Forças Armadas tivessem no desastre descolonizador) o referido "documento" retoma o tema para recordar:

"As FA aparecem cada vez mais aos olhos da Nação, como o grande responsável não só do impasse africano, como da crise geral que atinge o país, o que não é só crise política, como também económica, social e moral.

Alarga-se assim o fosso entre as FA e a Nação, aumenta o desprestígio dos militares (os recentes acontecimentos da Beira, em Moçambique, vêm mais uma vez confirmar esta realidade por todos sentida), desprestígio esse que nenhumas medidas conjunturais poderão atenuar".


A gravidade daquela explosão popular, cuja manipulação referi, viria a ser recolhida pelo Doutor Marcello Caetano ("Depoimento", pág. 194) nos termos que a seguir reproduzo:

"O general Costa Gomes partia no dia seguinte, 17 de Janeiro, para Moçambique onde a situação se agravara. O ataque, em Manica, dos terroristas a uma fazenda e a morte de uma mulher europeia desencadearam uma onda de protestos, que por pouco se não traduziu em actos de violência da parte da população branca. E na Beira houvera manifestações em frente da Messe dos oficiais contra o que as pessoas consideravam inacção e desinteresse do Exército perante a agressividade do inimigo"

Esta síntese só evidencia como os acontecimentos de Janeiro atingiram todos os níveis e afectaram toda a gente. Para além de bem manobrados foram excelentemente explorados.

O Maj. Otelo Saraiva de Carvalho, tido como um dos principais obreiros da "revolução de Abril" e membro da direcção da coordenadora do "Movimento" na altura dos enfrentamentos, iria a confirmar mais tarde (em entrevista ao "Expresso" em 27 de Julho de 1974) a influência decisiva da reacção beirense na politização verificada, afirmando: "A partir de 17 de Janeiro, como os acontecimentos graves dos distúrbios da Beira, originados pela morte da mulher de um fazendeiro, a alguns quilómetros de Vila Pery, focalizámos a atenção dos nossos camaradas para a necessidade de entrar num campo aberto de luta contra o regime que estava constituído e que só nos "achincalhava".

Parece bem nítido, agora, que os acontecimentos da Beira (desencadeados sob a inspiração dos "democratas") foram o "detonador" da acção revolucionária que explodiu em Abril.

Era indispensável uma motivação para os "coordenadores" agitarem os sentimentos mais nobres dos seus camaradas, premeditadamente ofendidos. Nessa artimanha, manobrada pelos mais ardilosos, vieram a cair os mais sãos. E era esses que interessava motivar. Depois se controlariam ou saneariam.

Na imagem: Vasco Gonçalves, Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo

Por isso, em princípio de Fevereiro, o Gen. Costa Gomes regressava a Lisboa trazendo na bagagem o manifesto dos "democratas" de Moçambique e o texto da reaccão dos oficiais. Tudo vinha convenientemente misturado e doseado, para utilização oportuna.

Como obstáculo à conjugação deste xadrez (em que a sorte do Ultramar se jogava) apenas havia, para Costa Gomes, a minha intervenção perturbadora.

Eu tinha impedido que a onda de protestos se não houvesse traduzido "por pouco", em actos de maior violência. Isso não convinha a quem manipulava tal jogo.

Estava demonstrado que as populações me respeitavam, seguiam a minha orientação e me escutavam mesmo nos estados emotivos mais agudos.

Disso, ficaram sem dúvidas. Não podiam consentir que isso pudesse repetir-se (ob. cit., pp. 121-126; 142-145 e 163-169).

Continua

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (vii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Jorge Jardim e a filha Carmo Jardim

(...) informação esclarecedora foi-me dada pelo Comandante Alpoim Galvão que sempre muito apreciei e com o qual mantinha contacto.

Promovido por distinção, na Guiné, e condecorado com a "Torre de Espada" o Com. Galvão não se conformava com os rotineiros métodos clássicos de conduzir a guerra e procurava outras soluções para os conflitos que enfrentávamos. Fizera sugestões concretas ao Gen. Costa Gomes, pouco antes da minha chegada a Lisboa. Foi impedido de prosseguir com o esquema e ouvira o seguinte comentário, que me reproduziu: "Deixe-se disso e limite-se a cumprir as suas ordens militares. O único agente secreto "oficial" é o Jardim. E esse já chega".

Advertindo-me quanto ao significado desta reacção de Costa Gomes, o Com. Alpoim Galvão acrescentara, no seu estilo franco e pitoresco: "Tenha todo o cuidado porque ele lhe tem um pó que se nota. Desconfia que você planeia alguma coisa, mas não o pode provar. Fará tudo para o apanhar numa curva".

De outras origens amigas eu ia recebendo avisos para que me preparasse de modo a não ser surpreendido por alguma acção directa contra mim.

Acabei por me decidir a provocar uma conversa franca com Baltazar Rebelo de Sousa, numa tarde de domingo, em sua casa na Rua São Bernardo, à Estrela.

Apesar da nossa intimidade eu tinha de respeitar as limitações que lhe resultavam do cargo que exercia no governo e por isso compreendi que evitasse concretizar os avisos amigos que me deu.

Referiu-me que havia, nas altas esferas, soma apreciável de relatórios dirigidos contra a minha suspeita actuação. Eram provenientes de várias fontes e nem eu era capaz de suspeitar de quais elas fossem. Mencionou as especulações em torno da minha ligação com o Dr. Domingos Arouca, a agitação provocada pelo conhecimento das minhas viagens a Lusaka e, até, os rumores quanto ao meu entendimento com o Dr. Almeida Santos!

As denúncias classificavam o meu nacionalismo moçambicano como próximo de ser subversivo e apoiavam-se nos meus escritos no "NB" onde defendia soluções políticas que atentavam contra a unidade nacional.

Fiquei grato pela amizade das advertências e nem ousei comentar quanto era diferente o que lhe escutava em Lisboa daquilo que havíamos conversado em Moçambique. (...)

Sondagem de opiniões

Durante a minha permanência em Lisboa visitei com a frequência habitual o Gen- Kaulza de Arriaga.

Era tido como o representante da linha mais intransigente quanto à política ultramarina, mas é interessante registar que, paralelamente, o acusavam de preconizar ampla democratização da vida portuguesa, segundo os padrões ocidentais, e que nesse terreno classificava as tímidas aberturas de Marcello Caetano no âmbito da "renovação".

Contou-me os convites que recebera e recusara para participar no elenco governativo e referiu-me, até, o atrito surgido com o susceptível primeiro-ministro a quem enviara interessante livro de análise à situação portuguesa.

Na imagem: Kaulza de Arriaga e Carmo Jardim

Kaulza defendia que a eleição do chefe de estado deveria ser feita por sufrágio universal, para lhe garantir autêntica representatividade popular e preconizava a progressiva liberalização da imprensa para nela poderem expressar as tendências políticas inegavelmente existentes. A isto e nas largas horas de conversa, na sua casa da Avenida João XXI, opunha eu o receio da infiltração comunista e o eventual domínio das estruturas por uma minoria que sabíamos ser activamente militante e duramente disciplinada. Mas ele sustentava que era preferível correr tais riscos, minimizáveis pela autoridade que as Forças Armadas podiam assegurar a essas iniciativas democratizadoras, do que enfrentarmo-nos com uma explosão incontrolada que tinha todas as probabilidades de ocorrer.

Nisso, os acontecimentos vieram a dar-lhe razão.

Sendo certo que a intervenção de Kaulza fora decisiva, em 1961, para neutralizar a tentativa militar do Gen. Botelho Moniz (em que Costa Gomes participara) não é menos verdade que nunca tinha sido um salazarista incondicional. Acompanhei de perto a sua actuação nessa altura (quanddo fui chamado de Moçambique) e até colaborei, masi tarde, na revisão do relato que escreveu e veio a ser divulgado, parcialmente, com interpretações tendenciosas.

Kaulza de Arriaga apoiou nessa altura Salazar, como tantos o fizeram, por concordância com a sua atitude perante o problema ultramarino. Havia que travar uma chacina, que havia sido desencadeada com cerca de 2.000 vítimas em menos de dez dias, e que defender o multi-racialismo contra o ódio racial. Nunca o fez por concordância com a doutrina política do Presidente do Conselho.

Pode dizer-se que o inverso quase que se passou comigo e recordo que nessa altura criticou, amigavelmente,, a minha incondicional dedicação a Salazar. Chegou mesmo a afirmar-me, quando eu me opunha às suas críticas, que a minha inteligência parecia bloqueada em tudo o que atingisse o chefe do governo...

Como político e como militar, manteve-se sempre coerente com esta posição.

Mas é curioso anotar que a minha fidelidade ao pensamento de Salazar, que mais intimamente conhecia, me permitiu evoluir com o tempo (e sobretudo com a vivência das realidades) mais afoitamente do que Kaulza, na procura de soluções realistas para o Ultramar.

O Gen. Arriaga entendia que a questão ultramarina residia mais na descentralização descolonizadora do que na efectiva autonomia política dos territórios. No fundo a sua tese avizinhava-se da que veio a ser defendida pelo Gen. Spínola, no livro "Portugal e o Futuro" de que adiante me ocuparei.

Na sua concepção geo-estratégica, que lhe ouvi desenvolver no Instituto de Altos Estudos Militares quando participei num curso que organizou, os territórios ultramarinos (descentralizados administrativamente) só lucrariam em integrar-se num grande espaço, o da Nação Portuguesa, em época dominada pelas super-dimensões económico-políticas.

Aceitando o mérito da tese eu tinha, porém, que reconhecer que isso não respondia às realidades históricas e até emocionais que se consubstanciavam na ânsia dos povos em disporem de si próprios. Nem que fosse para decidirem integrar-se, mas livremente, numa "Comunidade" supra-nacional.

Afigurava-se-lhe que a opção por mim proposta continha o risco de comprometer aquilo que chamava a "opção nacional". Se o meu esquema fosse divulgado poderia enfranquecer a decisão dos combatentes e poderia conduzir a que muitos se inclinassem para uma posição de compromisso. Tal proposta , e sobretudo vinda de mim, debilitaria a condução da guerra e a viabiilidade de serem obtidas outras soluções.

Na imagem: Linha Maginot

Argumentei que se tardássemos em seguir a "minha opção" chegaríamos ao extremo de ver tombar a possibilidade de se manter a "opção nacional" sem dispormos de linha política de onde pudéssemos salvar o essencial. Parecia-me temerário confiar na capacidade de resistência dessa "linha Maginot" que, se fosse flanqueada, nos deixaria ante uma "terceira opção" dramática: a capitulação e o abandono.

Nisso, infelizmente, fui eu a ter razão.

Ofensiva desencadeada

Entretanto passava-se a tragi-comédia que o Doutor Marcello Caetano descreve no seu "Depoimento" (páginas 189 e 204) e da qual me chegavam filtrados ecos.

Sucediam-se as notícias sobre projectos de golpes e contra-golpes, com muita fantasia misturada à realidade da insatisfação galopante dos militares. O ambiente era de tensão. Nessa altura ainda não se criara o hábito de viver em clima "golpista".

O livro do Gen. António de Spínola estava prestes a aparecer e o seu conteúdo ia sendo desvendado, em hábil jeito publicitário.

Tendo merecido uma autorização ministerial, que demonstra o grau de confiança que o governo depositava no Gen Costa Gomes, o livro teve expansão sensacional.

Tanto como o livro, esgotaram-se as tiragens do parecer de Costa Gomes que vale a pena recordar. É documento de que não se deve perder memória.

Assunto: PORTUGAL E O FUTURO

1. O livro com o título em epígrafe escrito pelo sr. Gen. António de Spínola apresenta, de uma forma elevada, a solução que julga melhor para resolver o maior problema com que a Nação se debate - a guerra no Ultramar.

2. O Gen. Spínola defende com muita lógica uma solução equilibrada que podemos situar mais ou menos a meio de duas soulções extremas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a integração num todo homogéneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos extremistas da direita.

Não necessitamos desenvolver grande argumentação para concluirmos que essas soluções devem ser postas de lado, a primeira por ser lesiva dos interesses nacionais e a segunda por ser inexequível.

3. Julgo que o livro está em condições de ser publicado, acrescentando, mesmo, que o Gen. Spínola acaba de prestar desta forma, ao país, serviços que devem ser considerados tão brilhantes como os que com tanta galhardia e integridade moral prestou nos campos de batalha."


Por motivo das viagens que referi, apenas tive possibilidade de obter o livro ao regressar a Lisboa, em 28 de Fevereiro, e de conhecer cópia do parecer que o havia apadrinhado.

Li e reli atentamente aquelas 250 páginas duma prosa que tinha o inegável mérito de afirmar o que criticamente quase toda a gente dizia mas que continuava a deixar sem solução os problemas que a todos preocupavam. Efectivamente, o renascer tardio da tese do federalismo (ultrapassada pelos anseios que se haviam corporizado) corria paralelo com um confuso esquema de autodeterminação a decidir pela soma dos votos de todos os povos que se encontravam integrados na soberania portuguesa.

No "Portugal e o Futuro" escrevia-se concretamente (a páginas 108) o que a seguir reproduzo:

"Mas se por portugueses de hoje entendermos todos os que por lei são cidadãos, a sua esmagadora maioria é africana; e como tal, bem diversa terá de ser a concepção de vontade colectiva e do "facto nacional". A vontade colectiva dos vinte e cinco milhões de cidadãos nacionais é por certo diferente daquela em que pretende fundar-se um artificioso conceito de "facto nacional" e que, como tal, é afastado da discussão."

A ideia de conceber uma "vontade colectiva", expressa democraticamente pela maioria aritmética dos votos daquelas diversas gentes, arredava a possibilidade de se afirmar a "vontade autêntica" de cada um dos territórios. Os pobres guinéus ou os remotos timorenses ficariam diluídos nessa vontade abstracta e nunca mais poderiam fazer escutar a sua voz.

Construindo esse novo "facto nacional", tão artificioso como aquele que se condenava, ignorava-se a realidade já viva de distintos "factos nacionais" só polarizáveis, livremente, no conjunto da "Comunidade Lusíada". Embora fosse certo que o autor apontava para esse objectivo, deixava-se enlear em espiral de contradições que o levava a definir os contornos da "Comunidade Portuguesa", com conteúdo muito diverso e em que o Brasil caberia.

Assim, afirmava (a páginas 125):

"O Ultramar tem que ser parte integrante da Nação: e sê-lo-á, todavia, mas em quadro diferente, e é por isso que realmente valerá apena lutar".

Com tais conceitos certamente que a luta continuaria. Era impensável que as vontades locais se submetessem à vontade colectiva, por mais democrática que fosse a forma desta se afirmar. Surgiriam problemas de rebeldia ou agudizar-se-iam os já existentes, com a consequência de se agravarem as tensões com a Metrópole (desproporcionada detentora de mais de um terço da "vontade colectiva") em vez de se estreitarem os laços que era viável manter.

Ninguém, fora das fronteiras, apoiaria tal forma de autodeterminação e o estudo dos resultados parciais do sufrágio daria renovada autoridade às forças interessadas em explorar a divisão.

Correndo tudo pelo melhor, acabaríamos por regressar ao ponto de partida sem resolver o problema da guerra no Ultramar.

Mais realista era a política da "autonomia progressiva e participada" que o Doutor Marcello Caetano adoptara e não recusava a independência se esta traduzisse a vontade local, autenticamente expressa. Várias vezes, perante mim, o tinha admitido e confirma no seu livro que ao governo português nunca repugnou tal ideia.

De todo o modo, o impacto de "Portugal e o Futuro" foi tremendo. Nunca terá havido livro tão sofregamente lido em todos os quadrantes portugueses e as sínteses publicadas no estrangeiro (acentuando, sobretudo, as críticas formuladas à política ultramarina) tiveram destaque invulgar.

O movimento militar, que se corporizava, encontrou nesta obra e no prestígio pessoal do seu autor a alavanca impulsionadora de que carecia. Ao longo das suas páginas cada um descobria a frase ou argumento mais do seu agrado.

Pode compreender-se isso como atitude honesta dos menos politizados, mas o apoio de sectores solidamente doutrinados só pode ser explicado pelo propósito de erguerem o livro como estandarte de revolta e para depois o abandonarem como inútil bandeira ideológica.

Foi isso o que veio a acontecer.

Se os acontecimentos da Beira actuaram como detonador do "Movimento", o livro funcionou com carga explosiva.

Abusos de confiança

Quanto ao apadrinhamento contido no parecer do Gen. Costa Gomes, os factos passados posteriormente (na "original" descolonização portuguesa) evidenciavam a exploração premeditada e oportunista que o conduziu.

Porque inteligência lhe não falta é impossível acreditar na sinceridade com que condenava as independências dos territórios ultramarinos como lesivas dos interesses nacionais, enquanto que só arredava a tese integracionista por a entender inexequível. Até parecia, no que escreveu, que este caminho integracionista não lhe era, em si mesmo, desagradável.

Na imagem: António de Spínola, à direita

Considerava como equilibrada a solução defendida pelo Gen. Spínola que tinha de saber, pelas mesmas razões de inteligência, não oferecer a mais remota viabilidade. Tanto assim que nunca a tentou ou encorajou sempre que lhe competiu intervir no processo da descolonização.

Não vem ao caso discutir a versão oficial de que a aprovação do ministro, para a publicação de "Portugal e o Futuro" foi dada sem conhecimento do texto e louvando-se, apenas, no parecer do Gen. Costa Gomes.

O que é certo é que este nunca desmentiu essa alegação do governo, apesar de não lhe haverem faltado meios e tempo para o fazer. Parece indiscutível que aceita essa verdade que traduz a extrema confiança depositada, pelo doutor Marcello Caetano, no chefe do Estado Maior General.

E também importa reter, desde já, que o texto do livro foi levado pelo Gen. Costa Gomes na sua maleta de serviço, quando se deslocou a Moçambique em coincidência com os acontecimentos da Beira.

Tinha-o, pois, em seu poder quando começou a politização do "Movimento dos Capitães", em mais uma das coincidências que caracterizaram a sua intervenção no processo revolucionário português.

No regresso a Portugal, e como se não se desse conta do que em seu redor se passava, não perdeu tempo em apresentar o parecer tranquilizador, nos termos que anteriormente recordei.

Beneficiava, para isso, da confiança que nele depositava, também, o autor do livro.

"Portugal e o Futuro" converteu-se no instrumento de um desastre histórico. Ainda que contra os intuitos generosos de quem o escreveu, como generosas haviam sido as manipuladas motivações da população da Beira e como também foi a reacção dos militares injustamente agravados.

Povos inteiros vieram a ser sacrificados, sepultando-se nos escombros, a "vontade colectiva" de vinte e cinco milhões de pessoas.

Por coincidência, no deflagrar e na condução oportuna do processo, existe o traço comum da presença de uma pessoa: o Gen. Costa Gomes.

Coincidência que se repetiu na oportunidade do parecer, apoiado na confiança simultânea do governo e do general que escrevera o livro.

Não é de mais repeti-lo.

Porque parece estarmos perante um duplo abuso de confiança.

E que não veio a ficar por aí.

Oposição e doutrina

Estávamos em Março de 1974 e, nos primeiros dias do mês, desloquei-me ao Principado de Liechtenstein para participar numa reunião do Instituto de Estudos Políticos que regularmente se congrega em Bendern, a poucos quilómetros de Vaduz. Sempre dediquei o meu interesse a esses encontros, onde convergem personalidades europeias de reconhecido mérito, desde que ali fui introduzido pela mão amiga do Almirante Sarmento Rodrigues.

As sessões de trabalho permitem a actualização de conhecimentos informativos no âmbito de estudos conduzidos com objectividade e no mais aberto diálogo tolerante das várias tendências em presença.

Acompanhei o Prof. Adriano Moreira, a quem me prende funda amizade, e ali nos encontrámos com o Dr. Serra Brandão, economista e antigo oficial da Marinha que desempenhava altos cargos de confiança governamental nos Caminhos de Ferro de Benguela e na Companhia Mineira do Lobito.

Para além do programa do Instituto seria inevitável que conversássemos os três sobre o livro do Gen. Spínola que levara comigo e cedi aos meus companheiros para leitura.

Adriano Moreira, a quem as teorias do federalismo nunca tinham atraído, considerava inviável a solução preconizada. Por outro lado, não acreditava que o Doutor Marcello Caetano levassse a qualquer bom termo as teses da "autonomia progressiva".

Em claro antagonismo ao hesitante acompanhamento político do governo, entendia que só uma radical modificação, autenticamente liberalizadora, da cena portuguesa, poderia impedir que a comédia que em seu entender se representava, viesse a degenerar em tragédia. Citou os atropelos cometidos na Universidade, a atrofia intelectual do país e a estagnação da capacidade imaginativa que, pela selecção de medíocres, se projectava no governo.

Na imagem: Adriano Moreira

Depois de haver sido sub-secretário de Estado, Adriano Moreira tinha desenpenhado as funções de Ministro do Ultramar na fase difícil de 1961/1962. Dispondo de sólida formação e sendo dos espíritos mais vivos e inteligentes que conheci, tinha realizado actividade verdadeiramente revolucionadora com a introdução de medidas legislativas audazes e corajosa revisão de estruturas que o tempo tornara desactualizadas. Percorrera, sem medo, o norte de Angola na fase mais crítica de 1961 (acompanhado por Kaulza de Arriaga) e galvanizara civis e militares eliminando erros e oferecendo justiça.

Tinha notória incompatibilidade com Silva Cunha e podia-se dizer que era homem da oposição mais aberta ao regime do Doutor Marcello Caetano, com quem estava, pessoalmente, de relações cortadas.

Conhecia o Gen. Spínola, a quem respeitava como soldado, mas em quem não confiava como político. Estava inteirado da personalidade de Costa Gomes e, por isso, fazia dele julgamento objectivo.

Na viagem de regresso, no comboio de Sargans a Zurich, voltámos ao tema, tendo como companheiro Alfredo Sanchez-Bella, destacada e lúcida figura de político espanhol que ocupara muitos anos as funções de embaixador do seu país e fora recentemente ministro do governo de Madrid.

Adriano foi claro nas suas críticas ao regime que se mantinha em Portugal e nas soluções que preconizava. Ouvindo-o dissertar, com a lógica inteligente que o caracteriza, era clara a sua decisão às soluções democráticas de tipo ocidental com preferência aberta pelas mais modernas correntes sociais da Igreja Católica.

Avancei com o meu esquema e os meus contactos de Lusaka. Encontrei, sobretudo, incredulidade sobre as possibilidades de concretização e não me alarguei a desenvolver projectos. Percebi que para Adriano e para Serra Brandão, o caso ultramarino passava antes de mais, pela resolução do problema português centrado em Lisboa.

Sem recusar o acerto dessa apreciação, eu tinha ideias diferentes sobre outras possíveis soluções. Claro que, cada vez mais, me afastava do recomendado porpósito de manter a via da legalidade.

(...) Razões de esperança

Seriam cinco horas da madrugada quando um dos meus colaboradores me telefonou avisando do que se passava.

Sintonizei o "Rádio Clube Português" (crismado de "Emissora da Liberdade") e escutei os comunicados. A partir daí, acompanhei interessadamente, como toda a gente, o que se estava a passar.

Ainda dei uma larga volta pela cidade usando o carro da embaixada e vestindo o uniforme do motorista. Ninguém me incomodou nessas digressões, mas fiquei sem perceber ao certo como corriam as coisas, porque era impossível identificar a qual dos lados pertenciam as tropas que se deslocavam ou ocupavam os principais pontos da cidade.

Ao fim da tarde tudo parecia consumado com a rendição do Doutor Marcello Caetano ao Gen. Spínola.

Nessa altura ainda se ignorava onde estaria o Chefe de Estado e aventavam-se as mais diversas hipóteses. Chegou a constar que embarcara num navio de guerra para os Açores de onde defenderia a legitimidade constitucional que representava.

Depois, foi difundida a notícia da sua detenção, comprovando-se que esse plano de emergência não existia.

No Brasil, contou-me o Almirante Américo Thomaz que permanecera em sua casa (no Restelo) sem que alguém se preocupasse com ele ou com ele contactasse. Tudo se passou como se não houvesse de ter-se em conta a sua posição. Só já de noite o foram buscar, muito depois da rendição do Presidente do Conselho.

Tudo muito estranho para um golpe de Estado.

Se uns pecaram por ineficiência, parece que outros o terão feito por negligência.

A Junta de Salvação Nacional

Já pela madrugada dentro, a televisão apresentou a Junta de Salvação Nacional presidida pelo Gen. António de Spínola que leu a proclamação do "Movimento das Forças Armadas".

Dos membros designados pela JSN só não estava presente o Gen. Diogo Neto cuja chegada de Moçambique se aguardava.

Na imagem: Junta de Salvação Nacional

O Gen. Spínola era, fora de dúvida, patriota convicto que deixara a situação de reserva (que lhe permitia auferir atractivos vencimentos em empresas) para, voluntariamente, combater na Guiné, qualidades indispensáveis de soldado que lhe valeram os mais altos galardões. A expressão política do seu livro, que já comentei, não alterava essa imagem. Podia ser inconformista perante a indecisão governamental e confuso na argumentação de soluções. Mas era honesto nos propósitos que se propunha.

Carlos Galvão de Melo, nesse primeiro instante, apresentava-se como uma das figuras mais válidas da revolução. Tinha invulgar estatura intelectual, com coragem e capacidade técnica sempre reveladas, quer como piloto, quer como condutor de homens. Para além do valor militar, que comprovara em Angola, dispunha de preparação política, treino económico e independência de carácter. Nunca se enfeudara a ninguém e certamente que nunca o faria.

O Brig. Jaime Silvério Marques (que, de prisioneiro acidental dos insurrectos, passara a governante) era militar consciente e probo. Com passado honroso, havia sido governador de Macau evidenciando uma coragem e firmeza de atitudes que o situava acima de qualquer suspeita. Ninguém podia pôr em causa o seu patriotismo e a sua valia profissional.

Dos da Marinha, conhecia bem o Com. Rosa Coutinho com quem tivera contactos em Moçambique e que me substituíra a capitanear o "Adamastor", do Clube Naval de Lourenço Marques, na regata do Cabo ao Rio de Janeiro, no princípio de 1971. Toda a tripulação fora unânime em tecer-lhe elogios e o feito fizera-o merecer a Ordem do infante Dom Henrique de que justificadamente se orgulhava. Tivera o azar de ser aprisionado pelos congoleses, por excesso de confiança, quando realizava trabalhos hidrográficos no rio Zaire e sofrido sevícias humilhantes às mãos da soldadesca de Kinshasa e dos homens de Holden Roberto. Portara-se com estoicismo e parecia recuperado desse compreensível trauma. Não sendo uma grande figura na Marinha era, no entanto, oficial estimado, com uma carreira marcada pelo infortúnio.

Quanto ao Com. Pinheiro de Azevedo, apenas dele tinha ouvido falar como militar eficiente, disciplinador e mesmo com tendência para a dureza. Era respeitado pelos jovens oficiais de quem essas informações me tinham chegado. Também não era personalidade de destaque, parecendo incluir-se entre os menos politizados e estando, por isso, longe de ser um politizante. Caracterizava-se pelo seu notável equilíbrio e senso comum.

Assim, no conjunto, a JSN apresentava-se como constituindo equilibrado cefalismo militar (cobrindo os três ramos) que encimava uma revolução triunfante em que a Forças Armadas assumiam as responsabilidades governativas.

Ao fim e ao cabo, o pronunciamento quase se limitara a realizar a opção sugerida pelo Doutor Marcello Caetano, no último trimestre de 1973, ao próprio Gen. Costa Gomes: "Por mim, não tinha apego ao Poder e se as Forças Armadas queriam impor a sua vontade só tinham uma coisa a fazer: assumir o governo".

Foi isso, exactamente, o que fizeram e sem encontrarem resistência.

A figura de Costa Gomes, sempre abrigado pelos óculos escuros, era, no grupo da JSN, a única que se me apresentava como preocupante incógnita. Mantendo as suas conhecidas preferências ocupava lugar subalterno, detrás do Gen. Spínola de quem fora chefe apenas escassas semanas atrás. Isso poderia, no entanto, explicar-se pelo prestígio nacional que Spínola conquistara.

Mas também podia ser mais uma manobra destinada a granjear a confiança da opinião pública, em todos os sectores, anestesiando eventuais desconfianças.

Por mim, tive dúvidas desde o primeiro momento. Pouco tardaram em converter-se em certezas.

O MFA e o Ultramar

(...) Conhecendo-se, hoje,a influência que o Maj. Melo Antunes teve na elaboração daquele "Programa" [MFA] e sendo públicas as suas atitudes ulteriores (em escalada que culmina na defesa do reconhecimento do regime do "MPLA" em Angola) terá de entender-se que a sua posição de redactor ou a sua transigência às imposições que lhe chegavam, é gémea em premeditação e sinceridade, com o parecer do Gen. Costa Gomes sobre o "Portugal e o Futuro".

Efectivamente, no capítulo das "medidas a curto prazo" o "Programa do MFA" era inequívoco quando dispunha:

"A política ultramarina do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua definição competirá à Nação, orientar-se-á pelos seguintes princípios:

a) Reconhecimento de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar;

b) Criação das condições para un debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;

c) Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz"


Tem interesse assinalar aspecto importante de que só depois me inteirei.

No texto oficial do "Programa do MFA", que veio a ser publicado no "Diário do Governo" e tenho vindo a citar, há diferença significativa em relação ao texto inicial, na parte que se refere ao Ultramar. Essa versão inicial só foi reproduzida pelo jornal "República" (então de afinidades socialistas) e no dia 26 de Abril. Presume-se que haja sido recolhido directamente dos redactores do "Programa" e antes deste vir a ser corrigido.

Nessa outra forma existia mais uma alínea que, segundo o que se lê naquele jornal, prescrevia:

c) Claro reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e adopção acelerada de medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga participação das populações autóctones".

Para além da omissão desta expressiva alínea, o texto "oficial" é inteiramente idêntico.

O Maj. Sanches Osório (que foi activo revolucionário e desempenhou o cargo de Ministro da Comunicação Social, no II Governo Provisório) viria a esclarecer, mais tarde, as vicissitudes que o "Programa" atravessou até ao último momento. Tudo está descrito no seu livro "O Equívoco do 25 de Abril".

Segundo ele e confirmando o que anteriormente referi, a redacção definitiva do "Programa" fora confiada ao Maj. Melo Antunes, um dos oficiais mais politizados do "Movimento" e com fortes tendências marxistas, servidas por uma inteligência fria.

Ignora-se a quem tenha pertencido a iniciativa daquele corte do "Programa" em aspecto tão importante para a definição do método descolonizador. Mas o que revela, sem dúvida, é uma preocupação coincidente com o "original processo" de que Melo Antunes viria a ser o principal autor e de que haveria de vangloriar-se.

De qualquer forma e na altura em que foi divulgado, o "Programa do MFA" parecia ser insusceptível de interpretações dúbias quanto à política ultramarina. A esse esquema ajustava-se, sem esforço, aquilo que eu negociara em Lusaka e tudo quanto tinha publicamente afirmado no "NB".

Acreditei que tinha chegado a oportunidade de levar por diante aquele projecto e, por isso, escrevi editorial que fiz publicar no "Notícias da Beira", com o máximo destaque, no dia 3 de Maio.

Desta prosa enviei cópia, com carta atenciosa, ao Gen. António de Spínola por forma a que conhecesse o artigo antes de aparecer no jornal, mas já depois de a publicação estar determinada.

Sob o título "A nossa posição - Atitude e Programa" recordei o que naquelas colunas havia escrito, critiquei o que havia de criticável nas hesitações governativas recentes e, apelando para a unificação de todas as tendências, manifestei apoio ao "Programa do MFA" defendendo, sem as mencionar concretamente, as soluções acordadas, meses antes, sob a égide do Presidente Kaunda e do Presidente Banda.

Os jornais, conhecendo o artigo, foram levados sem demora a Blantyre, onde Pombeiro de Sousa se apressou a fazer a tradução para conhecimento do Presidente Banda. Logo depois, fê-la seguir para Lusaka.

O acolhimento, nas duas capitais africanas, foi o mais favorável possível com reafirmação do apoio para a orientação preconizada.

O Dr. Banda, numa conferência de imprensa, foi muito expressivo ao referir-se à revolução portuguesa, afirmando a esperança "de que tudo mudasse para melhor" e prevendo para breve "encorajadores desenvolvimentos em Moçambique". Assegurava que o Malawi faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para ajudar a evolução mais favorável.

O Governador Geral necessário

Para além das afirmações programáticas do "MFA" eu tinha outras razões para ser optimista nas informações que fazia chega a Blantyre, pela via do consulado do Malawi na Beira.

Com efeito recolheramos, na "AGIM", notícias seguras de que o Gen. Silvino Silvério Marques iria ser nomeado governador-geral e comandante-chefe de Moçambique. Tratava-se de uma escolha feliz e já anteriormente mencionei o alto conceito em que tinha este militar que o Doutor Marcello Caetano tão injustamente tratou.

Certifiquei-me de ser segura a notícia recolhida pelo nosso incansável redactor-chefe, Magalhães Monteiro, e procurei estabelecer contacto com o Gen. Silvério Marques.

Finalmente, encontrámo-nos em casa de amigo comum e confirmou-me que o convite lhe havia sido formulado pelo Gen. Spínola, perante a Junta de Salvação Nacional e que até já escolhera os seus colaboradores mais directos que seguiriam (como seguiram) antes dele, para Lourenço Marques.

Revelei-lhe, então, em todo o pormenor, os resultados das minhas sucessivas deslocações à Zâmbia, mostrei-lhe os textos do "Programa de Lusaka" e não ocultei as vias de contacto que tinha com os nacionalistas moçambicanos. Nisto ocupámos a noite, até alta madrugada, ficando impressionado e surpreendido com os progressos que eu realizara. Entendia que nos encontravámos por um caminho em que muito interessava prosseguir. Afirmou a necessidade urgente de nos avistarmos, os dois, com o Presidente da JSN.

Na imagem: Gen. Silvino Silvério Marques (2.º à esq.)

Tem importância assinalar que o Gen. Silvino Silvério Marques sempre defendera a solução integracionista, publicando um trabalho notável que intitulara "Estratégia Estrutural Portuguesa". Não tínhamos, pois, a mesma atitude perante os problemas, mas unia-nos o mesmo amor à África Portuguesa e às suas gentes. O general era um multi-racialista convicto sem ser conduzido a isso, apenas pela via da sua lúcida inteligência. Adoptava tal doutrina com impressionante sinceridade de sentimentos e quase que com fervor religioso. Bem o tinha demonstrado nos tempos em que havia sido governador-geral em Angola.

Por tudo isto, nos nossos diferentes caminhos convergentes, aceitava, sem preconceitos mesquinhos, o contributo que eu lhe poderia oferecer para se alcançarem os objectivos nacionais integrados nos propósitos da autodeterminação (ob. cit., pp. 190-191; 196-205;217-220; 222-225).

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (viii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Palácio de Belém

Mentira, cerco e fuga

No dia 15 de Maio, o Gen. António de Spínola tomava posse como Presidente da República por designação da Junta de Salvação Nacional, nos termos do "Programa do Movimento das Forças Armadas".

Quando me ocupava da arrumação de alguns papéis, trabalhando na embaixada do Malawi, recebi um telefonema do Palácio de Belém (eram 20.15). Era o próprio Gen. Spínola que me queria falar.

Na curta conversa telefónica que tivemos, pediu-me, atenciosamente, para me deslocar ao seu gabinete. Prontifiquei-me a fazê-lo, mas solicitei que me recebesse prontamente porque nessa noite embarcaria para África. Respondeu-me que era exactamente por isso que me queria falar, acrescentando "queríamos pedir-lhe que não seguisse".

Poucas dúvidas tive sobre o significado destas palavras e fui imediatamente para Belém, onde cheguei em menos de meia hora. (...)

Com Spínola e Costa Gomes

O Presidente da República, com um nervosismo embaraçado que contrastava com a naturalidade em que decorrera a anterior entrevista, disse haverem-me chamado para pedirem que cancelasse a minha viagem por considerarem que, naquela altura, a minha presença em Moçambique poderia ser perturbadora.

Perguntei se também isso se entendia quanto à minha deslocação ao Malawi e à Zâmbia, mesmo sem entrar em Moçambique. O Gen. Spínola respondeu-me que também isso seria inconveniente, acrescentando que o Gen. Costa Gomes melhor esclareceria das razões.

Este, protegido pelos inseparáveis óculos fumados e muito interessado em observar os desenhos do tapete que cobria o chão, disse que, durante a sua recente permanência em Moçambique, havia contactado com muita gente que o tinha querido procurar. Em todos encontrara uma animosidade contra mim que tornava desaconselhável a minha ida, para se evitarem novas e inconvenientes agitações.

Observei que, não sabendo com quem havia conversado, me era impossível formar juízo sobre o significado do que afirmara. Não conseguia, no entanto, encontrar lógica no argumento porque, se todos estavam contra mim, não seria provável que eu motivasse qualquer agitação; quanto muito poderia acontecer que essa animosidade geral conduzisse a tornar-me a estadia desagradável ao ponto de me forçar a deixar o território. Insisti em não entender como uma pessoa, votada a tal isolamento, poderia exercer acção perturbadora. Por outro lado, certamente que isso se não aplicava ao Malawi e à Zâmbia onde me aguardavam os chefes de estado, com a certeza de ser bem acolhido como sempre.

O Gen. Costa Gomes retorquiu-me, "falando francamente", que toda a gente sabia que eu dispunha de um verdadeiro exército privado, que possuía armamento oculto e meios de comunicação rádio, além de contar com uma rede de informação que poderia mesmo classificar-se "como uma segunda DGS". Tudo isto poderia ser usado para pertrubar o processo descolonizador.

As cartas tinham sido jogadas e, por isso, ironizei afirmando que, a ser assim, não estava afinal tão isolado como se começara por dizer. O que parecia era existir o propósito de, sob qualquer pretexto, me afastarem de Moçambique por a minha presença ser obstáculo para os desígnios da minoria extremista de cuja honestidade descolonizadora havia boas razões para desconfiar. Acentuei ser certo dispor de simpatias em muitos sectores incluindo unidades militares ou militarizadas e que contava com a estima da maioria da população branca ao mesmo tempo que merecia a confiança de boa parte das massas africanas.

Na imagem: António de Spínola (centro)

Era essa posição que preocupava a minoria activista que pretendia impedir o meu regresso. Por isso deveria eu regressar para evitar que os meus amigos ou simpatizantes fossem manipulados inconvenientemente, tanto mais que eu garantira ao Gen. Spínola o propósito de colaborar nos propósitos descolonizadores da JSN, que coincidiam com os meus, executando o "Programa do MFA" ao qual dera, publicamente a minha adesão.

Ao mesmo tempo receava que a brusca suspensão da viagem causasse reacções de dúvida nos chefes de estado da Zâmbia e do Malawi que em mim confiavam e que poderiam oferecer muito positiva contribuição para as negociações relativas à autodeterminação de Moçambique.

Como serviços próprios só dispunha dos "SEI", que em nada se assemelhavam à "DGS" e que sempre haviam estado sob o comando de oficiais do Exército. Parecia-me de toda a conveniência que se fizesse regressar aos "SEI" o Major Varela (destacado e activo militante do "MFA" em Moçambique) que havia sido afastado nas condições que recordei.

O Gen. Costa Gomes, que tomara algumas notas, manteve a sua opinião sobre a inconveniência do meu regresso a África e sem já se dar ao trabalho de buscar argumentos para isso. Quanto aos presidentes do Malawi e da Zâmbia, entendia ser bastante eu dizer-lhes que havia adoecido.

Retorqui que essa solução simplista não pegava porque ambos me conheciam bem e sabiam que tinha de estar moribundo para faltar a um encontro desta importância, na hora histórica que Moçambique atravessava. Compreendia que as autoridades revolucionárias me quisessem afastar das negociações descolonizadoras. Recomendava, porém, que se mantivessem ligações com a Zâmbia e o Malawi por serem os países que, conjuntamente com a Tanzânia, melhor podiam auxiliar as vias de descolonização que acautelassem os interesses essenciais. Para não criar dificuldades eu estaria disposto a enviar imediato telex e a escrever cartas que faria chegar sem demora ao Dr. Banda e ao Dr. Kaunda, em termos de se preservar aquela colaboração.

O Gen. Costa Gomes assegurou que já dispunha de melhores canais, mas o Gen. Spínola aceitou, imediatamente, a minha oferta, mostrando-se agradecido pela compreensão que evidenciava.

Para sondar o terreno acrescentei que enviando as cartas de Lisboa poderiam os destinatários duvidar da espontaneidade do que nelas escrevesse. Sugeri, assim, que concordassem com a minha deslocação a Londres onde as entregaria aos embaixadores daqueles países para seguirem por mala diplomática. Garantia, sob palavra de honra, que regressaria a Lisboa no avião imediato.

Foi-me logo dito que essa hipótese não era aconselhável. Interroguei se isso significava qualquer dúvida sobre o meu cumprimento da palavra dada e o Gen. Spínola apressou-se a esclarecer que de modo algum se tratava disso. Cuidavam, unicamente, de evitar especulações dada a curiosidade com que a imprensa internacional seguia todos os meus passos.

Fiquei, assim, a saber que não só me impediam de voltar a África como pretendiam manter-me em Lisboa. Era evidente, para mim, que o próximo passo seria o da prisão. Creio que devo ao cavalheirismo do Gen. Spínola que tal medida não fosse imediatamente tomada; sei, por testemunho qualificado, que Costa Gomes pretendia que isso fosse logo feito.

Ficou combinado que eu enviaria ao Gen. Costa Gomes as minutas das cartas a remeter a Banda e a Kaunda, para verificarem se elas correspondiam ao que eu me tinha proposto fazer ou para, eventualmente, introduzirem as alterações julgadas convenientes.

No decurso da conversa, o Gen. Costa Gomes, triunfal e tranquilizado com o caminho fácil que as coisas levavam, criticou asperamente o "Notícias da Beira" pelas informações alarmistas que difundira sobre os acontecimentos que haviam coincidido com a sua estadia em Moçambique. Mentindo, com incrível desembaraço, fez relato dos factos que nem sequer se aproximavam da realidade. Limitei-me a comentar, com frieza, que essa versão não correspondia às notícias detalhadas que recebera e que estava certo de serem exactas.

Com este desmentido rotundo, o Gen. Costa Gomes tornou-se agressivo e retorquiu que todos conheciam a "forma despótica" como eu conduzi os jornais. A isso respondi que sempre dera uma ampla liberdade aos meus colaboradores, mas compreendia que a disciplina voluntária existente fosse incómoda para os que queriam assaltar esses meios de informação e não tinham conseguido mais do que infiltrar alguns elementos do corpo redactorial.

Acrescentei que, à frente dessa campanha, estava o Dr. Afonso dos Santos, destacado marxista, ao qual não teria dúvidas em entregar a direcção do jornal se isso servisse aos propósitos da Junta, no interesse de Moçambique. Estava disposto a facilitar essa solução, apesar de aquele advogado haver sido o mais violento inimigo no caso dos padres do Macuti, chegando ao ponto de mentir, descaradamente, em pleno tribunal, deturpando a leitura do depoimento de uma testemunha. Isso valera-lhe ter sido advertido, com dureza, pelo magistrado que ocupava o lugar de juiz-auditor.

Na imagem: Costa Gomes (2.º à esq) e o General Spínola ao centro (Guiné)

O Gen. Costa Gomes acusou o toque e respondeu que não estava em causa a conveniência de tal nomeação do Dr. Afonso Santos (que mais tarde e sob o seu consulado na presidência da República, viria a ser designado para tais funções), mas que aproveitava o ensejo para me informar que já tinha mandado vir o processo dos padres do Macuti para "se ver bem como aquilo tinha sido". Observei que a sentença já tinha sido confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça Militar, mas que só via vantagem na revisão do julgamento (caso possível) por se me afigurar que tinha havido brandura excessiva, consentindo-se incríveis manobras à defesa. Claro que nunca mais voltei a ouvir falar em tal revisão, tão ameaçadoramente anunciada.

Chegados ao termo da audiência, o Gen. Spínola acompanhou-me à porta do gabinete e ao despedirmo-nos, afirmei:

"Antes de sair, Senhor Presidente, tenho o dever de lhe declarar que nada me preocupa a minha segurança, mas que muito me preocupa a sorte deste pobre país".

O Gen. Spínola foi quase afectuoso na forma como me apertou a mão.

A minha despedida com o Gen. Costa Gomes foi gélida e quase que agressiva.

Entre nós era impossível qualquer entendimento porque estava em causa Moçambique e o futuro da Nação Portuguesa.

Tinha-me demorado em Belém cerca de uma hora.

Muita importância me davam os mais altos dirigentes da Junta para me dedicarem tanto tempo, com tantos problemas a solicitá-los, no dia da investidura do Presidente da República.

Retirei-me sem dúvidas quanto ao enfeudamento de Costa Gomes aos propósitos marxistas dos "democratas" e intenção de conduzir o processo descolonizador nesse rumo, afastando todas as interferências perturbadoras que, como a minha, a isso tentassem opor-se.

Ficava-me já pouco campo de manobra e enfrentava obstáculos que sabia serem dos mais sérios. Continuei disposto a lutar.

Sobretudo preocupava-me a confiança que nele depositava o Gen. Spínola.

Deixava-se influenciar por Costa Gomes, por forma alarmante, agravando-se isso com a capacidade de mentira que acabava de testemunhar.

As minhas piores previsões viriam a ser superadas, todavia, pelos factos que a seguir descrevo e documento.

Cartas censuradas

No dia 17 (uma sexta-feira) fiz entregar, em casa de Costa Gomes, as minutas das cartas que me propunha dirigir ao Presidente Banda e ao Presidente Kaunda. Fi-las acompanhar por cerimoniosas linhas e por cópia do telex que transmitira a Blantyre. Juntava, ainda, o projecto da carta que remeteria a Pombeiro de Sousa pedindo-lhe que fizesse chegar as minhas mensagens aos destinatários e a quem explicava que a nossa actuação de tantos anos (e, sobretudo, nos últimos meses) deveria cessar,dadas as vias de contacto de que o novo regime dizia dispor.

Na imagem: Carmo Jardim

(...) No dia seguinte (18) almoçava com minha filha e com meu genro num restaurante da Baixa, já tarde, quando ali nos procurou um oficial do gabinete do Gen. Costa Gomes que era portador de uma carta para mim. Tratava-se do Maj. Ravara. Identificámo-nos e passei-lhe recibo.

Quando li a carta assinada por Costa Gomes e os cortes introduzidos nas minutas que lhe havia enviado, nem queria acreditar na enormidade que esses documentos testemunhavam.

(...) Não posso, porém, deixar de referir desde já, os aspectos principais e de tirar as conclusões que são transparentes.

Na carta que o Gen. Costa Gomes assinou, afirmava-se:

"Junto envio a minuta das cartas que V. Ex.ª tencionava enviar aos Presidentes Banda e Kaunda.

De acordo com a sua sugestão, S. Ex.ª o Presidente e eu achámos por bem introduzir os cortes que constam das fotocópias".


Por muito que se pondere a deferente sugestão por mim formulada, suponho que deve ser coisa única isto de se admitir, em carta responsabilizante, a imposição de "cortes" em correspondência de tal nível.

Poderia, ao menos, haver adoptado a forma delicada de formular recomendações.

Para não deixar dúvidas acrescentava, expressamente, que tais "cortes" eram da responsabilidade do Presidente da República que necessitava da concordância (por isso mencionada) do chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Vejamos, porém, o que foi cortado.

Na carta ao Presidente Banda, para além de serem eliminadas as delicadas justificações que eu invocava para manter a permanência em Lisboa, suprimiram-se os adjectivos com que qualificava as minhas entrevistas com o Gen. António de Spínola ("amigáveis e muito úteis") bem como se arredava tudo quanto permitisse admitir, ainda, eventual interferência no futuro. Não se queriam considerar, sequer, quaisquer hipóteses de colaboração ainda que remotas e mesmo que úteis.

Conhecendo-se os termos em que havia decorrido o meu encontro a 4 de Maio, com a presença do Gen. Silvino Silvério Marques, não é possível atribuir esses cortes ao Gen. Spínola.

Mais aberrante, todavia, foi suprimir-se cerce, a referência aos bons ofícios do Presidente do Malawi que se continham na seguinte frase, integralmente "cortada" do texto: "o novo Regime Português muito apreciou a Vossa declaração acerca da evolução dos territórios ultramarinos portugueses, bem como a Vossa oferta para auxiliar neste campo com o Vosso conselho muito respeitado, esclarecido e experimentado".

Com uma penada de tinta negra arredava-se a oferecida mediação de um Estado africano, numa altura em que nenhuma ajuda seria de menosprezar.

O mesmo tratamento se aplicava à Zâmbia nos "cortes" introduzidos na carta para o Presidente Kaunda.

Para além dos aspectos pessoais, já mencionados, eliminava-se a seguinte passagem: "o novo Regime Português muito aprecia a Vossa oferta para auxiliar acerca da evolução dos territórios ultramarinos portugueses com os Vossos contactos e o Vosso experimentado conselho".

Não se tratava, pois, de uma posição de dúvida quanto à capacidade de intervenção do Malawi (que, no passado, o Gen. Costa Gomes tanto insistira em acusar de colaboração activa com a "Frelimo"), mas também da exclusão da Zâmbia cuja autoridade dialogante estava fora de questão.

Existia, já nessa altura, uma deliberada posição quanto às fórmulas descolonizadoras a seguir para a entrega do Ultramar à influência marxista-soviética.

Os factos e documentos que cito (...) não consentem qualquer dúvida a tal respeito. No centro do processo encontrava-se a figura do Gen. Costa Gomes. O que veio a passar-se depois, apenas o confirmou.

Confesso, no entanto, que nos primeiros tempos cheguei a reagir contra o Gen. Spínola, responsabilizando-o por uma atitude incompreensível e incoerente com o que me havia afirmado. Os acontecimentos que se seguiram, vieram, porém, identificar a influência dominadora a que estava submetido e que atingiu as raias da deslealdade que visava comprometê-lo.

O Gen. Spínola foi usado, hábil e premeditamente, como a figura de fachada atrás da qual se abrigavam os coveiros do Ultramar.

Na altura não me restavam muitas hipótese de jogo para fazer e, por isso, apressei-me a expedir as cartas, com os "cortes introduzidos" enviando delas cópias ao Gen. Costa Gomes. Fiz isso logo no dia 19.

Cumprindo o que havia sido combinado eu descuidava, porém, a minha segurança e facilitava o desencadeamento da acção que visava eliminar-me da luta, em que persistia para obter uma solução equilibrada em Moçambique.

Intransigência, serenidade e decisão

Efectivamente, apenas dois dias volvidos, fui informado com toda a certeza de que estava a ser passado mandato de captura contra mim, acompanhado de uma guia de marcha para a Ilha do Sal. As ordens provinham do Gen. Costa Gomes.

Aceitei com serenidade a situação que não era totalmente inesperada e transladei para a embaixada do Malawi os meus pertences indispensáveis, assim como alguma documentação e armamento de defesa de que felizmente dispunha. Já anteriormente tinha providenciado para ali dispor de géneros que me consentisse, enfrentar um cerco.

Não me apanhavam desprevenido.

Só não posso, por enquanto, mencionar a pessoa identificada que me alertou e a cuja camaradagem fiquei a dever a minha sobrevivência para luta.

Icei a bandeira do Malawi e tomei as disposições de segurança.

Alertei alguns amigos do corpo diplomático.

Não estava disposto a entregar-me e nem a deixar que me prendessem Se o tentassem teria de provocar um escândalo. Joguei tudo na intransigência e na serena disposição de resistir até ao fim.

Começava um pequeno drama que se prolongaria por 23 dias.

Quando recolhi confirmação da notícia, informei Blantyre da situação e das minhas disposições. Isso coincidiu com a chegada das minhas cartas para o Dr. Banda e para o Dr. Kaunda. Ambos me fizeram chegar palavras de encorajamento e apoio, assegurando que nada descurariam para me proteger. Recomendavam-me serenidade.

O Presidente Banda insistia comigo para não reisistir no caso de se concretizar um assalto à embaixada, mas respondi-lhe que não seguiria esse conselho.

O encarregado de negócios de Portugal no Malawi, Dr. Proença, foi convocado pelo presidente que em termos duros e firmes o intimou a advertir Lisboa das consequências que resultariam de uma violação da embaixada. O aflito diplomata assegurou que enviaria despacho urgente para o seu ministério e saiu da residência presidencial exteriorizando o pânico que dele se apossara, segundo me vieram a referir pessoas que o observaram.

No dia 23 (quinta-feira) pedi ao Gen. Diogo Neto para me visitar que não tardou em o fazer. Invocando a nossa camaradagem de Angola descrevi-lhe a situação em que me encontrava (que não negou existir) e pedi-lhe que informasse os responsáveis de que não só me não entregaria, como estava disposto a resistir até à última granada e até à penúltima bala.

Assegurou-me que iria imediatamente procurar o Gen. Costa Gomes e rogou-me que mantivesse a serenidade, acrescentando "não seja doido, como o foi em Angola". Só respondi que pensava comportar-me como em Angola ambos o tínhamos feito. Despedimo-nos com um abraço.

Fui recebendo outras visitas e, a partir de 24, passei a ter a companhia quase permanente do jovem William Kadzamira, irmão de Miss Cecila Kadzamira, o que me permitia falar livremente com Blantyre. William, que estudava engenharia em Lisboa, transmitiu as minhas mensagens usando dos dialectos "chichewa" e "tumbunco", alternando-os durante a conversa. Era cifra garantida para vencer a escuta telefónica a que estávamos submetidos.

O Governo do Malawi assegurava-nos que tinha recebido as mais formais garantias da embaixada de Portugal quanto à inviolabilidade da nossa embaixada em Lisboa e continuava a recomendar-nos serenidade. Nunca deixámos de a manter.

Presumo que em consequência destas pressões diplomáticas recebi a visita do comandante da Polícia de Segurança Pública (Maj. Casanova Ferreira) que foi extremamente correcto e, mesmo, simpático. Garantiu-me ter tomado disposições para proteger a residência e forneceu-me os telefones para onde poderia ligar em caso de emergência.

Decorreu o tempo e, no último dia do mês, o nosso "código" de Blantyre informou-nos que chegaria a Lisboa, o embaixador Joe Kachingwe, alto comissário do Malawi, em Londres, e qque estava designado para embaixador em Portugal.

Era um bom amigo meu, com passado profissional notável e que se distinguira na difícil missão de representar diplomaticamente o Malawi em Pretória.

O Presidente Banda não podia ter escolhido enviado com mais categoria.

O embaixador Kachingwe disse-me ser portador de carta pessoal do Dr. Banda para o gen. Spínola, na qual se solicitava que, na companhia daquele diplomata, se autorizasse a minha saída para Londres de onde me deslocaria para o Malawi. Dava a garantia de eu ali permanecer sem interferir na política moçambicana.

Kachingwe já dispunha dos bilhetes de avião e pedia-me para estar pronto a acompanhá-lo na segunda-feria imediata.

Garantias dadas ao embaixador

Logo a seguir (sábado, 1 de Junho) o Presidente da República recebeu, em Belém, o embaixador do Malawi que foi acompanhado na entrevista por um funcionário do protocolo. A audiência decorreu das 11 às 12 horas.

O Gen. Spínola foi muito cortês e agradável, pedindo para transmitir ao Dr. Banda as mais completas e tranquilizadoras certezas sobre a minha segurança. Afirmou não compreender a situação de alarme criada, porque "nada existia pessoal, política ou criminalmente" contra mim. Apenas se considerava que, de momento, não convinha que eu saísse de Portugal, mas que era livre de me deslocar por todo o território, sem que as autoridades me incomodassem.

Ao relatar-me isto, o embaixador estava desorientado.

Até parecia que eu tinha querido provocar um acidente, forçando intervenção de tão alto nível, uma vez que o Presidente da República afirmava ao representante qualificado de outro chefe de estado que não existia o problema que eu denunciara. Estava surpreendido e não sabia que relatar ao Presidente Banda, no seu regresso a Blantyre.

Convidou-me para ir jantar com ele no "Ritz". Recusei-me terminantemente a fazê-lo por ter a certeza quanto à veracidade das minhas informações. Quase que ficou magoado comigo e saiu com o William. Na manhã seguinte partiria para Londres.

Cilada e cerco

Ainda o embaixador não haveria terminado os aperitivos, quando notei desusado movimento de viaturas junto da embaixada. Dela saíram vários indivíduos, todos à paisana, que interrogaram o porteiro sobre se eu ali estaria. Este, que vira sair o embaixador acompanhado, informou que eu estava ausente e os sitiadores, para melhor me referenciarem, mostraram-lhe um mandato de captura em que figurava o meu retrato.

Estranhando tal aparato (com ostensiva fiscalização das pessoas ou viaturas que entravam no prédio) um dos inquilinos interrogou o porteiro e teve dele a explicação do que estava sucedendo. Esse vizinho, quase desconhecido para mim, teve a preocupação de vir avisar-me para que estivesse prevenido.

Telefonei para a PSP, de acordo com as indicações que me dera o Maj. Casanova Ferreira, manifestando a minha estranheza por aqueles movimentos e pedindo uma intervenção esclarecedora. Poucos minutos tardou em chegar um carro patrulha, cujo chefe conversou com os sitiantes mesmo por baixo da janela do meu quarto. A embaixada ocupava o primeiro andar do edifício e o local era fortemente iluminado.

Vi, nitidamente, exibirem cartões de identificação e mostrarem um papel que tinha, num dos cantos, o meu retrato.

O oficial de serviço na PSP, a quem depois telefonei, disse-me tratarem-se de elementos da polícia militar e que ali estavam "em missão especial" pelo que em nada podia intervir.

Fui assistindo então, acompanhado por pessoa identificada, à chegada de viaturas que ocupavam os pontos de acesso ao exterior e bloquearam, mesmo, a entrada do estacionamento do edifício. Outros automóveis situavam-se nas esquinas mais próximas e falavam ruidosamente pela rádio.

Quase que me divertia com todo aquele aparato e preparei-me para o enfrentamento. Com gente daquela, a coisa não poderia ser dramática.

Entretanto, consegui contactar, pelo telefone, o embaixador Kachingwe e pedi-lhe para se meter num táxi, passando junto à embaixada sem se deter, para verificar a situação como os seus próprios olhos. O William, que regressou já tarde usando o carro da embaixada, deparou com o mesmo estendal fiscalizador.

Gastei a noite a fazer um relatório para o Dr. Banda que o William foi entregar ao embaixador no aeroporto.

Por mais incrível que pareça, tudo isto aconteceu. Não faltam as testemunhas idóneas.

Na imagem: General Spínola

Depois das solenes garantias dadas pelo Gen. Spínola ao enviado especial do Presidente do Malawi, tudo havia sido organizado para me prenderem se eu tivesse a ingenuidade de sair do edifício.

O Presidente da República não tinha, obviamente, mentido e não estava ao corrente desta cilada.
Tudo parecia arquitectado para criar ao Gen. António de Spínola situação extremamente delicada, em consequência da minha prisão depois das inequívocas afirmações que fizera ao embaixador Kachingwe. Quando eu regressasse desprevenido a casa, encontrar-me-ia perante a cilada e teria de submeter-me, sem reacção possível, aos imponentes efectivos que ardilosamente me aguardavam.

Existem testemunhos identificados de que as ordens foram dadas, sem qualquer dúvida, pelo Gen. Costa Gomes.

Muito mais grave do que faltar à palavra dada é, ainda, criar essa aparência a quem a tenha dado honestamente.

O cerco prolongou-se com reforço de meios, com a ocupação de andares em prédios vizinhos de onde atiradores armados vigiavam os nossos movimentos, com a ostensiva instalação de viaturas que serviam de dormitório aos guardas que se revezavam, com a perseguição aos carros dos visitantes que entravam no prédio e com ameaças do corte de electricidade e da água. Um rosário de provocações que traduzia o desequilíbrio de frustrados e a inexperiência de aprendizes de militares que nunca se haviam batido.

O William informava Blantyre de tudo a quanto assistia e o governo do Malawi ia tornando cada vez mais afligida a posição do pobre Dr. Proença que não fora fadado para tais andanças.

A fuga perfeita

Ao longo destas semanas eu tinha estudado meticulosamente, e cronometrado mesmo, os movimentos dos sitiadores. Gastei nisso muitas noites de vigília.

Quem se tinha escapado de Bakwanga (no Congo) e enfrentado a perseguição da polícia indiana (em Bombaim e em Goa) não podia conformar-se em ceder perante um bando inexperiente.

Depois de estabelecer contacto com amigos de confiança (a quem um dia espero poder nomear para lhes prestar a homenagem que merecem) escolhi o ponto de passagem da fronteira. Seleccionei a região de Castelo de Vide por ser a mais fácil de transpor (com as suas serranias e pinhais) e, portanto, a menos propícia à eventual perseguição por gente não afeita à luta no mato. Mesmo no caso de me descobrirem, todas as vantagens, no confronto, seriam a meu favor.

Obtivemos cartas detalhadas do terreno, fizeram-se fotografias paronâmicas da fronteira, prepararam-se viaturas e recebi os meios de orientação indispensáveis. O percurso por estrada foi estudado e reconhecido, com confirmação efectuada menos de 24 horas antes do dia "D".

Como as luzes, fortíssimas, da rua da embaixada eram cortadas exactamente às 5.30 e como a guarda era rendida às 6.30, decidi que a hora precisa da fuga seria às 5.32. Beneficiaria da penumbra matutina, que mal consentia divisar os contornos a duas dezenas de metros, e da fadiga dos vigilantes que, para mais, deviam estar saturados por sucessivas guardas inúteis.

Escolhi a noite de 12 para 13 de Junho (noite de Santo António) que antecedia a celebração do Corpo de Deus, tão respeitada pela província fora.

Na imagem: Antigos Paços do Concelho de Viana do Castelo

Montei, então, a farsa mais completa, convencendo mesmo os mais íntimos familiares (como meu irmão e minha filha) de que estava conformado e não tentaria escapar-me. Sob vários pretextos afastei toda a gente da embaixada. O William foi passar uns dias a Braga, com uns amigos. Fiz telefonemas (que sabiam serem escutados) marcando encontros para a semana imediata e até nisso envolvi a minha crédula irmã que se encontrava em Viana do Castelo.

Tive duas preocupações: ninguém poder ser acusado de cúmplice e ninguém conhecer os meus planos de fuga.

O esquema foi executado com precisão matemática e cruzei a porta da embaaixada (com inteira exactidão, às 5.32) apertando na mão uma granada ofensiva a que tinha retirado a cavilha de segurança. Felizmente que a tornei a colocar no engenho. Estava, porém, disposto aos últimos extremos. Sob as roupas levava o armamento de que dispunha e tinha no cinto duas granadas defensivas, mortais num raio de 50 metros.

A conjugação dos movimentos das viaturas foi impecável ao longo do percurso e a nossa tranquilidade era tal que, ao passarmos por Abrantes, não resistimos a tomar um café no estabelecimento que encontrámos abertos. Depois, e por insistência minha, alterámos o percurso previsto e passámos por Portalegre (terra onde me criei e onde muitos julgam haver eu nascido) que não queria deixar de voltar a ver. Encaminhei o itinerário por caminhos que recordava dos descuidados tempos da juventude e fui "largado", ficando entregue a mim próprio, numa estrada que corre paralela às serranias da fronteira.

Por erro de avaliação (o único cometido) os meus amigos lançaram-me a uns três quilómetros do ponto previsto. A partir daí, e por mais fiel que me mantivesse aos azimutes dados, tinha de me enganar no destino. Já havia sofrido erros parecidos nos lançamentos de pára-quedas mas, desta feita e nestas condições, as consequências foram muito duras.

Quase ia tropeçando numa brigada florestal que, apoiada por guardas fiscais, trabalhava na abertura de uma estrada de serviço. Evitei-os por escassas dezenas de metros. Não deram por mim, mas vivi momentos angustiosos. Não tinha dúvidas de que forçaria a passagem sem dificuldade de maior, mas custava-me causar vítimas inocentes. Nem sequer era igual a luta entre esses funcionários fronteiriços e um homem curtido no mato africano. Tivemos muita sorte em não terem dado por mim.

A escalada da serra foi penosa, até atingir a linha da fronteira, e só me aguentei abusando da “coramina” e animado pela vontade de voltar a África.

Atingida a outra vertente da montanha, já em território espanhol, penso que devo ter corrido como um louco. Só parei num riacho junto ao qual inutilizei o material de defesa que levava comigo, enterrando-o cuidadosamente. Não queria ser encontrado com armas e pretendia evitar algum acidente se alguém as descobrisse.

Deambulei quase dez horas, por montes e vales, para encontrar o ponto fixado para o encontro com o carro que me aguardava. Se não tivesse sido o apoio hospitaleiro de boa gente local nunca mais teria lá chegado.

Nessa noite alcancei Madrid e descansei profundamente numa “suite” do “Hotel Ritz” (tinha o número 530) depois de ter telefonado para Lisboa, a dar conta aos meus, do êxito da fuga. Nem queriam acreditar. Pouco depois, na Beira e em Blantyre, estavam informados da minha nova situação.

Os que me vigiavam, em Lisboa, mantinham a guarda à embaixada. Só se deram conta do meu desaparecimento pelos jornais.

Estava concluída a “operação perfeita”.

Algumas reacções

As reacções foram das mais variadas, de acordo com a cuidada reconstituição que consegui fazer ao longo dos meses.

Soube que o Gen. Costa Gomes, que se ausentara para Bruxelas em viagem de serviço, não gostou e nem escondeu a sua preocupação. Isso só aumentou o meu prazer.

O Gen. Spínola, revelando o espírito de cavaleiro que sempre nele foi característico, tomou a coisa com desportivismo comentando que “era de esperar que esse tipo fizesse uma dessas”.

Quanto ao Presidente Banda limitou-se a afirmar, sorridente: “esse Jardim, ou o matam logo ou acaba sempre por se escapar, não podiam esperar o contrário”.

O aliviado Dr. Proença, que tão maus bocados passara, cruzou toda uma recepção oficial para abraçar Pombeiro de Sousa e segredar-lhe que “o nosso amigo conseguiu fugir”. Fez logo conjecturas sobre as cumplicidades que o teriam permitido. Como de costume não acertou, na verdade.

Na Beira, quando a rádio deu a notícia, houve regozijo geral e até se esboçaram manifestações nas ruas.

Meditação

Os dias de retiro que passei na embaixada foram em grande parte preenchidos com a meditação da grave crise que se desenhava.

A pureza e bons propósitos iniciais do “Movimento”, que lhe concederam a adesão das massas populares, resvalavam, visivelmente, para o pântano em que viria atolar-se.

O simbolismo alegre das flores desaparecia, ao mesmo tempo que os cravos iam murchando. E quando murchavam, a cor vermelha saltava mais à vista em semelhança mórbida com sangue que seca sobre os cadáveres quando deixa de jorrar das feridas.

Lembrei-me que em África também as flores murcham. E murcham muito mais depressa.

Quando Abril finda, começa, naquelas paragens, o cacimbo. É a época de menos calor e menos mosquitos, que os visitantes preferem para ali aparecer a explicar-nos tudo quanto sabiam e nós ignorávamos, sobre a África em que vivíamos.

A partir de então raro chove e até as picadas ficam transitáveis. Sem a chuva as flores murcham depressa. Com o fim de Abril não há flores em África.

Avizinha-se a época das queimadas (ob. cit., pp. 239-255).

Continua

omingo, 26 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (ix)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Perseguição e atropelos

Durante os 23 dias da minha reclusão na embaixada, muito havia acontecido.

Acompanhei isso pelos jornais, pelo écran do televisor e pelas informações que me chegavam. Mas certos aspectos só os vim a reconstituir e relacionar, posteriormente.

Constituíra-se o primeiro governo provisório português, sob a honrada presidência do Prof. Adelino da Palma Carlos que viria a demitir-se, em meio de Julho, afirmando não dispor de poderes para governar.

Governo Provisório em Moçambique

Almeida Santos ocupara a inovada pasta da Coordenação Interterritorial, com responsabilidade de conduzir a acção descolonizadora, e nela haveria de sobreviver ao longo dos sucessivos governos (cada vez mais pró-comunistas) de Vasco Gonçalves, realizando acção que não surpreendeu ninguém e que para sempre o responsabilizará. Só viria, mais de um ano volvido, a abandonar Vasco Gonçalves, num gesto de dignidade tardia que lhe permitiu continuar no governo, em novo cargo.

Em meteórica viagem a Angola e Moçambique, Almeida Santos fizera democráticas sondagens às preferências locais, nada ficando a dever ao mais puro estilo colonialista. Os acolhimentos populares que recebeu não foram propiciadores e nalguns ensejos teve de buscar a porta de saída mais segura.

Julgo que, ao menos, foi sincero e realista quando, nalguns encontros, aconselhou os brancos a retirarem os haveres e o físico, já que ninguém poderia responsabilizar-se pelo que aconteceria depois da independência que inevitavelmente se avizinhava. Isso foi dito a pessoas concretas e identificadas e disso deu exemplo com as precauções que tomou (retirando o mais que pôde) e foram publicamente conhecidas com escândalo. Para além das transferências “legais”, oportunamente realizadas e algumas delas documentáveis insofismavelmente, tentou ampliar essas providências, já muito depois de ser ministro. Disponho da identificação da pessoa que utilizou como intermediário e do testemunho de quem proporcionou o contacto.

Oficiais do “MFA” detectaram por outro lado, segundo directamente me referiram, avultados movimentos suspeitos de capitais em que o Dr. Almeida Santos estaria envolvido. Chegou mesmo a ser organizado processo. Mas nunca teve seguimento.

Mas o pior não havia de ser isso.

Fiel ao apadrinhamento do Gen. Costa Gomes no seu acesso às cadeiras do governo, o novo ministro conseguiu afastar a nomeação do Gen. Silvino Silvério Marques para governador-geral de Moçambique. Cancelou-se a decisão que o Gen. Spínola, cara a cara, me havia confirmado haver sido tomada pela Junta de Salvação Nacional. Silvino Silvério Marques foi atirado para a fogueira de Angola, onde o seu amor por aquelas gentes o sacrificaria numa missão que Lisboa tornava irrealizável.

Para Moçambique foi imposto o Dr. Soares de Melo.

Tratava-se de “democrata” convicto. Amigo e homem de confiança de Almeida Santos. Caracterizado pela mais evidente incapacidade governativa.

Viria a demitir-se poucas semanas depois, tendo conseguido estabelecer inimaginável grau de confusionismo e arrastar o território para o pânico e para o caos.

Correspondia isso ao planeamento delineado e que adiante referirei.

Para tal havia sido indispensável arredar a presença do Gen. Silvino Silvério Marques cuja honestidade se temia.

Acendia-se o primeiro fogacho da grande queimada.

Um advogado de Lourenço Marques riscara o primeiro fósforo…

No acto de posse dos dois governadores-gerais, em 11 de Junho, o Presidente da República pronunciara um excelente discurso doutrinário em que continuava a sustentar a tese da autodeterminação, evoluindo para fórmulas mais realísticas do que as que se continham em “Portugal e o Futuro”.

De forma categórica proclamava:

“Poderão, pois, estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo já feito a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que chamam à África a sua terra a ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade”.

Não creio que o Gen. Spínola mentisse conscientemente. Tudo o que se passou, de então até hoje, evidencia, no entanto, como milhões de pessoas foram traídas por essas palavras.

Quantos dramas elas provocaram.

O ministro Almeida Santos proferiu, no acto, um discurso empolgante de que parece útil recortar alguns passos mais significativos, começando pela saudação ao Gen. António de Spínola:

“Saudação que, sendo dirigida a V. Ex.ª, Senhor Presidente da República, é como que dirigida ao redimido povo português, que V. Ex.ª, lidimamente, representa e encarna. Não creio que a nossa história ofereça outros momentos – se é que oferece algum – em que com tanta homogeneidade de sentimentos o povo se tenha identificado com o seu Chefe. É V. Ex.ª a pessoa e o magistrado para que convergem, aí se encontrando, as aspirações, as ansiedades e as esperanças dos portugueses”.

Por si só, estas declarações traduziam o endosso, aliás natural para um membro do governo, de toda a orientação e das garantias anteriormente expressas pelo Presidente da República. Parece dispensável recordar o que veio a passar-se, poucos meses depois, com radical mudança de atitudes.

O ministro alargou-se, depois, em críticas à centralização exercida pelo Ministério do Ultramar, sublinhando como pelo telefone se davam ordens a territórios distantes. Parecia entender que isso era sinónimo do mais despótico colonialismo.

Referindo-se à escolha feita do governador-geral de Moçambique, afirmou exactamente:

“Moçambique, com confortante convergência, quis para seu governador o Dr. Henrique Soares de Melo. É natural de Moçambique, advogado brilhante e prestigiado, democrata de todas as horas, da alma, de longa data defensor do princípio da autodeterminação com todas as consequências, pessoa dotada de proverbiais dotes de inteligência, equilíbrio e ponderação. Eu próprio – aliás seu amigo – teria votado nele”.

A verdade é que, com tão tremendas qualidades (que pareciam ofuscar os méritos de Ayres de Ornelas e António Enes), o Dr. Soares de Melo viria a exercer um governo desastrado nos escassos 45 dias que se manteve no poder e nem sequer abandonou o condenado hábito de obedecer às ordens telegráficas do ministro. O colonialismo só tomava novas roupagens, tanto quanto possível “democráticas”, porque regressava às suas piores formas.

A linha dinástica estava definida: Costa Gomes escolhera Almeida Santos e este votara no seu amigo Soares de Melo, afastando o incómodo Gen. Silvino Silvério Marques que não lhes teria feito o jogo.

Nada podia ser mais claro.

Aliás, a inovação que o Dr. Almeida Santos com tanto ênfase destacara “de ter sido a primeira vez que a nomeação dos Governadores de Angola e Moçambique foi precedida de uma directa auscultação da vontade das populações” não voltou mais a repetir-se. Ainda que com o mesmo ministro a desempenhar as mesmas funções em sucessivos governos, cada vez mais “democráticos”.

Recearam, sem dúvida, repetir a experiência.

Mandato de captura, contas congeladas e inquéritos

Depois de regularizar a minha situação junto das autoridades espanholas, que foram impecáveis mas rigorosas no cumprimento das formalidades, comecei a ser assaltado por jornalistas que depressa descobriram onde me encontrava.

Aliás, não me escondi e nem tinha motivo para isso, confiado no respeito espanhol pela legalidade em que imediatamente me integrara.

Afastei-me de quaisquer comentários sobre a situação portuguesa e concentrei-me nos problemas de Moçambique. Afirmei o propósito de ali regressar quanto antes com a força dos direitos que ninguém me poderia retirar. Disse do meu convencimento de que o governo não se atreveria a impedir-me de o fazer e não ousaria deter-me. Defendi a autodeterminação a caminho da independência multi-racial, com aberta participação dos movimentos nacionalistas e integração numa “Comunidade Lusíada”.

Critiquei o governo que o Dr. Soares de Melo acabava de constituir, afirmando que não tinha qualquer representatividade: nem racial, nem política e nem regional.

Creio que nisso só tive o mérito da primazia porque, depois, todos vieram a dizer o mesmo.

O próprio Samora Machel havia de declarar:

“É erro grave o que o governo português está a cometer. Esse governo não é popular, não é governo de Moçambique. É governo provisório colonial. Representa os interesses dos colonialistas. São representantes de Lisboa. Tenhamos essa noção bem fixa”.

Há que reconhecer que tinha razão e que tinha sido, na verdade, muito grave o erro cometido pelo Dr. Almeida Santos complicando, em obediência a plano de que quero crer que foi joguete, o xadrez descolonizador.

Alguns amigos meus criticaram-me pela clareza com que eu disse a verdade.

Continuo a não estar arrependido apesar das consequências que sofri. Pelo menos, houve o mérito de logo se definirem posições.

Em 18 de Junho todos os jornais, moçambicanos e portugueses, publicavam a seguinte nota oficiosa do governo geral de Moçambique:

Na imagem: Jorge Jardim

“Foi divulgada pela agência “Reuter” uma notícia que refere ter o Sr. Eng.º Jorge Pereira Jardim abandonado a embaixada do Malawi em Lisboa, contrariando uma determinação das autoridades portuguesas.

A sua presença foi, posteriormente, assinalada em Madrid donde partiu para destino desconhecido e onde deu uma conferência de imprensa na qual afirmou que regressaria brevemente a Moçambique e em que desafiava as autoridades deste Estado a prendê-lo.


Porque tais afirmações constituem um desprestigiante e aberto desafio às autoridades deste Estado legalmente constituídas e porque a sua presença em Moçambique poderá, eventualmente, tornar-se nociva, dá-se a público conhecimento, de que foram tomadas as seguintes medidas:


- Emissão, pelas autoridades competentes, dum mandato de captura contra o referenciado;

- Congelamento de todas as suas contas bancárias existentes neste Estado;

- Averiguação da sua responsabilidade criminal, por actos praticados durante a vigência do anterior regime”.


Trata-se de um documento notável que pareceria impróprio de “advogado brilhante e prestigioso”, “democrata de todas as horas, da alma” e “pessoa dotada de proverbiais dotes de inteligência, equilíbrio e ponderação" para me ater aos qualificativos que lhe atribuíra o ministro Almeida Santos”.

Quando os jornalistas voltaram a procurar-me em Madrid, onde permanecia e sem sequer mudar de hotel, fiz-lhes notar que a nota oficiosa era um modelo de prepotência. Passava-se mandato de captura e determinava-se o congelamento de bens com base em recortes de jornais, sem se conceder ao acusado a mais ligeira possibilidade de defesa. Acrescentava-se, depois, que se iria averiguar da responsabilidade criminal por actos eventualmente cometidos sem ao menos se mencionar a suspeita de quais eles fossem.

Fazia-se tudo ao contrário das mais elementares normas jurídicas.

Comentei: “Pelo que me informam, parece que o Dr. Soares de Melo evidencia preocupantes tendências fascistas”. Isto enfureceu os provisórios governantes de Moçambique que voltaram a sentir-se desprestigiados.

Cumpriam-se ordens de Lisboa

A verdade da história veio a ser averiguada depois.

Por telegrama de 15 de Junho dirigido ao governador-geral de Moçambique pelo secretário-geral do Ministério da Coordenação Interterritorial, determinava-se aquela ordem de captura, o congelamento das contas bancárias e a publicidade das medidas adoptadas “justificando-as na medida do possível”!

Cópia deste telegrama veio a tombar em mãos amigas e do seu conhecimento fiz uso em sucessivas exposições ao governo de Moçambique e ao Presidente da República Portuguesa. Fiz quatro exposições, intervaladas, desde Outubro de 1974 a Outubro de 1975 e nelas sempre insisti para que me fosse dado conhecimento do resultado das “averiguações” que naquela nota oficiosa (de Junho de 1974) se ameaçava irem ser realizadas. Até hoje não obtive outra resposta que não fosse o burocrático ofício acusando a recepção. Ao menos está provado que as receberam.

Ninguém desmentiu as minhas denúncias e ninguém foi capaz de me acusar de qualquer acto criminoso, apesar de haverem sido interrogadas, detidas e pressionadas as pessoas que mais de perto comigo conviviam ou colaboraram.

Neste método de intimidação até o meu corajoso advogado acabou por ser preso, em Dezembro de 1974, pelas autoridades portuguesas na Beira. Pedi-lhe que deixasse de intervir no processo, para não ser vítima de novos abusos.

Falta, ainda, acrescentar que o director da polícia judiciária, em Lourenço Marques, entendeu não haver fundamento legal para a passagem do mandato de captura que lhe havia sido determinada pelo procurador da República em obediência a despacho do Dr. Soares de Melo. Isso de nada valeu e a determinação foi mantida, com o protesto daquele funcionário.

A polícia judiciária moçambicana remeteu, depois, carta precatória ao Ministro da Coordenação Interterritorial pedindo o fundamento daquela ordem. Também nunca foi recebida resposta.

Um telegrama do ministério, em Lisboa, tinha mais força do que a lei. Assombra recordar as diatribes do Dr. Almeida Santos contra a prepotência do regime derrubado que “teve o telefone por principal instrumento” dos seus métodos coloniais. Até parece que o telégrafo estava fora do âmbito das suas intenções reprovadoras, já que o usou com tanta desenvoltura.

Seja como for, o certo é que me vi privado de todos os direitos e roubado dos meus bens, só por ter tido a coragem de dizer aos jornais (em Junho de 1974) o que toda a gente pensava e com razão comprovada, do governo provisório de Moçambique. Também é certo que a minha numerosa família, com as contas bancárias congeladas, teve de viver do apoio financeiro de amigos e, até, da comovedora subscrição de trabalhadores africanos da Beira que a fora, entregar, abnegadamente, a minha mulher.

Também tive a compensação moral de nada se ter provado no duro inquérito que me quis atingir.

Se tal rigor fosse sempre aplicado, tenho dúvidas se a mesma inocência poderia ser demonstrada por quem se apropriou de serviço da China existente na residência oficial de alto comando, em Angola, ou tentou comprar clandestina e ilegalmente, pedras preciosas no decurso de uma visita de trabalho ao interior do território.

Esses actos foram praticados pelo Gen. Costa Gomes ou sua mulher, conforme me declarou pessoa identificada e de idoneidade indesmentível.

Denuncio factos concretos. Coisa que contra mim nunca aconteceu.

Aliás, o mesmo Gen. Costa Gomes fez enviar telegraficamente, para Moçambique, instruções para que as Forças Armadas interviessem no caso de eu pôr pé em Moçambique, apresando o meu avião. Acrescentava-se que me deviam abater, se necessário.

A tranquilidade do senhor ministro

Li, ultimamente, que o Dr. António de Almeida Santos (agora transplantado para o Ministério da Comunicação Social) revelara compreensível tranquilidade quanto às acusações que circulam, em todas as bocas, sobre a existência das suas contas na Suíça.

Em argumento de advogado sustentava e com razão, que é quem acusa que compete provar. Até estou de acordo. Mesmo quando se saiba como há coisas difíceis de provar.

Só aconteceu que no meu caso a mesma norma jurídica não funcionou. Fui acusado, fui vítima de atropelos e prepotências, tive a vida profissional destruída e congelaram-me as contas. E sem nada se darem ao trabalho de provar.

Tudo por ordem do Dr. Almeida Santos.

Parece que as regras do jogo não são sempre as mesmas e que só funcionam quando esteja em causa “um ministro revolucionário” que logo acontece ser um dos responsáveis oficiais pela descolonização que lançou para a miséria e para o desespero, centenas de milhar de pessoas. E a essas, nem se lhes trocava o dinheiro ultramarino que traziam para sobreviver uns dias. Para essas, não houve transferências. Nem para Portugal.

A tranquilidade do senhor ministro não seria a mesma se fosse consentida a minha entrada, legal, no país de que é governante e se as testemunhas pudessem depor livremente num tribunal independente.

Se quem acusa tem de provar, não é menos verdade que para o fazer tem de dispor de garantias. Tem de ter garantia de que não se lhe arma uma cilada depois de se declarar nada haver “política, pessoal ou criminalmente” em seu desabono. Tem de ter a garantia de não lhe confiscarem os bens e se justificar esse abuso “na medida do possível”. Tem de ter a garantia de não ser dada ordem para o abaterem como animal selvagem.

Essas garantias, sabe o Dr. Almeida Santos que me foram negadas. Até me foi negado conhecimento das condições do inquérito que, por sua ordem, me foi mandado instaurar há quase dois anos.

Se quem acusa tem de provar, onde estão as provas daquilo que o levou a condenar-me sem julgamento?

Mas sei o que isso me tem custado e, mais ainda, o que tem custado a tantos outros sem ninguém se dar ao trabalho de produzir provas, perante a indiferença do mesmo senhor ministro que, na impunidade da sua força, exige provas para aquilo que toda a gente sabe a seu respeito.

Cuidado porém. As contas da Suíça ou os prédios em Portugal podem não passar de pretexto para desviar as atenções dos actos mais graves que, como ministro, o Dr. Almeida Santos cometeu ou daqueles de que foi cúmplice.

As vítimas de Moçambique, os milhares de mortos ou desterrados de Angola, a guerra civil de Timor são coisas de que não se pode desviar a atenção. E nesses casos há provas.

Parece que só se salvou Macau porque a China não consentiu, ali, a “descolonização original”.

Se o repto que o Dr. Almeida Santos lançou não é uma farsa e se quer, mesmo, ser julgado com provas, lanço-lhe o desafio para nos encontrarmos, perante tribunal, desde que me ofereça (e às demais testemunhas) o mínimo de garantias que são exigíveis.

Se não o fizer, também não perde pela demora.

Quem já esperou dois anos…

Um livro não é uma carta. Por isso não espero resposta.

Regresso a África

Permaneci alguns dias em Espanha, reencontrando-me com amizades que em Madrid consolidara nos meus distantes tempos de estudante ou quando ali desempenhei missões oficiais de colaboração entre os dois países peninsulares. Não era, aliás, segredo para ninguém a formação hispânica que recebera e que levara, mesmo, a ser considerado como excessivamente “iberista”.

Na imagem: Cape Town

Tomei a precaução de limitar os meus contactos com jornalistas e pedi a amigos, na África do Sul, para fazerem em meu nome reservas de hotel em Johannesburg, Cape Town, Durban e Salisbúria. Esta medida deu o efeito desejado, pois os jornalistas portugueses e moçambicanos referenciaram, com copiosos detalhes, a minha suposta presença nessas paragens. Até se chegou a noticiar que eu teria estado em Moçambique e houve quem assegurasse ter-me visto na Beira, movimentando todo um aparato policial.

Com isso deixavam-me tranquilo na Europa, como mais me interessava.

Em Londres encontrei-me com Pombeiro de Sousa que me informou sobre o que se passara em África durante a minha forçada imobilização.

Encontro oficial em Lusaka

Depois da visita a Blantyre e encontro com o Presidente Banda, o Dr. Kaunda tinha feito informar Pombeiro de Sousa de que a “Frelimo” estaria disposta a realizar um primeiro contacto informal com representantes do novo regime português. Sugeria-se que tivesse lugar em Lusaka nos últimos dias de Maio ou começos de Junho. Samora Machel encabeçaria a delegação da “Frelimo” e tudo se passaria sob os auspícios da Zâmbia.

Entretanto, era recebida a informação de que Lisboa não considerava desejável a nossa intervenção nesses contactos, nem como elementos de ligação, e Pombeiro de Sousa encaminhou o convite do Dr. Kaunda para as vias oficiais portuguesas, dando dele conhecimento ao encarregado de negócios de Portugal no Malawi, Dr. Matos Proença. Este logo enviou mensagem para o seu ministério.

A resposta tardava em chegar, porque Costa Gomes confiava mais no resultado das diligências que pessoalmente movimentara em Moçambique, causando enervamento em Lusaka. O Dr. Kaunda recorreu, então, aos bons ofícios do governo britânico.

O único telex que a embaixada portuguesa em Blantyre recebeu do seu ministério limitava-se a determinar que cessassem as funções de Pombeiro de Sousa como cônsul honorário de Portugal. Nisso transparecia a influência vingativa de Futcher Pereira, antigo embaixador do Malawi, que fora dos raros diplomatas a precipitar-se na adesão ao novo regime em evidente manobra de apagar a lembrança do servilismo com que actuara na situação política anterior. Um dos casos mais graves tinha surgido em consequência da activa colaboração entre Futcher Pereira e o sub-director Vinhas, da “PIDE”, na condução de acções clandestinas contra elementos da “Frelimo” em território do Malawi. A isso, sempre se opusera firmemente Pombeiro de Sousa, com o meu inteiro apoio e concordância.

A demissão de cônsul honorário de Portugal, ao cabo de uns quinze anos de trabalho dedicado, era a consequência daquela atitude que assumira contra as pretensões policiais de Futcher Pereira.

O encontro de Lusaka que o Dr. Kaunda propusera por nosso intermédio, veio a concretizar-se nos primeiros dias de Junho com a presença do Dr. Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros) e do Maj. Otelo Saraiva de Carvalho (representando o “MFA”).

Não foram felizes as exteriorizações de camaradagem em que Mário Soares foi pródigo, no ostensivo abraço a Samora Machel e não correram paralelas com a eficiência negociadora.

Os dirigentes da Zâmbia e da “Frelimo” desconfiaram daquela exuberância e não entendiam a despreocupação de um ministro português (fosse qual fosse a sua ideologia política) pelo acautelamento de aspectos fundamentais. Perante a total impreparação para tratar os problemas, as coisas chegaram ao ponto de ser a “Frelimo” a sugerir uma agenda de trabalhos em que se mencionavam os assuntos que, presumivelmente, os delegados portugueses desejariam abordar e esclarecer.

Pelos dados concretos que tive a oportunidade de conhecer creio, ainda, que o Dr. Mário Soares foi, sobretudo, vítima da preocupação de se valorizar, interna e externamente, como obreiro da descolonização. Com isso conquistaria prestígio pessoal e para o seu partido, apresentando-se como o mais dotado para o diálogo e mais capaz de encontrar as soluções que se impunham.

Cometeu um erro táctico muito grave porque veio a recair sobre ele a responsabilidade, enquanto outros manobravam por canais diferentes, em premeditado plano que o utilizava como figura de fachada.

Há que reconhecer, objectivamente, que não lhe cabem as maiores culpas em tudo o que veio a acontecer. O Dr. Mário Soares, foi marioneta habilmente explorada. Todavia, se não lhe pertenceu a iniciativa da manobra, já não se pode libertar de nela ter participado com os resultados conhecidos.

Por outro lado, carecia de apoio profissional válido por parte dos conselheiros diplomáticos que o rodeavam e que da África sabiam muito pouco. Entre os maus elementos que abundavam no Ministério dos Negócios Estrangeiros teve a pouca sorte de escolher os piores.

De qualquer modo este primeiro encontro de Lusaka redundou num fracasso, perdendo-se semanas preciosas e afastando-se, cada vez mais, a possibilidade de uma negociação digna.

Otelo não pôde encontrar-se comigo

Na imagem: Carmo Jardim, instrutora dos Grupos Especiais Páraquedistas (clique para ampliar)

Entretanto, Otelo Saraiva de Carvalho estabelecera contacto comigo, através de amigos comuns.

Nunca nos tínhamos visto mas parecia haver certa comunicabilidade entre nós. Sem sabermos bem porquê, criou-se um vínculo de simpatia mútua e vim a ter razões de agradecimento pela protecção dada, em Portugal, à minha família e extrema correcção com que se ocupou da sua segurança.

O Maj. Saraiva de Carvalho queria encontrar-se comigo e, depois de arredadas hipóteses que sugeriu, tudo se combinou para podermos conversar em Madrid, num hotel da zona do aeroporto, em 27 de Junho. Pombeiro de Sousa deslocar-se-ia comigo, de Londres, onde logo regressaríamos.

Na aparência, Otelo havia regressado de Lusaka no convencimento de que a minha intervenção poderia ser útil. Tivera instintivamente a percepção do falhanço que fora aquele encontro com a “Frelimo” e os oficiais do “MFA”, em Moçambique, insistiam junto dele por uma solução urgente que eu poderia estar em condições de obter.

Mandou-me perguntar, pelo nosso canal de contacto, se eu aceitaria que Mário Soares estivesse também presente no nosso encontro.

Eu também nunca vira Mário Soares e não conhecia dele mais do que se ia lendo nos jornais ou ia ouvindo nos comentários, políticos e pessoais, que a seu respeito circulavam. Não tinha qualquer interesse em conhecê-lo, mas não recusei a sugestão por admitir que, do diálogo, pudesse resultar alguma coisa de útil para Moçambique.

Havia até acontecido que quando escapei de Portugal, Mário Soares respondera a perguntas de jornalistas, ao embarcar para Otawa, no aeroporto de Lisboa, dizendo que eu me ausentara “de forma mais ou menos clandestina” e por motivos que só eu poderia conhecer, dado que contra mim nada existia pessoal, política ou criminalmente. Quando os homens da informação me mostraram esses comentários do ministro, é evidente que não fui amável. Respondi: “Ou se trata de um mentiroso ou de um ignorante; em qualquer das hipóteses não me parece que seja posição recomendável para um ministro com tão especiais responsabilidades no governo português.

Julgo que o Dr. Mário Soares não gostou do que eu disse (e que os jornais reproduziram como o haviam feito com as suas declarações) mas a verdade é que eu não podia dizer outra coisa. Estava certo da existência do mandato de captura, que até fora mostrado a correspondentes estrangeiros e não podia esquecer o aparatoso cerco à embaixada em Lisboa.

Se o ministro sabia disso e afirmava o que afirmou, não tinha outro qualificativo que não fosse o de mentiroso (mesmo que mentindo diplomaticamente), mas se o não conhecia, tratava-se de ignorância e altamente preocupante.

Efectivamente, o chefe do Estado Maior General, Francisco da Costa Gomes, emitiu despacho determinando a minha imediata captura no dia 1 de Junho e essa decisão foi circulada no dia 4, a todas as entidades policiais e equivalentes. Não era crível que dela não tivesse conhecimento o Ministro dos Negócios Estrangeiros, no dia 18 de Junho.

Admito, hoje, que de facto a desconhecesse, o que retira a suspeita de haver mentido, neste caso. Mas isso confirma a hipótese da ignorância, evidenciando os métodos usados para converter os mais destacados governantes em joguetes de um planeamento premeditado.

Aceitar conduzir o grave problema da descolonização na ignorância, não recomenda ninguém para chefe de partido político, com certa representatividade, e muito menos para as sérias responsabilidades do governo.

Tudo quanto tenho deixado referido veio a ter plena confirmação com o cancelamento do encontro com Otelo de Saraiva de Carvalho. À última hora e invocando afazeres militares inadiáveis, foi anulado aquele encontro.

Mais tarde, um oficial da sua confiança haveria de revelar-me, em Cáceres, que a alteração do planeado resultara de terminante proibição por parte do Gen. Costa Gomes a quem Otelo referira o projecto.

Costa Gomes persistia, assim, em conduzir pelas suas vias a descolonização, temendo, mesmo, que um revolucionário insuspeito como Otelo de Saraiva de Carvalho (e eventualmente Mário Soares) pudesse ser influenciado pelo conhecimento de existirem possibilidades de negociação que não se enquadravam nos seus desígnios.

O posterior envio de Otelo Saraiva de Carvalho a Cuba integra-se no mesmo planeamento. Era evidente que um jovem oficial impetuoso e com deficiente cultura política, seria presa fácil da atractiva personalidade de Fidel de Castro. Isso atirá-lo-ia para a extrema-esquerda onde poderia ser útil a certos intuitos políticos ou onde poderia ser inutilizado se mostrasse demasiada capacidade de competição.

Ambas as coisas vieram a acontecer (ob. cit., pp. 259-271; 273-275).

Continua

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (x)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Carmo Jardim, instrutora dos grupos Especiais Páraquedistas

Preocupação em Lusaka

«(…) apreensões fui encontrar em Lusaka quando ali me desloquei em 10 de Julho, conforme combinara com Mark Chona. Levei comigo minha mulher e a Carmo, enquanto que Pombeiro foi acompanhado pela mulher.

(…) Entretanto, na “State House”, Mark Chona e Peter Kassanda insistiam em assegurar-nos que o nosso “Programa de Lusaka” continuava inteiramente actualizado, como base e norma para as negociações. Recomendavam-nos que diligenciássemos organizar a importante minoria branca moçambicana e os africanos meus amigos, em termos de se dispor de uma força válida para o diálogo com a “Frelimo” que, em caso de necessidade, pudesse vencer o imobilismo de Lisboa. A visita do Dr. Mário Soares tinha-os desiludido e as declarações do Dr. Soares de Melo, em Moçambique, eram tidas como preocupantes.

Como evolução importante sobre os esquemas discutidos no passado, disseram-nos que, depois de tudo o que acontecera, a independência não podia ser discutida e seria inaceitável submetê-la a referendo. Com isso só se perderia tempo e poderia agravar-se o caos, com enfrentamentos tribais que era indispensável evitar.

Foi sublinhado, com ênfase, que a “Frelimo”, desejaria uma evolução que reunisse todos os valores que Moçambique pudesse mobilizar. Com o propósito dominante de tornar viável o governo do país, na fase transitória, e de lançar as bases para uma fecunda colaboração futura, havia que afastar preocupações ideológicas, que esquecer as atitudes assumidas no passado e não olhar a raças dos que estivessem dispostos a esse trabalho comum.

Aceite ou proclamada a independência, estaria a “Frelimo” desde logo disposta a cessar as operações militares e competiria, então, a todos os moçambicanos definirem, pelo voto, as estruturas nacionais que desejassem. Discutimos o tempo que seria indispensável para se atingir essa fase e concluímos que, trabalhando com afinco e não se perdendo mais tempo, poderíamos ter a independência consolidada por alturas de Outubro de 1976. Para isso, era indispensável levar Lisboa a passos imediatos ou fazer-lhe saber que os daríamos, se não tomasse a iniciativa.

Apreciámos a situação confusa que reinava em Portugal com distintos centros de decisão (Junta de Salvação Nacional, Governo MFA) enfrentando-se conflitivamente. Para agravar a situação dava-se, por esses dias, a demissão do governo provisório a que presidia o Prof. Palma Carlos.

Concluímos que o centro de decisão mais válido residia no “MFA” e fiquei de lhes fazer chegar as nossas recomendações.

Pequeno almoço com Kaunda

No dia 13 reunimo-nos com o Dr. Kaunda, em esforço matutino (...).

(...) Resumimos o que tratáramos e deu-nos o melhor encorajamento, confiando em que pudéssemos obter, finalmente, os resultados desejados. (...)

Renovou a oferta para que a minha família se acolhesse à hospitalidade da Zâmbia assegurando que não haveria dificuldade em instalá-la convenientemente apesar da dimensão do agregado familiar que minha mulher lhe recordou. Declinámos o amigo convite dizendo quanto nos sentíamos bem no Malawi que, pela proximidade com a Beira, nos permitia ligações mais rápidas e frequentes com os filhos que ainda permaneciam em Moçambique.

Na imagem: Carmo Jardim

Nessa mesma manhã regressámos a Blantyre e a Carmo, que fizera amizade com as tripulações italianas ao serviço da "Zâmbia Airways", realizou toda a viagem na cabina de pilotagem falando pela rádio com Tete e com a Beira. Os controladores parece que ficaram surpreendidos ao inteirarem-se de que continuava a minha liberdade de movimentos entre os países africanos quando o noticiário, da já orquestrada imprensa, referia coisas bem diversas a meu respeito.

Campanha de agitação e mentiras

Em 15 de Julho, eu havia entregue ao Maj. Varela, em Blantyre, uma declaração assinada, destinada aos jornais moçambicanos e às agências informativas, distribuindo paralelamente uma tradução do texto, em inglês.

Nela desmentia que estivesse ligado à imaginária incursão de mercenários em Vila Pery, que promovesse a agitação registada entre os trabalhadores da Beira ou os actos terroristas assinalados nalgumas regiões. Negava, sobretudo, pretender uma independência unilateral sob o domínio da minoria branca.

A minha declaração não teve, no entanto, a mesma divulgação que haviam tido as calúnias contra mim levantadas. Houve jornais que só a publicaram, com atraso, depois da intervenção energética de oficiais amigos.

Como indício revelador da maquinação urdida, é útil recordar crónica proveniente de Lourenço Marques e que o “Expresso” publicou na edição de 20 de Julho. Essa notável peça deve-se aos correspondentes Areosa Pena e Paulo Chauque, conhecidos pela sua associação íntima com os “democratas de Moçambique”.

Num notável prodígio de imaginação escrevia-se concretamente:

“A acção dos mercenários brancos, enquadrando grupos africanos armados e enviados por Jorge jardim para provocar o terror no distrito de Vila Pery, de acordo com um comunicado do Comando Militar do sector, foi neutralizado, segundo apurámos, devido à pronta acção do Exército Português e dos nacionalistas da Frelimo”.

E acrescentava em pura fantasia:

“De acordo com um contacto telefónico efectuado pelo “Expresso” com aquela cidade do centro de Moçambique, a partir da comunicação feita às Forças Armadas através de uma autoridade civil do distrito, o Exército Português e os nacionalistas da Frelimo passaram à perseguição dos mercenários, unidos numa aliança táctica contra o inimigo comum, actuando cada uma das forças em áreas separadas”.

A tal coluna de mercenários desapareceu misteriosamente e nunca mais alguém ouviu falar nela. Deve-se isso à simples razão de nunca ter existido.

Manifestamente que estava preparada toda uma farsa mistificadora que visava atingir-me.

O mais notável é que essa campanha viria a ser seguida, poucos dias depois, por actuação oficial determinada em Lisboa. Ficaria demonstrada a ligação entre todos os comparsas que uma vontade superior, há muito, comandava.

Deslocação à Swazilândia

Cumprindo o planeamento combinado desloquei-me à Swazilândia onde tinha encontro aprazado com pessoas de Lourenço Marques e da região sul de Moçambique.

Ali, em Matzapa, recebi (dias a fio) os que vieram procurar-me.

Todas as tendências e todos os interesses estiveram representados. Nem faltaram, sequer, militantes da “Frelimo”, que me conheciam de longa data, buscando uma palavra de orientação.

Informaram-me de que o ambiente se deteriorava em termos ainda mais preocupantes do que eu pudesse conceber. A incapacidade governativa era catastrófica e a propaganda desencadeada pelos “democratas” conduzia a um clima de pânico que fazia as pessoas avizinharem-se do desespero.

Revelei o nosso “Programa de Lusaka”, dei a conhecer as garantias que recebera e anunciei os nossos propósitos. Ao cabo de horas de argumentação, consegui o apoio e a confiança dos meus interlocutores. Aceitavam colaborar no esquema proposto e movimentar forças para uma coligação nacional no governo de Moçambique independente. Mas estavam desorientados e receosos.

A esta perigosa situação se havia chegado ao cabo de três meses de regime descolonizador.

Também ali me foi dado saber que Joana Simeão havia regressado de Portugal para conduzir um agrupamento político (a “Frecomo”) quem, com apoio dominante no tribalismo macúa, pretendia opor-se à influência da "Frelimo". Dispunha de largos meios financeiros que esbanjava em instalação de secretarias e em deslocação dos seus associados. Mantinha largas conversas telefónicas como o Gen. Costa Gomes (como fez de Quelimane e de casa de pessoa identificada) usando linguagem de intimidade que não consentia dúvidas sobre a genuidade dos contactos.

Comecei a entender o jogo que o enigmático general pretendia levar a cabo.

Pretendia-se o enfrentamento tribal, o desespero dos brancos e a frustração dos militares para se impor uma solução que todos aceitariam como salvadora.

Só ainda não entendia onde se queria chegar. (…)

Rousa Coutinho não pôde encontrar-se comigo

(...) Na manhã imediata, [Álvaro Récio] tomou o pequeno almoço na residência oficial do governador, com o Com. Rosa Coutinho e sua mulher.

Vieram à conversa acusações que já corriam sobre a filiação comunista de Rosa Coutinho que as repudiou com indignação. Afirmou que estaria disposto a pagar bem, só para ver a ficha da "PIDE" em que tal constasse. A senhora quase se emocionou ao gritar: "Oh Récio. Você está a ver-nos comunistas? Até dizem que o meu marido já o era há 14 anos. Veja bem onde pode chegar a calúnia!"

O Álvaro Récio concordou com o casal e eu também haveria concordado, nessa altura, se houvesse estado presente. Nada, no contacto com Rosa Coutinho, poderia levar a admiti-lo. Nem sequer usava o tipo de linguagem ou argumentação que, sem dificuldade, permite caracterizar os comunistas.

Por outro lado, o desejo de recorrer ao Dr. Kaunda para estabelecer contacto com movimentos nacionalistas angolanos, não levava a presumir qualquer predilecção pelo "MPLA".

Quando a senhora se ausentou, Álvaro Récio transmitiu a minha resposta.

Para assombro do bem intencionado emissário, o Com. Rosa Coutinho ficou alterado e quase se descontrolou ao dizer que não queria quaisquer ligações comigo, que já haviam progredido bastante nos contactos desejados e que até dispunham, localmente, de "uma espécie de jardim". Pediu ao Récio que não lhe criasse problemas e mencionou-lhe que, entretanto, havia estado em Lisboa.

O Álvaro Récio, segundo me descreveu no regresso, ficou transtornado com tal reacção. Recordou-lhe que o que fizera fora por expresso pedido dele, que bom trabalho tivera a convencer-me e que não parecia acertado abandonar as diligências efectuadas por iniciativa do próprio Rosa Coutinho.

Este não negou que assim tivesse sido, mas manteve a mesma reacção, com a preocupação repetida de "evitar complicações".

Na imagem: Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e Rosa Coutinho

Álvaro Récio ficou sem dúvida de que Rosa Coutinho (promovido a almirante logo a seguir ao "25 de abril") tinha recebido instruções expressas em Lisboa. Só isso o poderia ter feito alterar as suas intenções, reveladas apenas semanas antes.

Certamente que Rosa Coutinho não recebera essas instruções do Gen. Spínola com o qual afirmava não estar nas melhores relações. Sabia-se, porém, da sua estreita ligação com o Gen. Costa Gomes que veio a confimar-se quando da crise de 28 de Setembro e a revelar-se, abertamente, nos acontecimentos que se lhe seguiram. Por outro lado, o afastamento da Zâmbia do circuito mediador havia sido evidenciado como patente preocupação de Costa Gomes nos "cortes" da minha carta para o Dr Kaunda, conforme já anteiormente doccumentei.

A alteração do propósito de Rosa Coutinho de se encontar comigo, apresentava singular paralelismo com o cancelamento do encontro, em Madrid, desejado por Otelo Saraiva de Carvalho.

O mesmo cérebro, frio e metódico, exercia a sua influência para impedir que a desccolonização pudesse ser afastada dos rumos que havia planeado.

Estávamos em Agosto. Nessa altura, Já Melo Antunes aparecia como o negociador qualificado da descolonização. Haveria de vir a ser mais tarde, depois de 11 de Novembro de 1975, o defensor do reconhecimento do governo do "MPLA", antecipando-se, mesmo, à ocupação cubana e soviética.

Por isso não aceitara ser nomeado para Moçambique. Tinha outra missão a cumprir. Levou-a a cabo com êxito, apoiado no Gen. Costa Gomes que viria a tomar a atitude de reconhecer oficialmente esse regime, quando estava ausente de Lisboa o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo e outros membros do governo que a tal decisão igualmente se opunham.

É difícil entender a ingenuidade das declarações do Dr. Almeida Santos, que não considero tolo, exaltando os acordos do Alvor quando, nessa altura, a entrega de Angola estava já decidida. Como tinha sido planeado, impedindo-se para tanto o encontro de Rosa Coutinho com Kaunda.

Sem que se possa atenuar a tremenda responsabilidade do "Almirante Vermelho" na tragédia que Angola veio a sofrer, haverá de reconhecer-se que foi habilmente manipulado desviando-o dos seus propósitos iniciais.

Para isso, devem ter-se reacendido os compreensíveis rancores que conservava em resultado dos abusos, físicos e morais, de que há anos fora vítima em Kinshasa, às mãos da soldadesca.

Não foi capaz de esquecer. Não foi capaz de resistir ao anseio de vingança.

Como homem, compreendo-o. Mas não tinha de ser Angola inteira a pagar pelo que outros lhe haviam feito. (...)

O Kissinger africano

Embrenhámo-nos dois dias em intensas conversas com Mark Chona examinando, como habitualmente, a situação.

Contou-nos que havia acompanhado Joaquim Chissano a New York e que, no regresso, se haviam separado para permitir a Mark Chona passar rapidamente por Lisboa onde estabelecera contactos com os responsáveis. Vinha preocupado com a falta de preparação com que deparara.

Descreveu-me o encontro que tivera com o Dr. Mário Saores e com o Dr. Almeida Santos. Em seu entender eram completamente ignorantes dos problemas de África e não entendia como o Dr. Almeida Santos podia ter estado tanto tempo em Moçambique sem nada ter assimilado das realidades.

Mário Soares havia sido particularmente insistente a meu respeito, mencionando que me consideravam como "homem perigoso e capaz de tudo para realizar os seu propósitos". Verdade seja que Almeida Santos não pronunciara sequer uma palavra de comentário a tais diatribes e nada dissera que me atingisse.

Quase que divertido, Mark Chona relatou-nos que tinha tomado a posição de tudo ouvir sem abrir a boca. Fizera, apenas, o clássico movimento de sobracenlhas, tipicamente africano, que só pode ser interpretado (por quem o saiba) como signifficando "estou a ouvir". Parecera-lhe que Mário Soares havia tomado isso como atitude de concordância e que se sentira encorajado para insistir nos ataques.

Mark Chona assegurou-nos que a Zâmbia nunca seria sensível a tais pressões, tanto mais que considerava como "infantil" o incidente com o Malawi que se encerrara com nítido desprestígio para os portugueses.

Acrescentou que fizera viagem com Bill Mayer (vice-presidente executivo do "Bank of América" para qualquer zona de África) e que este lhe referira, por me conhecer bem do "Commercial Bank of Malawi", ser-lhe impossível acreditar nas histórias postas a correr a meu respeito. Mark Chona respondera-lhe que o Governo Zambiano também não dava credibilidade a tais acusações e que Bill o poderia repetir a quem quisesse. Disso, na verdade, já me havia chegado eco.

O notável assistente do Presidente Kaunda tinha uma capacidade de apreender os problemas que se apresentava invulgar e uma forma realista de actuar que lhe permitia encontrar soluções mesmo quando parecia perdido.

Daí resultou que o classificasse como "Kissinger africano", até pela rapidez como se movimentava, estando presente em toda a parte nos momentos oportunos.

O nosso "Kissinger" referiu-nos ter entendido que pouco havia a esperar da diplomacia clássica e que, como lhe tínhamos referido, seria ao "MFA" que se encontraria o interlocutor válido. Não citou nomes, mas não era preciso ser muito astuto para compreender que o Maj. Melo Antunes havia tomado a dianteira.

Estava confiado em que por essa via encontrassem as soluções desejadas e esperava que a descolonização de Moçambique pudesse oferecer um exemplo único de multi-racialidade e tolerância que influenciaria decisivamente a posição da África do Sul e da Rodésia, demonstrando às minorias brancas mais esclarecidas que nada tinham a temer da aceitação de governos de dominância africana. Parecia-lhe ser esta a melhor forma de combater, sem violência, o racismo daquele país que resultava afinal, do temor quanto ao futuro. O que acontecera em Moçambique seria, portanto, decisivo.

Quando lhe referimos que tínhamos realizado contactos com Pretória, ficcou encantado. Era excelente que acompanhassem a nossa evolução pois um dia haveria de chegar em que com eles se estabelecesse o diálogo e o caso de Moçambique representaria o melhor argumento.

Impressiona recordar, hoje, as ilusões de Mark Chona (e as nossas) porque Moçambique acabou por ser o exemplo oposto e por influenciar, compreensivelmente, a intransigência da minoria branca.

O Maj. Melo Antunes com o argumento "terceiro-mundista" e a proposição do socialismo argelino (que consistia em fazer Portugal ainda mais pobre, para se poder sentar no banco dos miseráveis) aparentava uma genuidade a que os africanos eram sensíveis a isso era facilitado pela impreparação de Mário Soares, acompanhada pela silenciosa ignorância de Almeida Santos que Mark Chona nos denunciava.

Junto a Melo Antunes estava o apoio de Costa Gomes, cujos propósitos eram, há muito, claros.

Verdade seja que, depois da "descolonização original" nenhum país africano abriu embaixada em Lisboa a não ser a Zâmbia, que para ali remeteu o nosso amigo Chimpampata. Do "terceiro-mundismo" apregoado por Melo Antunes, que, dele se pretendia arvorar em campeão, só ficou essa presença solitária.

Com alguns argumentos confusos, contra ao que nele era hábito, Mark Chona explicou o atraso da publicação da minha entrevista no "Times of Zâmbia". Também me assegurou que a minha carta para Samora Machel havia sido excelente, mas que teríamos de aguardar momento oportuno para um resposta. Era, para mim, evidente que alguma coisa de anormal acontecia.

Revelou-nos que o Presidente Kaunda se ausentara do país para uma reunião do mais alto nível em que o caso de Moçambique ficaria definitivamente decidido. Esperava que, dentro de muito poucos dias, tivesse lugar um encontro em Lusaka, com representantes portugueses credenciados para uma solução final. Não deixaria de contactar connosco para que fôssemos dos primeiros a conhecer a fórmula estabelecida.

No último encontro que tivemos (em 30 de Agosto) insisti em que a situação em Moçambique poderia avizinhar-se de confrontação dramática, tal era o estado de desespero das pessoas que não podíamos conter por mais tempo. As provocações multiplicavam-se e a minoria branca oscilava entre a fuga e a violência descontrolada. Ninguém os podia acusar por isso, ao cabo de quatro meses de um clima de agitação que minava as vontades mais fortes e melhor intencionadas. (...)

"Há que abater Melo Antunes"

O Gen. Spínola encontrava-se num estado de grande depressão. Chegara ao ponto de chorar abertamente durante uma das audiências. Sentia-se que estava submetido às maiores pressões contra as quais mal podia reagir. Desabafara afirmando que estava "rodeado por covardes e traidores".

Contou toda a história das negociações, afirmando que nunca transigiria com o que lhe queriam impor. Os próprios ministros Mário Soares e Almeida Santos, que os emissários viram sem lhes falar, pareciam acabrunhados.

Quando se mencionou o nome do Maj. Melo Antunes, o Gen. Spínola não se conteve gritando que "esse é um comunista, não tenho já dúvidas a tal respeito".

Referiram a possibilidade de ele ser nomeado para Moçambique (como os jornais haviam largamente noticiado) e o Presidente da República acrescentou: "Se isso acontecer há que abatê-lo. Têm três dias para lhe darem um tiro na cabeça".

Penso que a ninguém ocorreu objectar que seria mais simples não chegar a nomeá-lo, uma vez que essa prerrogativa pertencia ao Chefe de Estado.

Ainda mais simples teria sido prendê-lo em vez de oficiais considerados patriotas (como o Ten. Cor. Alexandre Lousada, o Com. Almeida e Costa e o Maj. Casanova Ferreira) aceitarem fazer parte do séquito de um "comunista" na sua triunfalista deslocação a Lusaka.

Ambiente golpista

Face a esta situação é compreensível que os emissários regressassem de Lisboa em estado de desespero e dispostos a todos os extremos.

A situação agravava-se, como eu previra, confirmando os sucessivos alertas dados em Lusaka e as claras advertências contidas na minha carta, de 31 de Julho, para Samora Machel.

Gomes dos Santos assegurou-me dispor de sólidos apoios financeiros e entendia não poder aguardar mais tempo, continuando a confiar-se nas pessoas com quem eu mantinha ligação. Em seu parecer tinha chegado a altura de recorrer à força para fazer escutar a voz dos moçambicanos que corriam o sério risco de serem abandonados à sua sorte.

Diligenciei serená-lo, fazendo ver que os métodos revolucionários, naquela altura, não conduziriam a nada de positivo e só podiam provocar retaliações sobre a população indefesa, dando aos extremistas o pretexto desejado para arrastarem a "FRELIMO" para uma política de endurecimento e intransigência.

Em meu entender, no campo militar, uma revolta representaria loucura destinada ao insucesso. A retirada portuguesa dos pontos vitais concedia à "Frelimo" uma dominância que se somava ao seu controle, no mato, de amplas zonas do território. Ninguém apoiaria uma rebelião civil-militar (estigmatizada pela aparência de buscar o domínio pela minoria europeia) e estava certo de que nem a República da África do Sul, nem a Rodésia desejariam agravar os seus problemas, prestando qualquer apoio. Tentariam, mesmo para além dos limites previsíveis, entender-se com o novo regime e tardariam muitos meses em reconhecerem o assalto que contra elas se preparava.

Sem apoio externo, sem compreensão portuguesa e sem auxílio de ninguém, era impossível manter uma confrontação com a "Frelimo" mesmo que, na hipótese mais optmista, a rebelião tivesse êxito. Ao mesmo tempo haveria que pensar-se na capacidade de retaliação das massas africanas, excitadas, contra os núcleos urbanos (todos rodeados por cinturas ameaçadoras) e contra os colonos dispersos pelo interior que seria inviável proteger.

As próprias acções terroristas selectivas, preconizadas por alguns, afiguravam-se-me condenáveis. A capacidade de resposta era tremenda e havia que meditar nas vítimas inocentes que o tal provocaria.

Os meus esforços apaziguadores foram, logo de seguida, afectados, quando nos vieram trazer os jornais sul-africanos com as primeiras notícias sobre o próximo encontro, em Lusaka, entre as delegações portuguesa e da "Frelimo".

Em telegrama de Dar-es-Salaam atribuíam-se a Samora Machel declarações segundo as quais essa reunião, a iniciar no dia 5 de Setembro, se limitaria a concretizar a transferência de poderes. Tudo já estaria negociado e acordado.

Efectivamente, já o estava há semanas, em entendimento entre Melo Antunes e o sector extremista da "Frelimo". Manobraram coordenadamente as próprias fórmulas de transigência que Mário Soares e Almeida Santos haviam proposto e foram substituídas por outras mais radicais. Na corrida das concessões haviam sido largamente ultrapassadas por Melo Antunes.

As parangonas com que essa capitulação era anunciada nos jornais, tornavam o ambiente escaldante entre os amigos que entravam pelo quarto, de roldão. Sentiam-se traídos e dispostos a adoptarem, imediatamente, entre o abandono do país ou um acto de desespero.

Pelos ecos que chegavam a Johannesburg, onde meu telefone não parava um momento, avaliei o que se passaria em Moçambique.

Continuei a dilegenciar manter a serenidade (apesar da perturbação que também me assaltava) e a recomendar que evitassem qualquer atitude menos ponderada.

O capitalismo em Moçambique

Por autêntica e surpreendente coincidência, o industrial e financeiro António Champalimaud chegava nessa altura a Johannesburg, instalando-se no mesmo hotel em que eu me encontrava.

Vinha da Europa e deslocava-se, com curta demora, a Moçambique, onde se iria ocupar dos vultuosos empreendimentos que ali tinha. Encontrámo-nos, por mero acaso, na sala de jantar.

Havíamos tido estreitas relações de trabalho dado que eu administrara o seu grupo de empresas em Moçambique, vindo a afastar-me voluntariamente por divergência de critérios. Isso, porém, não havia afectado a nossa ligação pessoal que vinha desde os bancos da escola.

Nunca estivemos associados em propósitos políticos e nem nunca vislumbrei essa tendência em António Champalimaud, sempre absorvido por actividades para que o arrastava a sua apaixonada vocação industrial. O que a imprensa, nacional ou estrangeira, publicou sobre os nossos pretensos planos políticos, não passsou de especulação urdida pelos que me queriam apresentar como agente do capitalismo e colonialismo.

Na imagem: António Champalimaud

É certo que trabalhei em importantes grupos capitalistas e creio que o fiz com a eficiência que se impunha. Mas nunca ocultei a minha antipatia pelas estruturas monopolistas a que o capitalismo tantas vezes conduz. Não transigia com os defeitos do sistema, mas não deixava de reconhecer as vantagens que apresentava, sobretudo em países carecidos de capacidade empresarial e de meios financeiros próprios.

A experiência de "participação socializante" que, com tanto êxito foi tentada no Malawi, era a que me parecia mais apropriada para o caso moçambicano. Acompanhei activamente o Dr. Banda na edificação dessa fórmula em que se conservava, ao grande capital, participação, dominante ou significativa, nos empreendimentos considerados essenciais, mas em que as instituições locais se associavam com influência progressivamente crescente na condução das empresas.

Por este caminho evitava-se a possibilidade do capitalismo se impor como força opressora ou, mesmo, de evitar vias de pressão.

Aliás, não creio que seja do interesse das próprias estruturas capitalistas praticarem tais desmandos e confiava em que, seguindo o exemplo do Malawi, pudéssemos contar em Moçambique com colaboração do capitalismo esclarecido para reconstrução e fomento do país.

António Champalimaud (há que reconhecê-lo e afirmá-lo) tinha marcada predilecção por Moçambique que se poderia dizer que "amava à sua maneira", parafraseando palavras do Dr. Almeida Santos. Este, aliás, trabalhara comigo para essas empresas com um zelo profissional em que nunca descortinei indícios de aversão pelo capitalismo ou colonialismo que tão veementemente viria a atacar.

O que estou, é em posição de garantir que os avultados lucros angariados em Moçambique pelo "grupo Champalimaud", foram ali reinvestidos, recorrendo-me mesmo ao reforço da sua vasta capacidade de crédito externo para lançar novos empreendimentos. Era essa a posição do "grupo" quando ocorreu o "25 de Abril".

As Forças Armandas: bode expiatório

Conversámos longamente, essa noite, no seu quarto com a presença de um dos seus colaboradores.

Aquilo que me contou confirmava, inteiramente, as informações que de diversas origens me chegavam. Gomes dos Santos não tinha, em nada, exagerado quando me descrevera a situação em Lisboa.

O Gen. Spínola encontrava-se sob o completo domínio de influências em que se destacava a do Gen. Costa Gomes no qual continuaria a confiar, cegamente, até às vésperas de resignar do seu cargo. Quando era prevenido para, ao menos, se acautelar, dava invariável resposta de que "o Chico não pode ser desleal comigo". Acreditava numa camaradagem de dezenas de anos que o aproveitou até ao fim, como já anteriormente, fizera com Marcello Caetano.

Já no exílio, o Gen. Spínola viria a revelar, em Genève, que apenas poucos dias antes do 28 de Setembro tivera provas da deslealdade de Costa Gomes e, mais ainda, da sua premeditada actuação pró-comunista que, afinal, há muito vinha desenvolvendo.

Quando os projectos de acordo com a "Frelimo", vindos de Dar-es-Salaam lhe foram apresentados, o Gen. Spínola reagira muito vivamente, afirmando que nunca os assinaria. Foi-lhe então apresentado o argumento de que as Forças Armadas, em Moçambique, não estavam sequer dispostas a manterem as posições que ainda conservavam e que havia o risco de se verificar a deserção de unidades para a "Frelimo" (como alguns casos já se se haviam registado) acabando tudo numa vergonhosa capitulação. Fazendo um acordo sempre se salvariam as aparências.

O velho soldado chorou. Nunca esperara enfrentar tal situação no termo de uma carreira militar honrosa. O Gen. Costa Gomes, chefe do Estado Maior General, confirmava-lhe que assim era. Não havia opção entre um acordo e a capitulação.

O Gen. Spínola pedira, então, que ao menos passassem a cláusulas secretas, alguns dos pontos mais humilhantes. Referiam-se, concretamente, ao direito de veto da "Frelimo" sobre os nomes a indicar por Lisboa para o governo de transição e à faculdade de a "Frelimo" se pronunciar sobre a designação do Alto Comissário.

O que não foi dito ao Gen. Spínola, por quem tinha o dever de o informar, é que as tropas moçambicanas (representando a maioria dos efectivos) estavam dispostas a cumprir o seu dever e que nisso eram acompanhadas por muitas outras unidades como os "comandos" de Montepuez, os páraquedistas e a Força Aérea.

Também ninguém lhe referiu que a frustração de certas unidades tinha sido resultado dos meses vividos, depois da revolução, sem descortinarem termo para a anarquia que alastrava e sem serem informadas das possibilidades de uma solução para a guerra que continuavam a enfrentar. Oficiais milicianos, de formação comunista encarregavam-se de explorar essa frustração que havia sido cuidadosamente provocada.

Melo Antunes poderia aparecer, nesse quadro, como o homem que evitava o pior.

As Forças Armadas que, declaradamente, tinham lançado o "Movimento" para não se converterem em "bode expiatório" do colonialismo, acabaram por converter-se no "bode expiatório" da descolonização (ob. cit., pp. 276-278; 280-281; 286-288; 318-320; 334-336; 338-343).

Continua

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (xi)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


"AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE"

Com o título "Aqui Moçambique Livre" publicou Ricardo Saavedra um livro que merece a pena ser conhecido e meditado, pela imagem viva que oferece da generosa revolta de Moçambique, em Setembro de 1974. Foi editado em Johannesburg e bem merecia, se possível, aparecer nos livreiros portugueses.

Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.

Quando rebenta uma revolta

Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.

No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.

De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.

Foi esse o rastilho da explosão.

O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.

Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.

Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.

Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.

A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".

O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.

Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.

Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".

Nada fora planeado e nada estava organizado.

Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago para se obter a reacção que convinha desencadear.

Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!

Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.

Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.

Mas desta vez ia ser mais sério.

Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)

Porque não entrei em Moçambique

De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.

Na imagem: Joanesburgo (África do Sul)

A permanência em Johannesburg poderia fazer crer que eu estava ligado à rebelião.

Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.

Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difícieis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.

Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.

O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos páraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.

Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.

Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagenss ao inimigo. Por isso o haviam provocado.

Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.

Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.

Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.

Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.

Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.

Clique na imagem para ampliar

Escutando o RCM, soube da compreensível mentira de anunciarem ter sido cancelado o meu mandato de captura. Pensavam no meu regresso como última esperança. Ouvi os aplausos da multidão quando isso foi divulgado. O Gonçalo Mesquitela haveria de vir a dizer-me que tal ovação tinha levado todas as recordações semelhantes que conservara.

A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.

Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.

Derradeiras mensagens

Quando me chegaram as derradeiras mensagens de Gonçalo Mesquitela dizendo-me ser-lhes impossível continuarem a resistir e dando-me conta das selvajarias ateadas pelos "democratas" nos subúrbios de LM, recebia também informação da Beira anunciando que o movimento capitulara.

As minhas filhas, que na Beira continuavam, tinham sido conduzidas por militares para ponto seguro onde sempre permaneceram. Não esqueço essa atenção amiga, embora outros telefonemas me indicassem que as retinham como reféns. Não creio que assim tenha sido, até porque isso nada alteraria as minhas disposições se elas fossem diferentes do que foram.

Através do receptor (e sempre gravando) acompanhámos os últimos momentos daquele "Movimento" generoso, improvisado e antecipadamente vencido.

Depois foi o silvar das ambulâncias, os crimes friamente cometidos, os excessos dos populares embriagados e drogados, os incêndios e saques, as centenas de mortos e os apelos das autoridades impotentes.

Moçambique tinha tido a sua "primavera de Praga".

Não se podem condenar os homens do "Movimento de Moçambique Livre" mesmo quando se sabe que a sua actuação impulsiva serviu os desígnios do inimigo e comprometeu, por muito tempo, todas as demais hipóteses que poderiam existir.

Faltou-lhes a serena decisão de o terem podido transfomar em simbólico gesto de protesto (utilizando os emissores que ocuparam) sem forçarem mais longe a confrontação. Mas não pode esquecer-se que a população tinha sido provocada com acinte, quando já suportara meses de insultos e atingira o limite da tensão nervosa.

Isso evidencia e agrava o crime dos que tudo encaminharam para que tal tivesse de acontecer.

Provei, nas páginas deste livro, que tentei impedir que assim fosse.

Houve outros que me impediram de o conseguir.

Costa Gomes e Melo Antunes ficam, por isso, na bancada dos réus que a história julgará.

Espero que também os julguem os homens que viveram estes tempos de tragédia. (...)

Entre baixios e baixezas

Na imagem: Samora Machel e Mário Soares (Acordo de Lusaka)

O texto do acordo entre o Estado Português e a "Frelimo", assinado em Lusaka em 7 de Setembro de 1974, chegou-nos a Blantyre (enviado ainda por Mark Chona) antes de ser publicamente divulgado. Foi a última deferência que teve para connosco, cumprindo aquilo que havia prometido.

Lendo-o, com a atenção merecida, podem nele encontrar-se expressões e intenções coincidentes com o nosso "Programa de Lusaka", de 1973. Por mais voltas que os negociadores tenham dado, não conseguiram libertar-se de tal influência. Não me considero honrado por isso e acentuo que nenhum vínculo existe entre os dois documentos, excepto o local onde foram produzidos.

(...) Vale a pena fazer alguns curtos comentários.

O Acordo Samora Machel-Melo Antunes

Do lado português, o papel foi assinado por oito plenipotenciários, entre os quais três ministros do governo e um conselheiro de Estado. Pelo lado da "Frelimo", entendeu-se ser bastante a assinatura de Samora Machel.

A delegação portuguesa foi encabeçada pelo ministro Ernesto Augusto Melo Antunes.

Segundo os hábitos correntes, o documento deve ser denominado como o "acordo Samora Machel-Melo Antunes", sendo a ordem dos nomes resultantes de Samora Moisés Machel haver assinado no lado esquerdo, por deferência que lhe foi atribuída.

À assinatura do Maj. Melo Antunes seguem-se logo as assinaturas de dois outros ministros (Dr. Mário Soares e Dr. António de Almeida Santos) e, depois, a de um conselheiro de Estado (Victor M. Trigueiro Crespo).

A cuidadosa vacuidade dos compromissos não obrigava a "Frelimo" a coisa alguma e, de resto, no tempo de transição que se seguiu, parece que ninguém teve preocupações a tal respeito. O Estado Português é que ficava amarrado a obrigações claramente definidas.

Houve um curioso artigo do acordo (a cláusula 18) que, desde logo, me prendeu a atenção.

Nesse preceito dispunha-se que "O Estado Moçambicano independente exercerá, integralmente, a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do Povo".

Como é normal que os estados independentes disponham de tais prerrogativas, poderia parecer redundância de advogado afirmá-las. Mas as coisas não se passavam por forma tão ingénua. Os factos vieram a comprová-lo.

Uma vez que o governo de Portugal tratava com a "Frelimo" a transferência "progressiva dos poderes que detém sobre o território", era óbvio que seria a "Frelimo" a personalizar o "Estado Moçambicano independente" e, portanto, a decidir (nos termos do citado artigo 18, do acordo Machel-Antunes) do estabelecimento das "instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu Povo".

Com isto, a potência soberana (Portugal) lavava as mãos de qualquer intervenção no acautelamento dos interesses das gentes e da sua autodeterminação. Era exclusivamente a "Frelimo" a decidir (como veio a acontecer, provando o acerto da minha preocupada interpretação) sobre o regime que entendesse mais adequado.

Compulsando os anais da descolonização em toda a África, não encontrei caso semelhante de abandono.

Passavam-se os umbrais da "descolonização original" conduzida por declarados democratas, e logo dois deles juristas, que ficavam indiferentes ao sacrifício da expressão da vontade popular.

Como deixei anteriormente descrito, todo o encaminhamento descolonizador que diligenciámos definir, em mais de um ano de intensa actividade, apoiava-se na consulta popular sobre a definição das estruturas políticas.

Quando me lembro das horas que passei, com Kaunda e Mark Chona, a deitar contas ao tempo necessário para o recenseamento e a discutir a forma de o tornar representativo, acabo por me convencer que a minha formação democrática se situava, afinal, muito por diante do que no acordo Machel-Antunes se definia.

Nítido se apresentava que ambos se inclinavam para outras fórmulas democráticas pelas quais viriam a revelar predilecção. Samora Machel veio a fazê-lo abertamente. Melo Antunes foi oscilando, conforme as conveniências, mas sem nunca o poder disfarçar inteiramente.

Assim nascem as cortinas que separam dois mundos. Quer sejam cortinas de ferro, cortinas de bambu ou cortinas de capim.

A autodeterminação dos povos ultramarinos tão explicitamente fixada no "Programa do MFA", cujos dizeres tive ensejo para recordar, desaparecia com uma penada de Samora Machel-Melo Antunes.

Verdade seja que Samora Machel não interviera na redacção do "Programa do MFA" e por isso não estava a ele obrigado. Mas Melo Antunes havia sido o principal elaborador desse documento.

Ou tinha o premeditado propósito de enganar ou faltou à palavra dada.

O naufrágio do Alto Comissário

O elenco do governo trnasitório, na parte que a Lisboa pertencia designar, nãao tranquilizou ninguém. Tratava-se de tecnocratas sem qualquer representatividade local e, por isso, desconhecidos por toda a gente. Não davam garantia de poderem estabelecer a "ponte" de colaboração desejável.

Desempenhavam mais uma comissão de serviço colonial, com a agravante de ser declaradamente transitória, para daí a uns meses voltarem a Portugal com emprego assegurado e qualquer que fosse a sorte dos moçambicanos.

Este começo desalentador agravou-se com a escolha do Alto Comissário: o comandante Vítor Crespo, para o efeito graduado em almirante.

Era geralmente desconhecido em Moçambique. Pelos jornais ficou a saber-se que ali tinha cumprido o seu normal tempo de serviço, a bordo de uma fragrata que patrulhava o litoral. Ficara com a ideia da linha da costa e dos portos em que entrara. Nestes, era exacto que tinha obtido notória popularidade.

Sem conhecimento apropriado das terras e das gentes que lhe competia descolonizar, dificilmente poderia ser o árbitro supremo que as circunstâncias, já de si complexas, exigiam. Veio isso a agravar-se com o facto de, durante o mandato que lhe foi entregue, não ter disposto de tempo para o contacto com os povos desse imenso território. Houve de compreender-se quando se soube quanto era retido em Lourenço Marques por tarefas absorventes.

No acto de posse, o Presidente da República conferiu-lhe a missão de "conduzir o processo de descolonização, com patriotismo, no respeito pelo nosso passado, pelos nossos maiores em África, e, acima de tudo, pela bandeira verde-rubra da Pátria, para que o novo Estado de Moçambique venha a ser efectivamente uma nação de expressão lusa e indestrutivelmente ligada à Mãe-Pátria" (cito de um semanário lisboeta, de 14 de Setembro de 1974).

Foi isto que o Alm. Vítor Crespo jurou solenemente, por sua honra, fazer.

E foi isto o que não fez.

Na imagem: Lourenço Marques

Logo em 21 de Outubro seguinte, aconteceu que uma unidade de "comandos" (farta de insultos incompatíveis com a sua dignidade) tomou desforço, quando foi provocada nas ruas de Lourenço Marques. Daqui nasceu a retaliação horrorosa que causou centenas de mortos entre a população indefesa, conforme os insuspeitos relatos da imprensa internacional. Houve carros incendiados, com os seus ocupantes dentro. Houve violações e violências em que todos os excessos se cometeram. Houve corpos trucidados em condições horripilantes.

O primeiro-ministro Joaquim Chissano chorou convulsivamente, no Hospital Miguel Bombarda, ao deparar com o macabro espectáculo que os médicos lhe mostraram.

O Alto Comissário, a quem pertencia a responsabilidade de defender a ordem pública (nos termos do acordo Machel-Antunes), não fez um movimento para proteger essa pobre gente que foi chacinada. Consentiu que os "comandos" fossem indignamente acusados de "irresponsáveis drogados" e não teve uma palavra de conforto para as vítimas imoladas. Nem um só dos responsáveis pelos morticínios foi detido, inculpado e presente a tribunal.

Assim mantinha a ordem e a paz que jurara preservar!

Sucederam-se as prisões arbitrárias, por simples suspeita ou denúncia anónima, feitas por milicianos armados, perante a passividade das autoridades. Os presos eram descalços, despojados do que possuíam e enviados para onde os algozes entendiam. Trata-se de casos testemuhados. Uma dessas vítimas (que foi deixada na cadeia quando da independência e ainda lá continua) foi acusada do crime de ter facilitado a passagem da fronteira a mulheres e crianças que fugiam daquele inferno. Tem sofrido tais suplícios que tentou o suicídio.

Na Beira, as prisões, nomeadamente as de carácter político, foram confiadas à polícia judiciária, dependente do Alto Comissário. Nessa polícia foi integrado, como qualificado agente, um criminoso de delito comum (o famigerado Zeca Ruço). Havia sido condenado, pelos tribunais regulares, a pesadas penas que foram esquecidas. No seu passivo figuravam roubos, assaltos à mão armada e fuga da cadeia. Era tido como um dos mais perigosos meliantes.

Assim entendia o Alto Comissário a dignidade!

Os monumentos portugueses, que eram património luso em Moçambique, foram apeados antes da independência. Alguns foram mutilados ou tratados sem qualquer respeito pelo que representavam. Existem fotografias documentadoras em que se alinham Mouzinho de Albuquerque, Vasco da Gama, Cardial Gouveia, Azevedo Coutinho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho.

Tudo isto se passou sob o governo do Alto Comissário.

Assim entendia a defesa do respeito pelo nosso passado e pelos nossos maiores em África que lhe tinha sido cometida!

Numa entrevista que veio a dar, (...) sobre a descolonização, referiu que, os que tiveram de deixar Moçambique, não passavam de "racistas", "exploradores e reaccionários".

As dezenas de milhares de moçambicanos (de todas as cores e credos) que foram forçados a abandonar a sua terra, sob o mandato do Alto Comissário, e que tentam sobreviver pelo mundo, são a demonstração mais inequívoca de que isso não foi assim.

O Alto Comissário mentiu!

Sob a sua jurisdição foi conduzido à morte o Dr. Willem Pot, meu adversário de sempre e democrata convicto. Homem de cor, havia sido secretário de estado da comunicação social, no governo provisório de Moçambique. Por denunciar os campos de internamento, a falta de assistência jurídica aos presos e os abusos neles cometidos (no tempo do Alto Comissário), foi preso em Quelimane, torturado e inibido de receber qualquer socorro médico para a doença que o afligia. Libertaram-no para que não morresse na cadeia. Faleceu dias depois. Mas teve tempo de falar e possuo o testemunho do que disse.

Assim desempenhava o Alto Comissário as funções que lhe estavam entregues!

Para não alongar a lista das baixezas (que poderá ser completamente fornecida ao tribunal, quando chegar o momento) apenas mencionarei os presos abandonados em Moçambique, na altura da independência.

Somaram centenas, segundo provas indesmentíveis, quando o Alto Comissário deixou aquelas terras para retomar em Lisboa uma vida desafogada, sendo depois promovido a ministro, gastando o tempo por locais dispendiosos.

Se mais não foram os abandonados, deve-se isso à intervenção corajosa de três homens (Maj. Rebelo Gonçalves, Cap. Silva Marques e chefe de escala da TAP, Paiva Cardoso) que conseguiram fazer sair para Salisbury algumas dezenas dessas vítimas de cuja sorte o Alto Comissário se desinteressava. Descolaram da Beira às 10 horas do dia 25 de Junho de 1975, graças à abnegação dos tripulantes da TAP (chefiados pelo comandantee Conceição) que dormiram no "Boeing" à espera de poderem realizar essa operação humanitária.

Nem sequer o consulado de Portugal, na Beira, dispunha de pessoal para assistir os portugueses. O Cônsul chegou, de Johannesburg, na véspera da independência e não dispunha de instalações e meios para atender os que o procuravam, aflitos. Com as instruções confusas de que dispunha, foram recusados passaportes a gente de cor que queria usar o seu direito de optar pela nacionalidade portuguesa. Eram abandonados à sua sorte.

Assim cuidava o Alto Comissário de preservar a expressão lusa do novo país.

Com tal procedimento entende-se tudo o que veio a acontecer depois.

Nada sucedeu por acaso. Tudo foi premeditado. (...)

Demolição de Moçambique

Quando regressei da Europa, encontrei uma situação confrangedora.

Na medida em que a evolução política portuguesa girava rapidamente para o extremismo comunista, sentiam-se reflexos em Moçambique que mais deterioravam o ambiente. Os postos chave ainda detidos por portugueses eram progressivamente ocupados por militantes marxistas. O figurino soviético surgia como padrão ostensivo da ideologia revolucionária e as existentes simpatias pela China popular eram metodicamente abafadas.

Fiz retirar os meus filhos que permaneciam na Beira e alguns pertences em que a família tinha maior estima. O resto ficou ali para ser tragado pela voragem.

Creio que levei longe demais o risco a que sujetei a minha gente. Saíram quase no último minuto possível.

O pânico crescia, compreensivelmente, entre a população. Queria-se precipitar a fuga, manipulando os justificados receios de tantas pessoas. Não interessava aos activistas que ficasse alguém, de qualquer raça, que pudesse oferecer-lhes o risco de esclarecer as massas que começavam a agitar-se.

Joaquim Chissano e alguns outros dirigentes diligenciavam, todavia, travar esse êxodo. Sabiam como se reflectiria na produtividade do país, no crescimento do desemprego e no consequente descontentamento. Não ignoravam ser-lhes impossível dispor de quadros para substituir os que partiam.

Um qualificado funcionário português escrevia-me, em fins de Novembro:

"Estou profundamente preocupado e mesmo apreensivo com o futuro de Moçambique que não antevejo nem fácil, nem próspero, nem calmo, nem seguro.

A Frelimo surgiu cheia de boas intenções, mas completamente vazia de quadros ou de estruturas e nos meses que passaram não se nota qualquer evolução. Apresentam-se, não só incapazes de resolverem os grandes problemas, como de os equacionarem ou até mesmo de tomarem deles completo conhecimento.

Os chefes responsáveis são sensatos, ponderados, encontram-se animados de boa vontade e possuem normal capacidade intelectual. Acontece, porém, que, entre eles (e são confrangedoramente poucos) e a massa bruta dos "camaradas" nada existe.

Todos estes dirigentes têm plena consciência da incapacidade da Frelimo para assumir realmente todas as funções directivas de um país independente".


Por outros canais fiéis chegavam-me cópias de relatórios oficiais enviados para Lourenço Marques ou para Lisboa alertando sobre a preocupante anarquia que se avizinhava. Concretizar a independência em tais condições, escrevia-se nesses documentos, equivalia a entregar o país a irresponsáveis que um bando de extremistas se preparava para dominar. Os que, honestamente, formulavam estes avisos, foram gradualmente afastados.

Houve dirigentes da "Frelimo" que também escreveram para Dar-es-Saalam expondo a gravidade da situação.

Mas Vítor Crespo, Melo Antunes e Costa Gomes insistiam em que tudo se acelerasse para a transferência crescente de poderes.

Teima-se na "descolonização original", mesmo sabendo as vítimas e os vexames que ela iria causar.

Não podia deixar de haver, por detrás dessa atitude, um propósito deliberado.

República Popular de Moçambique

Na imagem: os agentes signatários do Acordo de Lusaka (clique para ampliar)

Moçambique ascenderia à independência em 25 de Junho de 1975.

Pouco tempo antes, Samora Machel entrava no país, cruzando no norte a fronteira com a Tanzânia. Vinha acompanhado (ou tutelado) por Marcelino dos Santos.

O grupo que tinha ficado a rodeá-lo, em Dar-es-Saalam, desde o acordo com Melo Antunes reunia os elementos mais extremistas de declarada tendência pró-soviética.

A URSS havia trabalhado com eficiência e sem perda de tempo, desde que, em 1964, Mikhail Domogatskiy me anunciara a preocupação de recuperarem terreno sobre o avanço da influência chinesa.

Na impossibiilidade de dominarem as bases da "Frelimo" e de controlarem os militares que combatiam no interior do país, dirigiram a sua atenção para os elementos intelectuais com possibilidades de virem a exercer a decisiva influência. Constituiriam a minoria destinada a controlar as estruturas.

Marcelino foi o homem-chave que utilizaram. Este se encarregou de aliciar e doutrinar os demais.

Os homens mais prestigiosos foram progressivamente eliminados.

Filipe Magaya, chefe militar valoroso, foi abatido, com um tiro nas costas, quando atravessava um rio, no decurso de operações dentro de Moçambique. O assassino foi preso, mas nunca mais se ouviu falar dele. Diz-se que enlouqueceu, em Dar-es-Saalam, na cadeia.

Eduardo Mondlane, respeitado político de cultura e formação ocidentais, foi assassinado em ccondições que, singularmente, os posteriores dirigentes da "Frelimo" nunca se interessaram em investigar profundamente. O que se sabe é que o livro armadilhado foi entregue em sua casa por alguém que lhe deveria merecer a confiança de não hesitar em abri-lo. O crime não aproveitava aos portugueses.

Uria Simango, Padre Mateus, Lázaro Kavandame e Miguel Murupa tiveram de fugir da Tanzânia para salvarem as vidas. De todos, Só Miguel Murupa está em liberdade, na Europa. Os demais caíram em ciladas e encontraram-se em condições de não poderem, sequer, ser testemunhas perigosas.

Dentro de Moçambique, os comunistas organizaram o agrupamento dos "democratas" para minarem as estruturas e poderem opor-se a qualquer força política que surgisse no país.

Em Portugal, era preciso ocupar o poder governativo durante a fase activa da descolonização. Assim o fizeram.

A coordenação da jogada foi perfeita. Esse mérito tem de se lhes reconhecer.

O grupo marxista-soviético da "Frelimo" manteve-se, porém, em atitude discreta e só interveio para acelerar as negociações quando surgiu Melo Antunes como o enviado qua aguardavam. Até aí tinham apenas que retardar qualquer hipótese de acordo.

Existem elementos para afirmar que o próprio Samora Machel só passou a ser activamente trabalhado, no sentido doutrinário que lhes convinha, depois do acordo de 7 de Setembro de 1974. Até então, parece que não era efectivamente marxista. De outra forma não poderia ter enganado tão teatralmente o Dr. Kaunda que largamente o ultrapassa em cultura e experiência política.

Acontece, porém, que aqueles extremistas da "Frelimo" não contam no seu elenco qualquer negro prestigiado. Tinham que fabricar um. O mais fácil de produzir era Samora Machel e para isso beneficiaram dos meses que o tiveram ao seu exclusivo cuidado, enquanto a corrente nacionalista da "Frelimo" era enviada para dentro do país, onde a tentativa de organizar a independência os absorvia totalmente ante as dificuldades com que iam deparando.

Quando Samora Machel iniciou a série agressiva dos seus discursos e tomou atitudes revolucionárias intransigentes, pode dizer-se que houve surpresa geral. Surgiu a preocupação quando as declarações, os insultos e as ameaças foram crescendo ao longo da viagem. Possuo gravações directas que também me assombraram.

Com o zeloso ardor dos recém-convertidos, Samora Machel falava como quem aprendeu a lição de cor, mas metendo, por vezes, coisas da sua lavra sem se dar conta das monstruosas contradições doutrinárias evidenciadas.

Nos nacionalistas da "Frelimo" houve um movimento de agitação e nos países africanos que mais tinham apoiado a guerra de libertação esboçou-se quase incredulidade.

Joaquim Chissano voou apressadamente para Quelimane, onde Samora Machel tinha ultrapassado os limites da inconveniência, sabendo estar numa região que lhe era hostil. Chissano tentou explicar ao presidente as consequências da acção que estava a realizar. Segundo testemunho identificado, o choque foi quase duro, mas Chissano não conseguiu mais do que adiar a anunciada alteração do nome de Lourenço Marques. Nada ganhou com isso porque meses depois havia de se fazer essa modificação e para pior. Em vez de Cafumo chamar-se-ia Maputo, sem ao menos se atentar no ridículo a que tal nome se presta.

Ainda houve quem sugerisse que a capital passasse a denominar-se MONDLANE, em homenagem ao sacrificado fundador da "Frelimo". Samora Machel nem quis considerar isso e Marcelino dos Santos opôs-se violentamente, criticando as tendências anti-revolucionárias que se abrigam no culto das personalidades.

O nome de Mondlane não podia, obviamente, ser por eles aceite (ob. cit., pp. 347-349; 351-354; 357-363; 375-376; 381-383).

Continua


sábado, 2 de outubro de 2010

Moçambique, terra queimada (xii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Kremlin

Novo satélite soviético

A independência processou-se sem brilho nas cerimónias e sem autêntico entusiasmo popular no país. Tudo se circunscreveu aos actos oficiais e à organizada concentração popular no estádio que não alcançou as dimensões e a vibração de acto celebrados sob o regime colonial. Fez-se notar a ausência dos chefes de estado que mais haviam apoiado a "Frelimo" na sua luta e o Malawi, ostensivamente, nem sequer foi convidado.

Em contrapartida, estava presente, em lugar de destaque, o Dr. Álvaro Cunhal, na sua qualidade de secretário geral do partido comunista português. Isso foi devido à insistência de Marcelino dos Santos e tinha significado muito especial, uma vez que não constitui segredo a estreita ligação do Dr. Cunhal com Moscovo. Ninguém se esquece que foi um dos raros chefes comunistas ocidentais a apoiar a brutal intervenção que esmagou a rebelião de Praga.

Aos chineses não passou despercebido o que representava esta singular deferência para com o chefe comunista português. As dúvidas com que pudessem ficar desapareceriam ao ouvirem os discursos proferidos ou ao lerem os textos programáticos que foram sendo publicados.

Quando a nova (e feia) bandeira da República Popular de Moçambique foi içada no mastro da soberania, passava a União Soviética a dispor de mais um satélite.

A independência, tão duramente conquistada pelos nacionalistas moçambicanos, fora roubada à nascença.

Governo da minoria

Na imagem: Bandeira da República de Moçambique

A "Constitução" do novo estado é, do primeiro ao último artigo, um perfeito modelo de marxismo-soviético. Na mais pura linha das democracias-populares, o Comité Central da "Frelimo" (auto-designado como suprema autoridade da nação) assim o decidiu e reservando para si todos os poderes.

Sem qualquer esboço de consulta ao povo, uma minoria impôs a sua vontade a nove milhões de pessoas. Com total despudor nem se deram ao incómodo de praticar arremedo de legitimação democrática.

Razão tivera eu nas minhas apreensões ao ler o "acordo Samora Machel-Melo Antunes". O que aconteceu estava lá previsto ou, pelo menos, tinha-se deixado o caminho aberto para isso.

Foi este processo neo-colonialista que o primeiro-ministro português, presente nas cerimónias, classificou, emocionadamente como honrosa libertação de um povo. Não é estranhável que nesse pendor se tenha rebaaixado, servilmente, a pedir perdão para um passado em que abundavam razões de orgulho para qualquer português.

Tinha de ser Vasco Gonçalves a fazê-lo. Assim traía, mais uma vez, o "Programa do MFA" a cuja comissão directora presidira quando foi elaborado.

Desonrou a farda que, sem convicção, vestira.

Insultou a memória dos que, com a mesma farda, tinham caído para sempre e os tantos outros que sofreram na carne as mutilações de guerra. Paradoxalmente, haviam de vir de Samora Machel as palavras de apreço pelos que tinham sabido bater-se e de desprezo merecido pelos covardes que o não fizeram.

O guerrilheiro corrigiu o "general".

Ainda tinha lampejos dos tempos em que fora combatente. Iriam, porém, desaparecendo com a doutrinação que o cercava e o converteu, de soldado, em moleque dos novos senhores.

Na tal "Constituição" ainda se previa uma assembleia representativa, cuja escolha se acautelava para que o povo não pudesse intervir. Nem essa foi posta em funcionamento até hoje, com quase um ano volvido sobre a falsa independência. A única explicação viável é a de saberem que, mesmo no restrito campo dos dirigentes, o descontentamento alastra correndo paralelo com a frustração.

Estado policial

A perseguição a tudo quanto pudesse representar capacidade de pensar e, eventualmente, de discordar, passou a ser feroz. Nesse procedimento decapitador de um país não houve qualquer discriminação racial. Todos foram igualmente abrangidos.

As nacionalizações começaram exactamente pelas profissões liberais e com esse propósito. Médicos, advogados, engenheiros e professores saíram do país às centenas, deixando o vazio desejado e de que a população foi a grande vítima.

Na imagem: os "Campos de Extermínio ou Campos da Vergonha"

As prisões arbitrárias sucederam-se e nos campos de trabalho os detidos são tratados com requintes vexatórios e de brutalidade. O transporte de muitos desses milhares de infelizes faz-se em camiões de gado (e com tal indicação inscrita no exterior das viaturas) para impedir a identificação por algum curioso inconveniente. Mas aconteceu que um desses camiões teve de ser aberto (e sabe-se onde tal aconteceu) quando uma mulher branca deu à luz inesperadamente e soltou os normais gritos da maternidade que os guardas não conseguiram calar. Viu-se então, de que "gado" se tratava e houve organismos internacionais que do caso tomaram conhecimento. O escândalo foi abafado.

Poucos detalhes desta actuação policial, destinada a espalhar o terror e forçar a saída dos indesejáveis "reaccionários", têm sido divulgados pela imprensa, apesar de não faltarem (em Portugal e nos países limítrofes de Moçambique) testemunhos que poderiam ser usados. Os moçambicanos e portugueses continuam a sair do país, aos milhares, por todas as formas que conseguem. Alguns houve que até foram perseguidos, já dentro do território sul-africano, por milicianos armados que procuravam interceptá-los. Dezassete dos perseguidores foram presos pela polícia da República da África do Sul.

Os aviões da TAP e das outras companhias aéreas enchem-se com fugitivos em Johannesburg, Salisbúria, Blantyre e, até, Lusaka. Quem tiver dúvidas pode informar-se junto do pessoal do aeroporto de Lisboa e dos tripulantes da TAP que têm realizado esses voos. Não faltam histórias dramáticas para conhecer.

Enquanto que os excessos da "PIDE" ocupavam páginas inteiras dos jornais, raros são aqueles que manifestam interesse pelas incomparáveis monstruosidades cometidas pela "SNASP" ("Serviço Nacional de Segurança Popular"). Esta "SNASP" é responsável unicamente perante o presidente Samora Machel, conforme se prescreve no artigo 9.º da lei que promoveu a sua constitução. (...)

Perseguição religiosa

Também sem qualquer discriminação, Samora Machel desencadeou ofensiva contra todas as confissões religiosas. Nenhuma parece ter escapado.

Na imagem: Meca

Em insulto sem precedentes o ditador moçambicano entrou na mesquita sagrada da Ilha de Moçambique, sem se descalçar. Humilhou os "che", perante muitos fiéis maometanos congregados para receber o novo presidente. Não perdoava que os devotos de Meca (que somam ao redor de três milhões de crentes em Moçambique) se recusassem a aderir às doutrinas marxistas de que se convertera em arauto.

O contraste com a tolerância portuguesa ficou patente para toda essa gente. Recordam os tempos em que o governador-geral (Baltazar Rebello de Sousa) participava publicamente nas suas orações e a eles se dirigia, com respeito ecuménico, durante as solenidades que decorriam das prescrições do Profeta.

Os cristãos não-romanos tiveram igual sorte.

Leia-se o jornal sueco "Expressen" que, pela pena de Eric Sjoequist, denuncia a perseguição sofrida. A este se juntou o médico-missionário escandinavo, Dr. Koorsning, para descrever como milicianos invadiram os templos, as escolas e os hospitais e obrigaram a tudo abandonarem, sob a ameaça das armas. Os missionários estrangeiros, que tantas vezes tinham tomado a defesa da "Frelimo", foram acusados de serem agentes do imperialismo e de entravarem a marcha da revolução.

Creio, no entanto, que a seita religiosa que directamente mais sofreu foi a das "testemunhas de Jehovah". Dezenas de milhar (as melhores estimativas cifram-nos em 400 000) tinham procurado refúgio em Moçambique depois de serem perseguidos nos territórios vizinhos, especialmente no Malawi, por se recusarem a participar em qualquer actividade política. Percorri muitos desses campos de refugiados, estabelecidos pelas autoridades portugueses, em laboriosos trabalho de identificação (como cônsul do Malawi) para impedir que criminosos comuns com elas se misturassem, beneficiando da protecção que lhes era concedida em base humanitária.

Não tive quaisquer dificuldades. Encontrei sempre a melhor colaboração dos portugueses e dos refugiados. Entre estes encontravam-se médicos, engenheiros, advogados e abastados comerciantes.

O Malawi, mesmo não reconhecendo a seita, apreciava o filantrópico procedimento português e colaborou nas facilidades solicitadas para a saída de famílias ou bens, enquanto que o seu governo partilhava nos encargos com o sustento dessa gente.

Com o advento de Samora Moisés Machel tudo foi revirado repentinamente. E sabia-se que os guerrilheiros da "Frelimo" haviam utilizado os campos de refugiados para neles se abrigarem ao serem perseguidos pelas tropas portuguesas. Tinha acontecido isso na Angónia, em Milange e em Nova Freixo.

À ponta da baioneta os desgraçados foram obrigados a cruzar a fronteira para serem entregues às autoridades vizinhas. Os que tentaram escapar-se para permanecer em Moçambique foram tratados com incrível violência. Recebi cartas de membros da seita ccom quem tinha feito amizade, relatando as mortes, as feridas e fracturas graves ou os abusos sexuais. Calcula-se que mais de 3 000 pessoas foram friamente eliminadas. O próprio governo do Malawi, que os perseguira, apiedou-se deles e ofereceu-lhes abrigo contra tais excessos.

Na imagem: Jehovah

Mesmo assim, mais de dez mil "testemunhas de Jehovah" encontram-se hoje, em condições sub-humanas, em campos de trabalho nos distritos da Angónia e de Milange.

A Igreja Católica também não se eximiu à perseguição.

Em documento circulado pelo partido, foi acusada de actuação contra-revolucionária que procura obstaculizar a marcha da democracia-popular. Referiu-se a necessidade de "separar do Vaticano a Igreja de Moçambique" e (até mesmo!) de alterar a liturgia e as orações.

O Bispo de Nampula, um dos mais activos frelimistas do período colonial, foi restringido à zona do seu paço e notificado, por um cipaio, da decisão das autoridades de não lhe consentirem que pregasse na catedral.

Os bispos moçambicanos que sempre encontravam fórmulas, ainda que vagas, de criticar as autoridades portuguesas nos seus comunicados públicos e de as afrontar nos relatórios para Roma parecem remetidos a silêncio envergonhado.

O que terá acontecido aos missionários espanhóis tão largos no falar em defesa do seu povo cristão? Que é feito da voz de D. Eurico Noronha (respeitado Bispo de Vila Cabral e depois transferido para Sá da Bandeira) que se ofereceu para advogado dos padres-marxistas do Macuti, conforme carta que me escreveu?

Porque se calou, também, a Igreja Católica?

Impressiona a forma como desapareceu a coragem ao eminente Núncio Apostólico em Lisboa que tão presto era em denunciar as prepotências portuguesas.

Igualmente o Padre Hastings, denunciador dos massacres do Wiryamu, cala-se quando hoje se cometem verdadeiros e comprovados genocídios em Moçambique, que excedem tudo o que de imaginoso sobre as atrocidades portuguesas relatou em plena primeira página do respeitável "The Times" de Londres.

Na imagem: D. António Ferreira Gomes (Bispo do Porto)

Nem o Bispo do Porto, tão fértil no apoio às acusações contra a guerra colonial, tem hoje uma palavra de caridade para as centenas de milhares de cristãos que penam em Moçambique uma das mais violentas perseguições religiosas que os tempos modernos conheceram.

Onde estão as cartas pastorais e as homilias versando o tema "Paz e Justiça"?

Há em tudo isto um silêncio cúmplice.

Ou há uma vergonhosa falta de coragem.

Como excepção confortadora pode apontar-se a figura admirável do Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, que se ergue com personalidade ímpar dizendo as coisas pelos seus nomes. Mesmo depois dos vexames sofridos na sua dignidade de homem e de sacerdote impecável que até sabe perdoar.

Guerra de conveniência

Com a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas vizinhanças do colapso.

Estima-se que mais de duzentas mil pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.

Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.

Assim, não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de 70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era imperioso dinamizar.

Na actividade agrícola, afectada em muitas regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.

Estes índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975. Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.

Já não se trata de ter produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as populações. A partir de Junho a fome apresenta-se como ameaça para todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo só acessível aos dignatários do partido.

O desemprego alcança nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos onde não conseguem encontrar ocupação.

Com a carência de pessoal qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.

As rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a ocultar-se, durante dias, em parte incerta.

Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".

Samora Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava ver-se livre de soldados cuja atitude receava.

Mandou moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua segurança e interesses pessoais.

O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.

O bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.

Assim, esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das ineficazes sanções, afirmava resultarem.

Será muito duvidoso que alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.

Uma coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...

(...) Reacende-se o tribalismo

Com o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A perseguição religiosa agrava essa tendência.

Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.

Tendo de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas estruturas tradicionais.

Não é compensável esse fenómeno desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim, consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo", completamente desenraízada das realidades da vida rural. Essa engloba mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.

Enquanto que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais, acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da "Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista que o deslumbra e domina.

Porque fez a opção errada já teve de afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários". Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.

É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.

Se o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional, não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a opressão que se queira impor às gentes.

Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.

Na imagem: Gungunhana (o Leão de Gaza)

Os mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da "Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram ordens de estranhos na sua terra.

Se continuasse a citar reacções tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.

Apenas procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.

Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.

Com os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer geometria sobre terras que são a sua pátria.

Depois, têm aquele aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo necessário para ver passar o enterro do inimigo.

Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)

Cubanos e russos

Na imagem: helicóptero russo pilotado por cubanos, na Base 3 do Negage (Angola)

Para muitas pessoas a grande incógnita está na possível intervenção de cubanos e russos em Moçambique. Têm naturalmente presente o que se passou em Angola.

Mas os dois casos não são assimiláveis, pelo menos para este efeito.

Não creio que haja risco de assistirmos a agressão semelhante.

Explico porquê.

Em Angola travava-se uma guerra quase do tipo clássico, comparável à que se registou no Vietnam. Para a semelhança ser mais completa, nem faltou o recuo dos americanos, abandonando aqueles que haviam encorajado. Com a experiência, meditada, do passado recente, nunca esperei outra coisa. Ao menos não tive as desilusões que outros, mais ingénuos, sofreram.

Em Moçambique nunca haverá uma "vietnamização". O que pode haver, a partir do tribalismo exarcebado, é uma "congolização" com mais tribos e com maior dispersão no terreno onde as vias de comunicação, em consequência da própria geografia, se tornam extremamente difíceis.

Contra este tipo de revolta, que cabe nas previsões mais realistas, nem os pesados tanques, nem os "orgãos de Staline", nem os mísseis teleguiados e nem a infantaria cubana podem ter remota esperança de êxito.

Só podem ser úteis para prevenir uma revolta por parte da única força militar organizada que existe: a própria "Frelimo". Se os chefes dos combatentes moçambicanos consentissem tal intromissão, estariam a condenar-se a si próprios. Nem a pretexto de se lhes consentir a passagem para agredirem a Rodésia, creio que embarquem em tal aventura. Seriam dominados totalmente e passariam a subalternos soviéticos.

Os comandantes da "Frelimo" (que foram os que se bateram no mato durante dez anos) não podem esquecer o mandato nacionalista dos seus mortos. Não podem desprezar Magaya e os seus homens, não podem ver-se humilhados perante os aguerridos macondes que conduziram e que, além de terem lutado no seu planalto, vieram a ser a flecha audaciosa que se infiltrou em Tete.

A presença militar de cubanos e russos seria o cativeiro sem esperança dos soldados da "Frelimo". Não creio que o permitam e ainda têm força para impedir tal decisão.

A guerra tribal seria, então, inevitável. A unidade de Moçambique estaria irremediavelmente perdida. Nem o próprio Samora Machel se atreveria a dar tal passo.

Olhando os factores externos não se pode ignorar as possibilidades da reacção chinesa.

Os chineses nunca tentaram, ao contrário dos soviéticos, realizar uma penetração política. Quanto muito fizeram divulgação cultural. Não buscaram conquistar adeptos de novo imperialismo. Cuidaram mais de fazer amigos. Por esta via exercem a sua influência. Foram eles que, com a sua persistente capacidade de organização, permitiram à "Frelimo" ultrapassar as fases mais críticas e resistir até lhes ser proporcionada a vitória. Os militares da "Frelimo" sabem que foi assim.

Será, no entanto, compreensível que os chineses, depois dessa participação activa no que era a luta de libertação de Moçambique, não estejam dispostos a assistir impassíveis ao novo colonialismo soviético já por demais evidente e que se tornaria gritante com o hipotético desembarque de forças cubanas ou russas.

Além de um acto de desprestígio para a China Popular, isso seria uma provocação contra a sua influência cultural e contra a libertação autêntica dos territórios em que se envolveu tão profundamente. Há que não esquecer que o "TANZAM", ligando a Zâmbia à Tanzânia foi produto do esforço e do financiamento chinês. Na altura pareceu que visava apenas libertar a Zâmbia do risco da asfixia por parte dos portugueses mas, vistas bem as coisas, pode acontecer que os chineses tenham projectado a sua visão a mais longe. Hoje pode converter-se em antídoto contra eventual manobra imperialista soviética.

Na imagem: cogumelo atómico (clique para ampliar)

Acontece, por outro lado, que Moscovo teme Peking por conhecer a sua capacidade de reacção ao longo de uma extensa fronteira comum em que nenhuma vantagem está do lado russo. Os chineses são os únicos que não carecem de recorrer à ameaça da bomba atómica para dissuadir os soviéticos. São também aqueles contra quem os soviéticos nunca se atreveriam a usá-la.

Não deixam de ter presente o realista aviso de Mao-Tse-Tung: "se houvesse uma guerra atómica, o último sobrevivente sobre a terra seria certamente chinês". Mao-Tse-Tung, até hoje, não cometeu um único erro de previsão nos seus dizeres.

A China Popular não toleraria um desembarque cubano-russo em Moçambique. As advertências de Peking têm mais peso do que as de Washington. Os chineses, para reagirem, não têm de se envolver nos meandros democráticos do Capitólio. Os russos sabem-no e o primeiro aviso parece já haver sido dado num oportuno incidente de fronteira noticiado pelos jornais.

Por todos os factores anunciados, em que o último não é certamente o menos importante, não creio na intervenção militar soviética em Moçambique.

Atrevo-me a fazer este vaticínio.

É certo que armamento ligeiro abundante tem estado a ser desembarcado em Nacala e a ser dali transportado pelas "Linhas Aéreas de Moçambique" para diferentes portos do território. Destina-se a armar as guerrilhas rodesianas e a reforçar o equipamento militar da "Frelimo".

Até aí podem chegar os soviéticos.

Samora Machel e os seus conselheiros fariam bem em pensar contra quem podem ser disparadas essas armas.

Comentário

Enquanto tudo isto se passa e Moçambique sofre a escravidão imposta por uma ditadura odiosa, o mundo parece não se dar conta da importância e da gravidade de quanto ali acontece.

Já o mencionei anteriormente, mas julgo oportuno voltar a referi-lo neste comentário final.

O caso de Angola, pela espectacularidade dramática que o rodeou, fez com que mais gente pensasse nele. Não o conheço com a profundidade de informação de que disponho sobre a tragédia que Moçambique atravessa.

Não quero fazer comparações porque para a dor não existe padrão de medida.

O que acontece é que sobre Moçambique quase se abateu uma muralha de silêncio enquanto ali se passa um dos dramas da descolonização portuguesa.

Não deixo de ser sensível ao sofrimento das gentes da Guiné, ao terrível e irresponsável abandono de Timor, aos horrores que tombaram sobre Angola.

Na imagem: Agostinho Neto e Fidel Castro

No julgamento do processo da descolonização não pode ficar de fora a destruição da Pátria Portuguesa, abalada criminosamente da sua possibilidade de sobrevivência e afastada talvez para sempre da posição que lhe pertencia no mundo.

Creio, com profundidade de fé, que todos os autênticos nacionalistas dos vários quadrantes onde chegara a presença lusitana, preservávamos como ponto de honrosa convergência a grandeza de Portugal a que nos sentíamos ligados pelo sangue ali amorosamente misturado, pela fusão de culturas promovida com desvelo e pelos rasgados horizontes que nos prometia o sabermos que seríamos, em breve, mais de duzentos milhões a venerar o vínculo abençoado que nos reunia.

Queríamos ter casa própria.

Mas também queríamos que nela coubessem os irmãos que houvessem construído a sua, como esse portentoso Brasil que era para nós exemplo e farol de guia.

A possível arrogância apaixonada com que nos sentíamos moçambicanos, e pretendíamos poder sê-lo, nada continha de ofensivo para Portugal.

Talvez que mesmo, nesse nacionalismo africano, afervorasse o nosso amor pela Pátria-Mãe de todos nós.

Os meus filhos e os meus netos de qualquer cor nunca esqueceriam os pais ou os avós.

Ambicionávamos que os que não tivessem os mesmos laços se sangue sentissem como eles sentiriam, uma vez que eles sentiriam como eles.

Esse esteve para ser o milagre português.

Só pretendi, nestte livro, provar porque assim não foi.

A descolonização de Moçambique, país promissor convertido em terra queimada, não foi o único caso e nem terá porventura, sido o mais trágico.

Mas foi o problema que eu vivi. Aquele que intimamente conheci. E que mais procurei, por isso mesmo, salvar da queimada que pressentia avizinhar-se.

Assim me devotei a escrever tantas e tão dolorosas páginas sobre o drama que testemunhei.

Bem desejaria que outros o fizessem sobre o que experiências diferentes possam oferecer.

Assim ergueríamos o processo de descolonização.
E os homens responsáveis por ela haveriam de enfrentar o tribunal que um dia os julgará, sem apelo diante da História.

Enquanto o tribunal de Deus, em que creio, não lhes toma contas dos actos cometidos (ob. cit., pp. 383-399). (...)

Continua

egunda-feira, 4 de outubro de 2010

Moçambique, terra queimada (xiii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Juízo Final

Escrito aquilo que vivi e testemunhei, apoiado em documentos e citações irrefutáveis, poderia talvez dispensar-me de o condensar num juízo final.

Só o faço por entender que possa estar em melhor posição de relacionar factos e interpretar atitudes do que o observador eventualmente menos atento ou, por causas diversas, menos sensível à informação prestada.

Procurarei ser sucinto e claro.

Não ignoro que agravo, ainda mais, os riscos da minha posição pessoal.

Espero-o serenamente. Nada me pode deter quando tenho imperioso dever de consciência a cumprir.

Estratégia soviética

A estratégia soviética visava, prioritariamente os dois grandes territórios portugueses de África (Angola e Moçambique), cuja resistência se opunha ao controle das rotas do Índico e do Atlântico e ao assalto aos recursos da África Austral.

Pouco preocupava o envolvimento americano nessa zona. Sabiam que o neutralizariam na altura própria.

Alarmava-os a crescente influência chinesa que se consolidaria, a partir de 1975 como também não o ignoravam os serviços de informações ocidentais. Os soviéticos, actuando sobre minorias destinadas a dominar os movimentos nacionalistas, não podiam deixar que se alcançasse o limite de confrontação directa com os chineses. Conheciam a sua capacidade de retaliação se a esse extremo se chegasse. Tinham de antecipar-se.

O encaminhamento das guerras nos territórios portugueses não lhes permitia obter uma solução urgente. Por isso se impunha actuar em Portugal em termos de conduzir à queda desses bastiões africanos.

Essa estratégia foi entendida pelos defensores que, no entanto, se deixaram iludir por excessivas preocupações quanto à infiltração chinesa e nela concentraram atenções. Isso serviu os propósitos soviéticos.

Por outro lado, muitos dos responsáveis não entenderam que só a efectiva independência dos territórios ultramarinos, enquanto era tempo de o fazer em condições de preservar o equilíbrio da sua vida, poderia abortar a manobra comunista.

Portugal, liberto das guerras que enfrentava, fortalecer-se-ia em termos de não ser vulnerável à subversão. Engrandecia-se como condutor de uma vasta "Comunidade Lusíada" em que se associavam países de equilibrada tendência ideológica e beneficiários de uma explosão de progresso apoiada pelas forças ocidentais.

A agilidade de uns e as hesitações de outros conduziram ao êxito soviético.

Emboscada em Abril

Na imagem: Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves

O assalto político em Portugal só era viável através de um golpe militar. A avaliação da capacidade dos partidos, feita em sucessivas campanhas eleitorais, havia-o demonstrado.

Para isso, era indispensável motivar os quadros, cuja agitação se iniciara explorando razões de ordem profissional. A carência de politização dos militares, mesmo que infiltrados pelos oficiais milicianos doutrinados, não consentia desencadear qualquer golpe sob a bandeira de uma ideologia revolucionária. Isso ficara demonstrado nas reuniões de oficiais integrados no "Movimento dos Capitães".

Com o fito de a todos mobilizar, arrastando os mais influentes e que eram os menos sensíveis à doutrinação subversiva, havia que provocar uma afronta à sua honra militar e fazê-los crer que se transformavam, perante a nação, em culpados de faltas que não lhes pertenciam.

Por isso se provocaram os incidentes da cidade da Beira, em Janeiro de 1973.

Importa recordar que o crime atribuído à "Frelimo" para agitar a população, ainda hoje é duvidoso que tenha sido por esse movimento cometido. Lembro que o Dr. Kaunda me assegurou que tal procedimento não se enquadrava na actuação da "Frelimo", mas que admitiu poder ter sido realizado por algum grupo actuando à margem das ordens superiores.

O que não oferece dúvidas é que o frio assassinato duma mulher europeia foi executado em termos revoltantes e em zona onde pudesse causar a reacção civil, afrontosa para os militares, que os "democratas" comunistas fizeram desencadear.

O Gen. Costa Gomes surge em Moçambique, e concretamente na Beira, e exactamente na altura dos incidentes. Numa viagem programada antecipadamente.

A viva emoção causada nos oficiais levou-os às atitudes drásticas que relatei, com a complacência dos comandos superiores em cujo vértice o Gen. Costa Gomes se encontrava. A partir daí o "Movimento dos Capitães" amplia-se e motiva-se para derrubar o regime que responsabilizava pelos insultos recebidos. Nascera o "Movimento das Forças Armadas".

A minha intervenção tinha evitado que a agitação popular alcançasse as dimensões planeadas, mas não impediu que fosse suficiente para se realizarem esses objectivos.

O Gen. Costa Gomes regressou de Moçambique dispondo de todos os elementos necessários: a revoltada motivação dos militares, a excitada disposição das populações e os contactos locais a utilizar no futuro.

Sabia, porque o levara consigo, o que representaria como estandarte aglutinador, o livro do Gen. Spínola. Servido por um nome prestigioso enquadrava-se, perfeitamente, na exploração das condições criadas. Não podia ter dúvidas sobre os resultados que o seu lançamento causaria.

Apressa-se, então, o Gen. Costa Gomes a dar ao governo um parecer tranquilizador e procura, mesmo, convencer o Doutor Marcello Caetano de ser indispensável a sua permanência no poder.

Como fruto desta hábil manobra surgiu uma revolução a que ninguém se opôs e em que os militares apresentavam uma frente unida.

O "Programa do MFA", cuja elaboração se confia ao Maj. Melo Antunes, é redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa.

O "Programa" fora, porém, habilmente redigido em termos de vir a consentir leituras e interpretações diversas daquelas que inicialmente aparentava.

Uma "descolonização original"

Na imagem: Junta de Salvação Nacional (da esq. para a dir.: Rosa Coutinho, Pinheiro de Azevedo, Costa Gomes, António de Spínola, Jaime Silvério Marques, Carlos Galvão de Melo

Com a vitória da revolução, mantêm-se o Gen. Spínola como figura adormecedora das preocupações internas ou externas que pudessem esboçar-se. No elenco da "Junta de Salvação Nacional" participam outros nomes que a todos justificam confiança.

Havia, porém, que iniciar a tarefa descolonizadora. Para isso se fizera a revolução.

Não era fácil conduzi-la para os propósitos da estratégiaa soviética sobre a presidência do Gen. Spínola apesar do domínio influente que sobre ele exercia o Gen. Costa Gomes.

Tudo teve de ser feito com método e de acordo com os planos delineados.

O Gen. Costa Gomes volta a deslocar-se a Moçambique. Dali traz o Dr. Almeida Santos para Ministro da Coordenação Interterritorial, dali envia emissários a Samora Machel e ali reforça a posição dos "democratas". Servindo-se do Dr. Almeida Santos impede que o Gen. Silvino Silvério Marques assuma as funções de governador-geral e comandante-chefe em Moçambique. Em seu lugar, instaura o governo provisório do Dr. Soares de Melo, escolhido pelas sua docilidade obediente e incapacidade governativa.

Tendo confirmado a minha influência e as minhas ligações moçambicanas, consegue reter-me em Lisboa. Com isso, também o Gen. Costa Gomes impede os meus contactos com o Dr. Banda e o Dr. kaunda (evitando a possibilidade de negociações imediatas com a "Frelimo"), denunciando-se ao documentar por escrito o seu propósito de arredar a Zâmbia e o Malawi da acção mediadora que tinham oferecido. Quando se inteira da firmeza daqueles paaíses africanos em meu favor, recorre à cilada para tentar prender-me.

Para minar resistências deixa Moçambique resvalar para o caos, a anarquia e a bancarrota. Agrava-se a instabilidade interna fomentando a incerteza das soluções e promovendo a confrontação tribal.

Envolve o Dr. Mário Soares em negociações destinadas ao insucesso, mas que fariam recair sobre os socialistas, ávidos de alcançarem prestígio político, as maiores responsabilidades aparentes da descolonização.

Na imagem: da esq. para a dir.: Agostinho Neto, o Almirante Vermelho (Rosa Coutinho) e Jonas Savimbi

Quando me escapo às suas malhas, o Gen. Costa Gomes lança campanha de descrédito calunioso que iria até à invenção de acções subversivas, ataques de mercenários e propósitos de racismo colonialista. Impede Otelo Saraiva de Carvalho de se encontrar comigo para se esclarecer sobre os problemas moçambicanos e, mais tarde, haveria de repetir a manobra com Rosa Coutinho.

Sucedem-se os mandatos de captura, o congelamento das contas bancárias e o anúncio de rigoroso inquérito aos meus actos. Multiplicam-se as pressões diplomáticas e chega-se ao corte de relações com o Malawi.

Neste processo intimidador, o Gen. Costa Gomes transmitiu a ordem para as tropas me abaterem se cruzasse a fronteira de Moçambique.

Perante nada recuava quando era necessário retardar a solução do caso descolonizador moçambicano.

Consegue-o, levando as unidades militares ali presentes ao desespero e frustração.

Só nessa altura surge o Maj. Melo Antunes como o negociador que tudo salvaria. Ultrapassa o Dr. Mário Soares e o Dr. Almeida Santos (parceiros já de secundária ordem) depois destes terem desempenhado o papel que neste complexo jogo lhes estava atribuído.

O Maj. Melo Antunes não negoceia. Confraterniza.

Entende-se com os extremistas da "Frelimo" e com eles concerta as fórmulas que correspondiam aos comuns propósitos. Também os nacionalistas daquele movimento haviam sido ultrapassados.
Perante a resistência do Gen. Spínola utiliza-se o argumento de que as tropas em Moçambique não estão dispostas a sustentar posições que ainda ali mantinham. O Gen. Costa Gomes, como chefe do Estado Maior General, confirma-lhe que assim é. Admite-se o perigo da capitulação militar.

O velho soldado, traído, acaba por transigir e o acordo "Samora Machel-Melo Antunes" é assinado em Lusaka, em 7 de Setembro de 1974.

As Forças Armadas ficariam, para sempre, como "bode expiatório" desse compromisso vergonhoso. Ninguém explica a verdade da situação e a forma como os militares haviam sido minados por longos meses de propositado retardamento das soluções e premeditada deterioração das condições de Moçambique.

Com o "Movimento Moçambique Livre", para que foi arrastada uma população que planeadamente se conduziu a extremos de desespero, estão encontradas todas as justificações para se acelerar a saída das camadas humanas mais válidas de que Moçambique dispunha. Dessa tarefa se encarrega o Com. Vítor Crespo, nomeado Alto Comissário. Sem preparação para cargo tão responsabilizante, tinha determinação política para levar a cabo essa missão.

A resignação do Gen. Spínola, que tarde descobriu a traição enleadora do Gen. Costa Gomes, deixa o caminho facilitado à "descolonização original" que se aceleraria com o seu afastamento (Setembro de 1974) e com o exílio, agravado pela prisão de muitos oficiais desiludidos (Março de 1975).

Na imagem: os comunistas Vasco Gonçalves e Costa Gomes

Com Vasco Gonçalves no governo (onde Costa Gomes o manteria até a reacção popular forçar, meses depois, o seu afastamento) aniquilam-se as estruturas portuguesas em termos de nenhum reflexo poderem ter nos territórios ultramarinos em vias de descolonização. O vazio estava criado para que a estratégia soviética pudesse alcançar os objectivos fixados.

Foi Vasco Gonçalves o instrumento da entrega de Moçambique à falsa "Frelimo" que os extremistas controlavam.

Agravava-se, em termos incomportáveis, a situação dos portugueses e dos moçambicanos que ali viviam e conviviam. Por isso foram saindo às dezenas de milhar, como se pretendia que acontecesse. Ali ficaram milhões escravizados a uma democracia popular.

O Gen. Costa Gomes havia realizado a sua missão.

Como veio a realizar em Angola, onde tudo se preparou para ser possível a esmagadora intervenção soviética.

Para a culminar haveria de tomar a iniciativa e a responsabilidade de reconhecer o regime do "MPLA" (Fevereiro de 1976) aproveitando a ausência do Primeiro-Ministro, do chefe do Estado Maior da Armada, do chefe do Estado Maior da Força Aérea, do ministro da Administração Interna e do ministro da Cultura.

Nessa capitulação desnecessária (a que a ameaçada Zâmbia resistiu) o Gen. Costa Gomes teve o apoio aberto e previsível do Maj. Melo Antunes. O binómio descolonizador ficou, só por isso, claramente identificado.

Melo Antunes atreveu-se a declarar que essa decisão merecera a inteira solidariedade do Conselho da Revolução e do MFA.

Valeu-lhe isso o desmentido público e corajoso do Gen. Morais e Silva em termos que não deixam dúvidas sobre a manobra do Maj. Melo Antunes que se atrevera a acrescentar: "estamos longe de considerar que tenhamos reconhecido um governo pró-soviético"!

Só um comunista poderia afirmar essa convicção.

Com as tropas cubanas e os tanques russos a ocuparem Angola!

Só a verdade interessa

Tenho exacta noção das responsabilidades que assumo com o que escrevo. Estou disposto a responder por elas. Num regime de liberdade garantida, não deixaria de estar presente no país cujos governantes acuso.

Como isso tardará em ser possível terei de me conservar no exílio.

Quanto ao livro (editado quase que simultaneamente em mais de um país) não haverá manejos policiais que entravem a sua divulgação. Prevejo que o tentem mas não lhes auguro êxito.

Pelo que pessoalmente me diz respeito, estou certo de se intensificar a campanha de que tenho sido alvo desde que o Gen. Costa Gomes conseguiu ir tomando conta dos poderes. Tenho vivido há dois anos nesta situação. Já me habituei e já aprendi a defender-me.

Creio que voltarei a ser acusado de hipotéticos delitos comuns, com o objectivo de se exercerem novas pressões diplomáticas sobre os países que me abriguem. Até pode acontecer que provem, de repente, com improvisado rigor jurídico, o que não foram capazes de inventar durante os dois anos em que sujeitaram toda a minha vida a devassa rigorosa. Bem insisti, por todos os meios, para que as conclusões do inquérito anunciado fossem tornadas públicas. Dirigi ao Presidente da República a última exposição em 23 de Outubro de 1975.

Mas nada do que contra mim agora "provem" alterará a posição do problema que têm de enfrentar.

Admitindo que pudesse ser verdade tudo aquilo de que me venham a acusar (e não posso, sequer, prever o que seja) e que daí resultasse a evidência de eu ser o mais abjecto monstro do universo, o que fica de pé é saber se falo verdade, neste livro, ou não.

Se falo verdade é isso que importa.

Não têm de tentar destruir o livro. Não interessa que procurem eliminar a pessoa, renovando a ordem de me abater que foi dada em 1974.

O que têm é de provar que menti.

Porque se me acusarem de mentir, têm de provar a acusação.

Perante Deus e os homens

Nestas últimas páginas creio ter resumido, concretamente, o que ao longo deste livro fui provando.

O juízo final só pode ser um.

A "descolonização original" constitui premeditado crime de traição, ao serviço dos interesses de uma potência estrangeira, conduzido metodicamente e agravando a honra das Forças Armadas que foram ardilosamente manipuladas ou iludidas.

O Gen. Francisco da Costa Gomes foi o implacável e frio chefe do bando que executou essa acção.
A ele pertence a responsabilidade por dezenas de milhar de mortes, por centenas de milhar de desalojados e por milhões de pessoas escravizadas.

É culpado pelos sofrimentos, pelos vexames e pelos roubos de que tantos foram vítimas.

É culpado pela desonra que atingiu Portugal.

Não insulto nem ofendo.

Apenas digo a verdade que muitos podem confirmar.

Acuso serenamente e sem ódio.

Porque serenamente e sem ódio terá de ser julgado.

Todos os crimes do Gen. Costa Gomes foram praticados estando no activo como oficial do Exército Português.

As penas estão previstas no Código de Justiça Militar.

Nem escapará a esse julgamento dos homens e nem ao do juízo final.

Construiremos o Moçambique Novo

Não é por teimosia.

Não é só por acreditar no que desejo.

Tenho procurado ser realista e não correr atrás de aventuras.

Confio em que ainda seja possível que Moçambique se converta em terra de moçambicanos e deixe de ser colónia de intrusos.

Os desmandos, os abusos e os crimes avizinham-se do seu fim.

Surgem movimentos nacionalistas redentores, cresce a resistência por toda a parte e as gentes procuram conquistar o que lhes foi negado por uma minoria que desprezam: a liberdade de viver sem terror e a independência de disporem de si próprios.

"Frelimo" chegou a ser, para muitos, a palavra mágica que representava a esperança de se realizarem anseios de justiça.

"Frelimo" é, hoje, nome odiado por milhões de moçambicanos, depois de tudo quanto em seu nome foi cometido.

Em ambas as vezes se errou.

Não podemos praticar, na desilusão, o exagero que cometemos na esperança.

Na "Frelimo" estão muitos que sentem como todos nós sentimos.

É grande o número dos seus militantes valorosos que já sofreram a perseguição, o internamento, a tortura e a morte. Não transige, não concorda e não serve os implacáveis colonialistass que adominam. Esses bons nacionalistas também se sentem espoliados daquilo pelo que tantos irmãos seus deram a vida.

É dentro de Moçambique que se haverá de erguer o clamor imparável da revolta. Não é de fora que isso se poderá realizar.

Todos os movimentoss nacionalistas são dignos de encorajamento, quando não se apresentem como capa de novos colonialismos. Quando sejam autenticamente moçambicanos. Por isso, também a verdadeira "Frelimo" nacionalista tem lugar nesse levantamento nacional que está próximo. Com os seus quadros, com os seus soldados e com os postos de comando que ocupam. O dever de todos os moçambicanos é o de estar prontos a reforçá-los, distinguindo os irmãos dos "camaradas".

Na imagem: Carmo Jardim, em plano aéreo

Sobre o sacrifício dos nossos mártires e sobre o sofrimento dos que tiveram de abandonar a terra a que pertenciam, estou certo de que construiremos o Moçambique Novo.

Onde se queime a bandeira da opressão para se erguer a bandeira de Moçambique. Onde ninguém tenha de se envergonhar da cor da pele e cada qual seja livre de praticar a sua religião. Onde as tradições tribais sejam respeitadas no fortalecimento dos laços comuns que cada vez mais nos unem. Onde voltemos a ser irmãos para deixarmos de ser "camaradas".

Ninguém quer voltar para trás. Todos pretendíamos seguir em frente.

O nosso exemplo multi-racial, em paz e harmonia, será a melhor arma para destruir racismos que ainda nos rodeiam. Com o amor das novas gerações, que têm de viver e confundir-se sem preconceitos, conseguiremos mais, do que outros pretendem obter com o ódio e com as armas.

Os tiranos não podem perdurar e, porque o sabem, tentam prolongar a ditadura evitando que o Povo fale. Mas um povo não pode ser amordaçado. São milhões de bocas a clamar por justiça e a exigir liberdade.

Não se atrevem a perguntar-lhe a opinião. Não são capazes de fazer uma eleição. Não ousam consentir a cada cabeça um voto porque sabem o que todas as cabeças pensam. Não consentem o governo da maioria que para outros dizem reclamar.

Os tiranos são do Maputo. Foram eles quem escolheu o nome que lhes fica bem como apelido. O Povo não é Maputo. O Povo é de Moçambique.

Os ditadores do Maputo, no seu desespero, espiam, perseguem e matam.

Todos sabemos os crimes que estão a cometer.

Não percebem que por cada vítima que tombe aumentará o número dos verdadeiros combatentes da liberdade. Abençoado seja o seu sacrifício e que se converta no cimento indestrutível do Moçambique Novo.

Os tanques russos não podem passar nas nossas picadas; as armas modernas de nada servem contra as armas que não temos; a as nossas aldeias são tantas que não há mercenários comunistas suficientes para as ocuparem. Mas eles, que são poucos, podem ser alvo fácil para a resistência do Povo, quando se desencadeie a sua revolta.

Por isso nunca se atreverão a ir mais longe. Já atingiram o máximo a que podiam chegar.

Daqui por diante só lhes resta recuar. Para embarcarem nos transportes de fuga que prepararam.

Nós seremos os que estão e os que voltam. Para fazer o governo da maioria dentro de Moçambique.

Regressarão muitos, para todos nos ajudarmos. Para voltarmos a ter universidades, escolas, hospitais, indústrias, portos, caminhos de ferro, estradas, comércio e agricultura. Sobretudo para termos, finalmente, liberdade.

Para isso contamos com a ajuda de todos. Sabemos que contamos com a "Frelimo" nacionalista, que é tão moçambicana como nós o somos. Confiamos na protecção dos soldados moçambicanos.

Surgem já raios de Sol a romper o fumo da queimada.

Em breve veremos o céu que é azul. E essa será a cor da nossa bandeira. A bandeira de Moçambique erguida pelo governo da maioria.

Sob essa bandeira espero ainda viver em Moçambique.

Tal como eu, haverá muitos milhares que regressarão. Porque não sabem viver noutra terra. Porque querem viver nessa a que pertencem.

Não tornaremos a consentir que nos enganem, que nos dividam e que nos escravizem. Os que queiram tentá-lo não terão lugar em Moçambique. Aprendemos a conhecê-los. Eram só "camaradas", nunca foram nossos irmãos.

O Povo poderá escolher. Por cada cabeça um voto. A pensar cada um como quiser. O mundo ficará a saber o que queriam os moçambicanos.

Neste livro contei uma história triste. Espero poder escrever outro a contar coisas diferentes.

Haverei de o fazer nesta terra em que quero viver e onde espero, um dia, vir a morrer.

Entretanto, a luta continua... E construiremos o Moçambique Novo (ob. cit., pp. 403-416).

sábado, 2 de outubro de 2010

Moçambique, terra queimada (xii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Kremlin

Novo satélite soviético

A independência processou-se sem brilho nas cerimónias e sem autêntico entusiasmo popular no país. Tudo se circunscreveu aos actos oficiais e à organizada concentração popular no estádio que não alcançou as dimensões e a vibração de acto celebrados sob o regime colonial. Fez-se notar a ausência dos chefes de estado que mais haviam apoiado a "Frelimo" na sua luta e o Malawi, ostensivamente, nem sequer foi convidado.

Em contrapartida, estava presente, em lugar de destaque, o Dr. Álvaro Cunhal, na sua qualidade de secretário geral do partido comunista português. Isso foi devido à insistência de Marcelino dos Santos e tinha significado muito especial, uma vez que não constitui segredo a estreita ligação do Dr. Cunhal com Moscovo. Ninguém se esquece que foi um dos raros chefes comunistas ocidentais a apoiar a brutal intervenção que esmagou a rebelião de Praga.

Aos chineses não passou despercebido o que representava esta singular deferência para com o chefe comunista português. As dúvidas com que pudessem ficar desapareceriam ao ouvirem os discursos proferidos ou ao lerem os textos programáticos que foram sendo publicados.

Quando a nova (e feia) bandeira da República Popular de Moçambique foi içada no mastro da soberania, passava a União Soviética a dispor de mais um satélite.

A independência, tão duramente conquistada pelos nacionalistas moçambicanos, fora roubada à nascença.

Governo da minoria

Na imagem: Bandeira da República de Moçambique

A "Constitução" do novo estado é, do primeiro ao último artigo, um perfeito modelo de marxismo-soviético. Na mais pura linha das democracias-populares, o Comité Central da "Frelimo" (auto-designado como suprema autoridade da nação) assim o decidiu e reservando para si todos os poderes.

Sem qualquer esboço de consulta ao povo, uma minoria impôs a sua vontade a nove milhões de pessoas. Com total despudor nem se deram ao incómodo de praticar arremedo de legitimação democrática.

Razão tivera eu nas minhas apreensões ao ler o "acordo Samora Machel-Melo Antunes". O que aconteceu estava lá previsto ou, pelo menos, tinha-se deixado o caminho aberto para isso.

Foi este processo neo-colonialista que o primeiro-ministro português, presente nas cerimónias, classificou, emocionadamente como honrosa libertação de um povo. Não é estranhável que nesse pendor se tenha rebaaixado, servilmente, a pedir perdão para um passado em que abundavam razões de orgulho para qualquer português.

Tinha de ser Vasco Gonçalves a fazê-lo. Assim traía, mais uma vez, o "Programa do MFA" a cuja comissão directora presidira quando foi elaborado.

Desonrou a farda que, sem convicção, vestira.

Insultou a memória dos que, com a mesma farda, tinham caído para sempre e os tantos outros que sofreram na carne as mutilações de guerra. Paradoxalmente, haviam de vir de Samora Machel as palavras de apreço pelos que tinham sabido bater-se e de desprezo merecido pelos covardes que o não fizeram.

O guerrilheiro corrigiu o "general".

Ainda tinha lampejos dos tempos em que fora combatente. Iriam, porém, desaparecendo com a doutrinação que o cercava e o converteu, de soldado, em moleque dos novos senhores.

Na tal "Constituição" ainda se previa uma assembleia representativa, cuja escolha se acautelava para que o povo não pudesse intervir. Nem essa foi posta em funcionamento até hoje, com quase um ano volvido sobre a falsa independência. A única explicação viável é a de saberem que, mesmo no restrito campo dos dirigentes, o descontentamento alastra correndo paralelo com a frustração.

Estado policial

A perseguição a tudo quanto pudesse representar capacidade de pensar e, eventualmente, de discordar, passou a ser feroz. Nesse procedimento decapitador de um país não houve qualquer discriminação racial. Todos foram igualmente abrangidos.

As nacionalizações começaram exactamente pelas profissões liberais e com esse propósito. Médicos, advogados, engenheiros e professores saíram do país às centenas, deixando o vazio desejado e de que a população foi a grande vítima.

Na imagem: os "Campos de Extermínio ou Campos da Vergonha"

As prisões arbitrárias sucederam-se e nos campos de trabalho os detidos são tratados com requintes vexatórios e de brutalidade. O transporte de muitos desses milhares de infelizes faz-se em camiões de gado (e com tal indicação inscrita no exterior das viaturas) para impedir a identificação por algum curioso inconveniente. Mas aconteceu que um desses camiões teve de ser aberto (e sabe-se onde tal aconteceu) quando uma mulher branca deu à luz inesperadamente e soltou os normais gritos da maternidade que os guardas não conseguiram calar. Viu-se então, de que "gado" se tratava e houve organismos internacionais que do caso tomaram conhecimento. O escândalo foi abafado.

Poucos detalhes desta actuação policial, destinada a espalhar o terror e forçar a saída dos indesejáveis "reaccionários", têm sido divulgados pela imprensa, apesar de não faltarem (em Portugal e nos países limítrofes de Moçambique) testemunhos que poderiam ser usados. Os moçambicanos e portugueses continuam a sair do país, aos milhares, por todas as formas que conseguem. Alguns houve que até foram perseguidos, já dentro do território sul-africano, por milicianos armados que procuravam interceptá-los. Dezassete dos perseguidores foram presos pela polícia da República da África do Sul.

Os aviões da TAP e das outras companhias aéreas enchem-se com fugitivos em Johannesburg, Salisbúria, Blantyre e, até, Lusaka. Quem tiver dúvidas pode informar-se junto do pessoal do aeroporto de Lisboa e dos tripulantes da TAP que têm realizado esses voos. Não faltam histórias dramáticas para conhecer.

Enquanto que os excessos da "PIDE" ocupavam páginas inteiras dos jornais, raros são aqueles que manifestam interesse pelas incomparáveis monstruosidades cometidas pela "SNASP" ("Serviço Nacional de Segurança Popular"). Esta "SNASP" é responsável unicamente perante o presidente Samora Machel, conforme se prescreve no artigo 9.º da lei que promoveu a sua constitução. (...)

Perseguição religiosa

Também sem qualquer discriminação, Samora Machel desencadeou ofensiva contra todas as confissões religiosas. Nenhuma parece ter escapado.

Na imagem: Meca

Em insulto sem precedentes o ditador moçambicano entrou na mesquita sagrada da Ilha de Moçambique, sem se descalçar. Humilhou os "che", perante muitos fiéis maometanos congregados para receber o novo presidente. Não perdoava que os devotos de Meca (que somam ao redor de três milhões de crentes em Moçambique) se recusassem a aderir às doutrinas marxistas de que se convertera em arauto.

O contraste com a tolerância portuguesa ficou patente para toda essa gente. Recordam os tempos em que o governador-geral (Baltazar Rebello de Sousa) participava publicamente nas suas orações e a eles se dirigia, com respeito ecuménico, durante as solenidades que decorriam das prescrições do Profeta.

Os cristãos não-romanos tiveram igual sorte.

Leia-se o jornal sueco "Expressen" que, pela pena de Eric Sjoequist, denuncia a perseguição sofrida. A este se juntou o médico-missionário escandinavo, Dr. Koorsning, para descrever como milicianos invadiram os templos, as escolas e os hospitais e obrigaram a tudo abandonarem, sob a ameaça das armas. Os missionários estrangeiros, que tantas vezes tinham tomado a defesa da "Frelimo", foram acusados de serem agentes do imperialismo e de entravarem a marcha da revolução.

Creio, no entanto, que a seita religiosa que directamente mais sofreu foi a das "testemunhas de Jehovah". Dezenas de milhar (as melhores estimativas cifram-nos em 400 000) tinham procurado refúgio em Moçambique depois de serem perseguidos nos territórios vizinhos, especialmente no Malawi, por se recusarem a participar em qualquer actividade política. Percorri muitos desses campos de refugiados, estabelecidos pelas autoridades portugueses, em laboriosos trabalho de identificação (como cônsul do Malawi) para impedir que criminosos comuns com elas se misturassem, beneficiando da protecção que lhes era concedida em base humanitária.

Não tive quaisquer dificuldades. Encontrei sempre a melhor colaboração dos portugueses e dos refugiados. Entre estes encontravam-se médicos, engenheiros, advogados e abastados comerciantes.

O Malawi, mesmo não reconhecendo a seita, apreciava o filantrópico procedimento português e colaborou nas facilidades solicitadas para a saída de famílias ou bens, enquanto que o seu governo partilhava nos encargos com o sustento dessa gente.

Com o advento de Samora Moisés Machel tudo foi revirado repentinamente. E sabia-se que os guerrilheiros da "Frelimo" haviam utilizado os campos de refugiados para neles se abrigarem ao serem perseguidos pelas tropas portuguesas. Tinha acontecido isso na Angónia, em Milange e em Nova Freixo.

À ponta da baioneta os desgraçados foram obrigados a cruzar a fronteira para serem entregues às autoridades vizinhas. Os que tentaram escapar-se para permanecer em Moçambique foram tratados com incrível violência. Recebi cartas de membros da seita ccom quem tinha feito amizade, relatando as mortes, as feridas e fracturas graves ou os abusos sexuais. Calcula-se que mais de 3 000 pessoas foram friamente eliminadas. O próprio governo do Malawi, que os perseguira, apiedou-se deles e ofereceu-lhes abrigo contra tais excessos.

Na imagem: Jehovah

Mesmo assim, mais de dez mil "testemunhas de Jehovah" encontram-se hoje, em condições sub-humanas, em campos de trabalho nos distritos da Angónia e de Milange.

A Igreja Católica também não se eximiu à perseguição.

Em documento circulado pelo partido, foi acusada de actuação contra-revolucionária que procura obstaculizar a marcha da democracia-popular. Referiu-se a necessidade de "separar do Vaticano a Igreja de Moçambique" e (até mesmo!) de alterar a liturgia e as orações.

O Bispo de Nampula, um dos mais activos frelimistas do período colonial, foi restringido à zona do seu paço e notificado, por um cipaio, da decisão das autoridades de não lhe consentirem que pregasse na catedral.

Os bispos moçambicanos que sempre encontravam fórmulas, ainda que vagas, de criticar as autoridades portuguesas nos seus comunicados públicos e de as afrontar nos relatórios para Roma parecem remetidos a silêncio envergonhado.

O que terá acontecido aos missionários espanhóis tão largos no falar em defesa do seu povo cristão? Que é feito da voz de D. Eurico Noronha (respeitado Bispo de Vila Cabral e depois transferido para Sá da Bandeira) que se ofereceu para advogado dos padres-marxistas do Macuti, conforme carta que me escreveu?

Porque se calou, também, a Igreja Católica?

Impressiona a forma como desapareceu a coragem ao eminente Núncio Apostólico em Lisboa que tão presto era em denunciar as prepotências portuguesas.

Igualmente o Padre Hastings, denunciador dos massacres do Wiryamu, cala-se quando hoje se cometem verdadeiros e comprovados genocídios em Moçambique, que excedem tudo o que de imaginoso sobre as atrocidades portuguesas relatou em plena primeira página do respeitável "The Times" de Londres.

Na imagem: D. António Ferreira Gomes (Bispo do Porto)

Nem o Bispo do Porto, tão fértil no apoio às acusações contra a guerra colonial, tem hoje uma palavra de caridade para as centenas de milhares de cristãos que penam em Moçambique uma das mais violentas perseguições religiosas que os tempos modernos conheceram.

Onde estão as cartas pastorais e as homilias versando o tema "Paz e Justiça"?

Há em tudo isto um silêncio cúmplice.

Ou há uma vergonhosa falta de coragem.

Como excepção confortadora pode apontar-se a figura admirável do Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, que se ergue com personalidade ímpar dizendo as coisas pelos seus nomes. Mesmo depois dos vexames sofridos na sua dignidade de homem e de sacerdote impecável que até sabe perdoar.

Guerra de conveniência

Com a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas vizinhanças do colapso.

Estima-se que mais de duzentas mil pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.

Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.

Assim, não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de 70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era imperioso dinamizar.

Na actividade agrícola, afectada em muitas regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.

Estes índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975. Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.

Já não se trata de ter produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as populações. A partir de Junho a fome apresenta-se como ameaça para todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo só acessível aos dignatários do partido.

O desemprego alcança nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos onde não conseguem encontrar ocupação.

Com a carência de pessoal qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.

As rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a ocultar-se, durante dias, em parte incerta.

Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".

Samora Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava ver-se livre de soldados cuja atitude receava.

Mandou moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua segurança e interesses pessoais.

O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.

O bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.

Assim, esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das ineficazes sanções, afirmava resultarem.

Será muito duvidoso que alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.

Uma coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...

(...) Reacende-se o tribalismo

Com o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A perseguição religiosa agrava essa tendência.

Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.

Tendo de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas estruturas tradicionais.

Não é compensável esse fenómeno desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim, consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo", completamente desenraízada das realidades da vida rural. Essa engloba mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.

Enquanto que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais, acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da "Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista que o deslumbra e domina.

Porque fez a opção errada já teve de afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários". Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.

É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.

Se o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional, não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a opressão que se queira impor às gentes.

Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.

Na imagem: Gungunhana (o Leão de Gaza)

Os mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da "Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram ordens de estranhos na sua terra.

Se continuasse a citar reacções tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.

Apenas procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.

Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.

Com os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer geometria sobre terras que são a sua pátria.

Depois, têm aquele aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo necessário para ver passar o enterro do inimigo.

Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)

Cubanos e russos

Na imagem: helicóptero russo pilotado por cubanos, na Base 3 do Negage (Angola)

Para muitas pessoas a grande incógnita está na possível intervenção de cubanos e russos em Moçambique. Têm naturalmente presente o que se passou em Angola.

Mas os dois casos não são assimiláveis, pelo menos para este efeito.

Não creio que haja risco de assistirmos a agressão semelhante.

Explico porquê.

Em Angola travava-se uma guerra quase do tipo clássico, comparável à que se registou no Vietnam. Para a semelhança ser mais completa, nem faltou o recuo dos americanos, abandonando aqueles que haviam encorajado. Com a experiência, meditada, do passado recente, nunca esperei outra coisa. Ao menos não tive as desilusões que outros, mais ingénuos, sofreram.

Em Moçambique nunca haverá uma "vietnamização". O que pode haver, a partir do tribalismo exarcebado, é uma "congolização" com mais tribos e com maior dispersão no terreno onde as vias de comunicação, em consequência da própria geografia, se tornam extremamente difíceis.

Contra este tipo de revolta, que cabe nas previsões mais realistas, nem os pesados tanques, nem os "orgãos de Staline", nem os mísseis teleguiados e nem a infantaria cubana podem ter remota esperança de êxito.

Só podem ser úteis para prevenir uma revolta por parte da única força militar organizada que existe: a própria "Frelimo". Se os chefes dos combatentes moçambicanos consentissem tal intromissão, estariam a condenar-se a si próprios. Nem a pretexto de se lhes consentir a passagem para agredirem a Rodésia, creio que embarquem em tal aventura. Seriam dominados totalmente e passariam a subalternos soviéticos.

Os comandantes da "Frelimo" (que foram os que se bateram no mato durante dez anos) não podem esquecer o mandato nacionalista dos seus mortos. Não podem desprezar Magaya e os seus homens, não podem ver-se humilhados perante os aguerridos macondes que conduziram e que, além de terem lutado no seu planalto, vieram a ser a flecha audaciosa que se infiltrou em Tete.

A presença militar de cubanos e russos seria o cativeiro sem esperança dos soldados da "Frelimo". Não creio que o permitam e ainda têm força para impedir tal decisão.

A guerra tribal seria, então, inevitável. A unidade de Moçambique estaria irremediavelmente perdida. Nem o próprio Samora Machel se atreveria a dar tal passo.

Olhando os factores externos não se pode ignorar as possibilidades da reacção chinesa.

Os chineses nunca tentaram, ao contrário dos soviéticos, realizar uma penetração política. Quanto muito fizeram divulgação cultural. Não buscaram conquistar adeptos de novo imperialismo. Cuidaram mais de fazer amigos. Por esta via exercem a sua influência. Foram eles que, com a sua persistente capacidade de organização, permitiram à "Frelimo" ultrapassar as fases mais críticas e resistir até lhes ser proporcionada a vitória. Os militares da "Frelimo" sabem que foi assim.

Será, no entanto, compreensível que os chineses, depois dessa participação activa no que era a luta de libertação de Moçambique, não estejam dispostos a assistir impassíveis ao novo colonialismo soviético já por demais evidente e que se tornaria gritante com o hipotético desembarque de forças cubanas ou russas.

Além de um acto de desprestígio para a China Popular, isso seria uma provocação contra a sua influência cultural e contra a libertação autêntica dos territórios em que se envolveu tão profundamente. Há que não esquecer que o "TANZAM", ligando a Zâmbia à Tanzânia foi produto do esforço e do financiamento chinês. Na altura pareceu que visava apenas libertar a Zâmbia do risco da asfixia por parte dos portugueses mas, vistas bem as coisas, pode acontecer que os chineses tenham projectado a sua visão a mais longe. Hoje pode converter-se em antídoto contra eventual manobra imperialista soviética.

Na imagem: cogumelo atómico (clique para ampliar)

Acontece, por outro lado, que Moscovo teme Peking por conhecer a sua capacidade de reacção ao longo de uma extensa fronteira comum em que nenhuma vantagem está do lado russo. Os chineses são os únicos que não carecem de recorrer à ameaça da bomba atómica para dissuadir os soviéticos. São também aqueles contra quem os soviéticos nunca se atreveriam a usá-la.

Não deixam de ter presente o realista aviso de Mao-Tse-Tung: "se houvesse uma guerra atómica, o último sobrevivente sobre a terra seria certamente chinês". Mao-Tse-Tung, até hoje, não cometeu um único erro de previsão nos seus dizeres.

A China Popular não toleraria um desembarque cubano-russo em Moçambique. As advertências de Peking têm mais peso do que as de Washington. Os chineses, para reagirem, não têm de se envolver nos meandros democráticos do Capitólio. Os russos sabem-no e o primeiro aviso parece já haver sido dado num oportuno incidente de fronteira noticiado pelos jornais.

Por todos os factores anunciados, em que o último não é certamente o menos importante, não creio na intervenção militar soviética em Moçambique.

Atrevo-me a fazer este vaticínio.

É certo que armamento ligeiro abundante tem estado a ser desembarcado em Nacala e a ser dali transportado pelas "Linhas Aéreas de Moçambique" para diferentes portos do território. Destina-se a armar as guerrilhas rodesianas e a reforçar o equipamento militar da "Frelimo".

Até aí podem chegar os soviéticos.

Samora Machel e os seus conselheiros fariam bem em pensar contra quem podem ser disparadas essas armas.

Comentário

Enquanto tudo isto se passa e Moçambique sofre a escravidão imposta por uma ditadura odiosa, o mundo parece não se dar conta da importância e da gravidade de quanto ali acontece.

Já o mencionei anteriormente, mas julgo oportuno voltar a referi-lo neste comentário final.

O caso de Angola, pela espectacularidade dramática que o rodeou, fez com que mais gente pensasse nele. Não o conheço com a profundidade de informação de que disponho sobre a tragédia que Moçambique atravessa.

Não quero fazer comparações porque para a dor não existe padrão de medida.

O que acontece é que sobre Moçambique quase se abateu uma muralha de silêncio enquanto ali se passa um dos dramas da descolonização portuguesa.

Não deixo de ser sensível ao sofrimento das gentes da Guiné, ao terrível e irresponsável abandono de Timor, aos horrores que tombaram sobre Angola.

Na imagem: Agostinho Neto e Fidel Castro

No julgamento do processo da descolonização não pode ficar de fora a destruição da Pátria Portuguesa, abalada criminosamente da sua possibilidade de sobrevivência e afastada talvez para sempre da posição que lhe pertencia no mundo.

Creio, com profundidade de fé, que todos os autênticos nacionalistas dos vários quadrantes onde chegara a presença lusitana, preservávamos como ponto de honrosa convergência a grandeza de Portugal a que nos sentíamos ligados pelo sangue ali amorosamente misturado, pela fusão de culturas promovida com desvelo e pelos rasgados horizontes que nos prometia o sabermos que seríamos, em breve, mais de duzentos milhões a venerar o vínculo abençoado que nos reunia.

Queríamos ter casa própria.

Mas também queríamos que nela coubessem os irmãos que houvessem construído a sua, como esse portentoso Brasil que era para nós exemplo e farol de guia.

A possível arrogância apaixonada com que nos sentíamos moçambicanos, e pretendíamos poder sê-lo, nada continha de ofensivo para Portugal.

Talvez que mesmo, nesse nacionalismo africano, afervorasse o nosso amor pela Pátria-Mãe de todos nós.

Os meus filhos e os meus netos de qualquer cor nunca esqueceriam os pais ou os avós.

Ambicionávamos que os que não tivessem os mesmos laços se sangue sentissem como eles sentiriam, uma vez que eles sentiriam como eles.

Esse esteve para ser o milagre português.

Só pretendi, nestte livro, provar porque assim não foi.

A descolonização de Moçambique, país promissor convertido em terra queimada, não foi o único caso e nem terá porventura, sido o mais trágico.

Mas foi o problema que eu vivi. Aquele que intimamente conheci. E que mais procurei, por isso mesmo, salvar da queimada que pressentia avizinhar-se.

Assim me devotei a escrever tantas e tão dolorosas páginas sobre o drama que testemunhei.

Bem desejaria que outros o fizessem sobre o que experiências diferentes possam oferecer.

Assim ergueríamos o processo de descolonização.
E os homens responsáveis por ela haveriam de enfrentar o tribunal que um dia os julgará, sem apelo diante da História.

Enquanto o tribunal de Deus, em que creio, não lhes toma contas dos actos cometidos (ob. cit., pp. 383-399). (...)

Continua

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (xi)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


"AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE"

Com o título "Aqui Moçambique Livre" publicou Ricardo Saavedra um livro que merece a pena ser conhecido e meditado, pela imagem viva que oferece da generosa revolta de Moçambique, em Setembro de 1974. Foi editado em Johannesburg e bem merecia, se possível, aparecer nos livreiros portugueses.

Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.

Quando rebenta uma revolta

Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.

No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.

De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.

Foi esse o rastilho da explosão.

O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.

Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.

Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.

Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.

A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".

O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.

Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.

Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".

Nada fora planeado e nada estava organizado.

Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago para se obter a reacção que convinha desencadear.

Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!

Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.

Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.

Mas desta vez ia ser mais sério.

Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)

Porque não entrei em Moçambique

De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.

Na imagem: Joanesburgo (África do Sul)

A permanência em Johannesburg poderia fazer crer que eu estava ligado à rebelião.

Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.

Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difícieis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.

Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.

O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos páraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.

Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.

Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagenss ao inimigo. Por isso o haviam provocado.

Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.

Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.

Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.

Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.

Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.

Clique na imagem para ampliar

Escutando o RCM, soube da compreensível mentira de anunciarem ter sido cancelado o meu mandato de captura. Pensavam no meu regresso como última esperança. Ouvi os aplausos da multidão quando isso foi divulgado. O Gonçalo Mesquitela haveria de vir a dizer-me que tal ovação tinha levado todas as recordações semelhantes que conservara.

A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.

Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.

Derradeiras mensagens

Quando me chegaram as derradeiras mensagens de Gonçalo Mesquitela dizendo-me ser-lhes impossível continuarem a resistir e dando-me conta das selvajarias ateadas pelos "democratas" nos subúrbios de LM, recebia também informação da Beira anunciando que o movimento capitulara.

As minhas filhas, que na Beira continuavam, tinham sido conduzidas por militares para ponto seguro onde sempre permaneceram. Não esqueço essa atenção amiga, embora outros telefonemas me indicassem que as retinham como reféns. Não creio que assim tenha sido, até porque isso nada alteraria as minhas disposições se elas fossem diferentes do que foram.

Através do receptor (e sempre gravando) acompanhámos os últimos momentos daquele "Movimento" generoso, improvisado e antecipadamente vencido.

Depois foi o silvar das ambulâncias, os crimes friamente cometidos, os excessos dos populares embriagados e drogados, os incêndios e saques, as centenas de mortos e os apelos das autoridades impotentes.

Moçambique tinha tido a sua "primavera de Praga".

Não se podem condenar os homens do "Movimento de Moçambique Livre" mesmo quando se sabe que a sua actuação impulsiva serviu os desígnios do inimigo e comprometeu, por muito tempo, todas as demais hipóteses que poderiam existir.

Faltou-lhes a serena decisão de o terem podido transfomar em simbólico gesto de protesto (utilizando os emissores que ocuparam) sem forçarem mais longe a confrontação. Mas não pode esquecer-se que a população tinha sido provocada com acinte, quando já suportara meses de insultos e atingira o limite da tensão nervosa.

Isso evidencia e agrava o crime dos que tudo encaminharam para que tal tivesse de acontecer.

Provei, nas páginas deste livro, que tentei impedir que assim fosse.

Houve outros que me impediram de o conseguir.

Costa Gomes e Melo Antunes ficam, por isso, na bancada dos réus que a história julgará.

Espero que também os julguem os homens que viveram estes tempos de tragédia. (...)

Entre baixios e baixezas

Na imagem: Samora Machel e Mário Soares (Acordo de Lusaka)

O texto do acordo entre o Estado Português e a "Frelimo", assinado em Lusaka em 7 de Setembro de 1974, chegou-nos a Blantyre (enviado ainda por Mark Chona) antes de ser publicamente divulgado. Foi a última deferência que teve para connosco, cumprindo aquilo que havia prometido.

Lendo-o, com a atenção merecida, podem nele encontrar-se expressões e intenções coincidentes com o nosso "Programa de Lusaka", de 1973. Por mais voltas que os negociadores tenham dado, não conseguiram libertar-se de tal influência. Não me considero honrado por isso e acentuo que nenhum vínculo existe entre os dois documentos, excepto o local onde foram produzidos.

(...) Vale a pena fazer alguns curtos comentários.

O Acordo Samora Machel-Melo Antunes

Do lado português, o papel foi assinado por oito plenipotenciários, entre os quais três ministros do governo e um conselheiro de Estado. Pelo lado da "Frelimo", entendeu-se ser bastante a assinatura de Samora Machel.

A delegação portuguesa foi encabeçada pelo ministro Ernesto Augusto Melo Antunes.

Segundo os hábitos correntes, o documento deve ser denominado como o "acordo Samora Machel-Melo Antunes", sendo a ordem dos nomes resultantes de Samora Moisés Machel haver assinado no lado esquerdo, por deferência que lhe foi atribuída.

À assinatura do Maj. Melo Antunes seguem-se logo as assinaturas de dois outros ministros (Dr. Mário Soares e Dr. António de Almeida Santos) e, depois, a de um conselheiro de Estado (Victor M. Trigueiro Crespo).

A cuidadosa vacuidade dos compromissos não obrigava a "Frelimo" a coisa alguma e, de resto, no tempo de transição que se seguiu, parece que ninguém teve preocupações a tal respeito. O Estado Português é que ficava amarrado a obrigações claramente definidas.

Houve um curioso artigo do acordo (a cláusula 18) que, desde logo, me prendeu a atenção.

Nesse preceito dispunha-se que "O Estado Moçambicano independente exercerá, integralmente, a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do Povo".

Como é normal que os estados independentes disponham de tais prerrogativas, poderia parecer redundância de advogado afirmá-las. Mas as coisas não se passavam por forma tão ingénua. Os factos vieram a comprová-lo.

Uma vez que o governo de Portugal tratava com a "Frelimo" a transferência "progressiva dos poderes que detém sobre o território", era óbvio que seria a "Frelimo" a personalizar o "Estado Moçambicano independente" e, portanto, a decidir (nos termos do citado artigo 18, do acordo Machel-Antunes) do estabelecimento das "instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu Povo".

Com isto, a potência soberana (Portugal) lavava as mãos de qualquer intervenção no acautelamento dos interesses das gentes e da sua autodeterminação. Era exclusivamente a "Frelimo" a decidir (como veio a acontecer, provando o acerto da minha preocupada interpretação) sobre o regime que entendesse mais adequado.

Compulsando os anais da descolonização em toda a África, não encontrei caso semelhante de abandono.

Passavam-se os umbrais da "descolonização original" conduzida por declarados democratas, e logo dois deles juristas, que ficavam indiferentes ao sacrifício da expressão da vontade popular.

Como deixei anteriormente descrito, todo o encaminhamento descolonizador que diligenciámos definir, em mais de um ano de intensa actividade, apoiava-se na consulta popular sobre a definição das estruturas políticas.

Quando me lembro das horas que passei, com Kaunda e Mark Chona, a deitar contas ao tempo necessário para o recenseamento e a discutir a forma de o tornar representativo, acabo por me convencer que a minha formação democrática se situava, afinal, muito por diante do que no acordo Machel-Antunes se definia.

Nítido se apresentava que ambos se inclinavam para outras fórmulas democráticas pelas quais viriam a revelar predilecção. Samora Machel veio a fazê-lo abertamente. Melo Antunes foi oscilando, conforme as conveniências, mas sem nunca o poder disfarçar inteiramente.

Assim nascem as cortinas que separam dois mundos. Quer sejam cortinas de ferro, cortinas de bambu ou cortinas de capim.

A autodeterminação dos povos ultramarinos tão explicitamente fixada no "Programa do MFA", cujos dizeres tive ensejo para recordar, desaparecia com uma penada de Samora Machel-Melo Antunes.

Verdade seja que Samora Machel não interviera na redacção do "Programa do MFA" e por isso não estava a ele obrigado. Mas Melo Antunes havia sido o principal elaborador desse documento.

Ou tinha o premeditado propósito de enganar ou faltou à palavra dada.

O naufrágio do Alto Comissário

O elenco do governo trnasitório, na parte que a Lisboa pertencia designar, nãao tranquilizou ninguém. Tratava-se de tecnocratas sem qualquer representatividade local e, por isso, desconhecidos por toda a gente. Não davam garantia de poderem estabelecer a "ponte" de colaboração desejável.

Desempenhavam mais uma comissão de serviço colonial, com a agravante de ser declaradamente transitória, para daí a uns meses voltarem a Portugal com emprego assegurado e qualquer que fosse a sorte dos moçambicanos.

Este começo desalentador agravou-se com a escolha do Alto Comissário: o comandante Vítor Crespo, para o efeito graduado em almirante.

Era geralmente desconhecido em Moçambique. Pelos jornais ficou a saber-se que ali tinha cumprido o seu normal tempo de serviço, a bordo de uma fragrata que patrulhava o litoral. Ficara com a ideia da linha da costa e dos portos em que entrara. Nestes, era exacto que tinha obtido notória popularidade.

Sem conhecimento apropriado das terras e das gentes que lhe competia descolonizar, dificilmente poderia ser o árbitro supremo que as circunstâncias, já de si complexas, exigiam. Veio isso a agravar-se com o facto de, durante o mandato que lhe foi entregue, não ter disposto de tempo para o contacto com os povos desse imenso território. Houve de compreender-se quando se soube quanto era retido em Lourenço Marques por tarefas absorventes.

No acto de posse, o Presidente da República conferiu-lhe a missão de "conduzir o processo de descolonização, com patriotismo, no respeito pelo nosso passado, pelos nossos maiores em África, e, acima de tudo, pela bandeira verde-rubra da Pátria, para que o novo Estado de Moçambique venha a ser efectivamente uma nação de expressão lusa e indestrutivelmente ligada à Mãe-Pátria" (cito de um semanário lisboeta, de 14 de Setembro de 1974).

Foi isto que o Alm. Vítor Crespo jurou solenemente, por sua honra, fazer.

E foi isto o que não fez.

Na imagem: Lourenço Marques

Logo em 21 de Outubro seguinte, aconteceu que uma unidade de "comandos" (farta de insultos incompatíveis com a sua dignidade) tomou desforço, quando foi provocada nas ruas de Lourenço Marques. Daqui nasceu a retaliação horrorosa que causou centenas de mortos entre a população indefesa, conforme os insuspeitos relatos da imprensa internacional. Houve carros incendiados, com os seus ocupantes dentro. Houve violações e violências em que todos os excessos se cometeram. Houve corpos trucidados em condições horripilantes.

O primeiro-ministro Joaquim Chissano chorou convulsivamente, no Hospital Miguel Bombarda, ao deparar com o macabro espectáculo que os médicos lhe mostraram.

O Alto Comissário, a quem pertencia a responsabilidade de defender a ordem pública (nos termos do acordo Machel-Antunes), não fez um movimento para proteger essa pobre gente que foi chacinada. Consentiu que os "comandos" fossem indignamente acusados de "irresponsáveis drogados" e não teve uma palavra de conforto para as vítimas imoladas. Nem um só dos responsáveis pelos morticínios foi detido, inculpado e presente a tribunal.

Assim mantinha a ordem e a paz que jurara preservar!

Sucederam-se as prisões arbitrárias, por simples suspeita ou denúncia anónima, feitas por milicianos armados, perante a passividade das autoridades. Os presos eram descalços, despojados do que possuíam e enviados para onde os algozes entendiam. Trata-se de casos testemuhados. Uma dessas vítimas (que foi deixada na cadeia quando da independência e ainda lá continua) foi acusada do crime de ter facilitado a passagem da fronteira a mulheres e crianças que fugiam daquele inferno. Tem sofrido tais suplícios que tentou o suicídio.

Na Beira, as prisões, nomeadamente as de carácter político, foram confiadas à polícia judiciária, dependente do Alto Comissário. Nessa polícia foi integrado, como qualificado agente, um criminoso de delito comum (o famigerado Zeca Ruço). Havia sido condenado, pelos tribunais regulares, a pesadas penas que foram esquecidas. No seu passivo figuravam roubos, assaltos à mão armada e fuga da cadeia. Era tido como um dos mais perigosos meliantes.

Assim entendia o Alto Comissário a dignidade!

Os monumentos portugueses, que eram património luso em Moçambique, foram apeados antes da independência. Alguns foram mutilados ou tratados sem qualquer respeito pelo que representavam. Existem fotografias documentadoras em que se alinham Mouzinho de Albuquerque, Vasco da Gama, Cardial Gouveia, Azevedo Coutinho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho.

Tudo isto se passou sob o governo do Alto Comissário.

Assim entendia a defesa do respeito pelo nosso passado e pelos nossos maiores em África que lhe tinha sido cometida!

Numa entrevista que veio a dar, (...) sobre a descolonização, referiu que, os que tiveram de deixar Moçambique, não passavam de "racistas", "exploradores e reaccionários".

As dezenas de milhares de moçambicanos (de todas as cores e credos) que foram forçados a abandonar a sua terra, sob o mandato do Alto Comissário, e que tentam sobreviver pelo mundo, são a demonstração mais inequívoca de que isso não foi assim.

O Alto Comissário mentiu!

Sob a sua jurisdição foi conduzido à morte o Dr. Willem Pot, meu adversário de sempre e democrata convicto. Homem de cor, havia sido secretário de estado da comunicação social, no governo provisório de Moçambique. Por denunciar os campos de internamento, a falta de assistência jurídica aos presos e os abusos neles cometidos (no tempo do Alto Comissário), foi preso em Quelimane, torturado e inibido de receber qualquer socorro médico para a doença que o afligia. Libertaram-no para que não morresse na cadeia. Faleceu dias depois. Mas teve tempo de falar e possuo o testemunho do que disse.

Assim desempenhava o Alto Comissário as funções que lhe estavam entregues!

Para não alongar a lista das baixezas (que poderá ser completamente fornecida ao tribunal, quando chegar o momento) apenas mencionarei os presos abandonados em Moçambique, na altura da independência.

Somaram centenas, segundo provas indesmentíveis, quando o Alto Comissário deixou aquelas terras para retomar em Lisboa uma vida desafogada, sendo depois promovido a ministro, gastando o tempo por locais dispendiosos.

Se mais não foram os abandonados, deve-se isso à intervenção corajosa de três homens (Maj. Rebelo Gonçalves, Cap. Silva Marques e chefe de escala da TAP, Paiva Cardoso) que conseguiram fazer sair para Salisbury algumas dezenas dessas vítimas de cuja sorte o Alto Comissário se desinteressava. Descolaram da Beira às 10 horas do dia 25 de Junho de 1975, graças à abnegação dos tripulantes da TAP (chefiados pelo comandantee Conceição) que dormiram no "Boeing" à espera de poderem realizar essa operação humanitária.

Nem sequer o consulado de Portugal, na Beira, dispunha de pessoal para assistir os portugueses. O Cônsul chegou, de Johannesburg, na véspera da independência e não dispunha de instalações e meios para atender os que o procuravam, aflitos. Com as instruções confusas de que dispunha, foram recusados passaportes a gente de cor que queria usar o seu direito de optar pela nacionalidade portuguesa. Eram abandonados à sua sorte.

Assim cuidava o Alto Comissário de preservar a expressão lusa do novo país.

Com tal procedimento entende-se tudo o que veio a acontecer depois.

Nada sucedeu por acaso. Tudo foi premeditado. (...)

Demolição de Moçambique

Quando regressei da Europa, encontrei uma situação confrangedora.

Na medida em que a evolução política portuguesa girava rapidamente para o extremismo comunista, sentiam-se reflexos em Moçambique que mais deterioravam o ambiente. Os postos chave ainda detidos por portugueses eram progressivamente ocupados por militantes marxistas. O figurino soviético surgia como padrão ostensivo da ideologia revolucionária e as existentes simpatias pela China popular eram metodicamente abafadas.

Fiz retirar os meus filhos que permaneciam na Beira e alguns pertences em que a família tinha maior estima. O resto ficou ali para ser tragado pela voragem.

Creio que levei longe demais o risco a que sujetei a minha gente. Saíram quase no último minuto possível.

O pânico crescia, compreensivelmente, entre a população. Queria-se precipitar a fuga, manipulando os justificados receios de tantas pessoas. Não interessava aos activistas que ficasse alguém, de qualquer raça, que pudesse oferecer-lhes o risco de esclarecer as massas que começavam a agitar-se.

Joaquim Chissano e alguns outros dirigentes diligenciavam, todavia, travar esse êxodo. Sabiam como se reflectiria na produtividade do país, no crescimento do desemprego e no consequente descontentamento. Não ignoravam ser-lhes impossível dispor de quadros para substituir os que partiam.

Um qualificado funcionário português escrevia-me, em fins de Novembro:

"Estou profundamente preocupado e mesmo apreensivo com o futuro de Moçambique que não antevejo nem fácil, nem próspero, nem calmo, nem seguro.

A Frelimo surgiu cheia de boas intenções, mas completamente vazia de quadros ou de estruturas e nos meses que passaram não se nota qualquer evolução. Apresentam-se, não só incapazes de resolverem os grandes problemas, como de os equacionarem ou até mesmo de tomarem deles completo conhecimento.

Os chefes responsáveis são sensatos, ponderados, encontram-se animados de boa vontade e possuem normal capacidade intelectual. Acontece, porém, que, entre eles (e são confrangedoramente poucos) e a massa bruta dos "camaradas" nada existe.

Todos estes dirigentes têm plena consciência da incapacidade da Frelimo para assumir realmente todas as funções directivas de um país independente".


Por outros canais fiéis chegavam-me cópias de relatórios oficiais enviados para Lourenço Marques ou para Lisboa alertando sobre a preocupante anarquia que se avizinhava. Concretizar a independência em tais condições, escrevia-se nesses documentos, equivalia a entregar o país a irresponsáveis que um bando de extremistas se preparava para dominar. Os que, honestamente, formulavam estes avisos, foram gradualmente afastados.

Houve dirigentes da "Frelimo" que também escreveram para Dar-es-Saalam expondo a gravidade da situação.

Mas Vítor Crespo, Melo Antunes e Costa Gomes insistiam em que tudo se acelerasse para a transferência crescente de poderes.

Teima-se na "descolonização original", mesmo sabendo as vítimas e os vexames que ela iria causar.

Não podia deixar de haver, por detrás dessa atitude, um propósito deliberado.

República Popular de Moçambique

Na imagem: os agentes signatários do Acordo de Lusaka (clique para ampliar)

Moçambique ascenderia à independência em 25 de Junho de 1975.

Pouco tempo antes, Samora Machel entrava no país, cruzando no norte a fronteira com a Tanzânia. Vinha acompanhado (ou tutelado) por Marcelino dos Santos.

O grupo que tinha ficado a rodeá-lo, em Dar-es-Saalam, desde o acordo com Melo Antunes reunia os elementos mais extremistas de declarada tendência pró-soviética.

A URSS havia trabalhado com eficiência e sem perda de tempo, desde que, em 1964, Mikhail Domogatskiy me anunciara a preocupação de recuperarem terreno sobre o avanço da influência chinesa.

Na impossibiilidade de dominarem as bases da "Frelimo" e de controlarem os militares que combatiam no interior do país, dirigiram a sua atenção para os elementos intelectuais com possibilidades de virem a exercer a decisiva influência. Constituiriam a minoria destinada a controlar as estruturas.

Marcelino foi o homem-chave que utilizaram. Este se encarregou de aliciar e doutrinar os demais.

Os homens mais prestigiosos foram progressivamente eliminados.

Filipe Magaya, chefe militar valoroso, foi abatido, com um tiro nas costas, quando atravessava um rio, no decurso de operações dentro de Moçambique. O assassino foi preso, mas nunca mais se ouviu falar dele. Diz-se que enlouqueceu, em Dar-es-Saalam, na cadeia.

Eduardo Mondlane, respeitado político de cultura e formação ocidentais, foi assassinado em ccondições que, singularmente, os posteriores dirigentes da "Frelimo" nunca se interessaram em investigar profundamente. O que se sabe é que o livro armadilhado foi entregue em sua casa por alguém que lhe deveria merecer a confiança de não hesitar em abri-lo. O crime não aproveitava aos portugueses.

Uria Simango, Padre Mateus, Lázaro Kavandame e Miguel Murupa tiveram de fugir da Tanzânia para salvarem as vidas. De todos, Só Miguel Murupa está em liberdade, na Europa. Os demais caíram em ciladas e encontraram-se em condições de não poderem, sequer, ser testemunhas perigosas.

Dentro de Moçambique, os comunistas organizaram o agrupamento dos "democratas" para minarem as estruturas e poderem opor-se a qualquer força política que surgisse no país.

Em Portugal, era preciso ocupar o poder governativo durante a fase activa da descolonização. Assim o fizeram.

A coordenação da jogada foi perfeita. Esse mérito tem de se lhes reconhecer.

O grupo marxista-soviético da "Frelimo" manteve-se, porém, em atitude discreta e só interveio para acelerar as negociações quando surgiu Melo Antunes como o enviado qua aguardavam. Até aí tinham apenas que retardar qualquer hipótese de acordo.

Existem elementos para afirmar que o próprio Samora Machel só passou a ser activamente trabalhado, no sentido doutrinário que lhes convinha, depois do acordo de 7 de Setembro de 1974. Até então, parece que não era efectivamente marxista. De outra forma não poderia ter enganado tão teatralmente o Dr. Kaunda que largamente o ultrapassa em cultura e experiência política.

Acontece, porém, que aqueles extremistas da "Frelimo" não contam no seu elenco qualquer negro prestigiado. Tinham que fabricar um. O mais fácil de produzir era Samora Machel e para isso beneficiaram dos meses que o tiveram ao seu exclusivo cuidado, enquanto a corrente nacionalista da "Frelimo" era enviada para dentro do país, onde a tentativa de organizar a independência os absorvia totalmente ante as dificuldades com que iam deparando.

Quando Samora Machel iniciou a série agressiva dos seus discursos e tomou atitudes revolucionárias intransigentes, pode dizer-se que houve surpresa geral. Surgiu a preocupação quando as declarações, os insultos e as ameaças foram crescendo ao longo da viagem. Possuo gravações directas que também me assombraram.

Com o zeloso ardor dos recém-convertidos, Samora Machel falava como quem aprendeu a lição de cor, mas metendo, por vezes, coisas da sua lavra sem se dar conta das monstruosas contradições doutrinárias evidenciadas.

Nos nacionalistas da "Frelimo" houve um movimento de agitação e nos países africanos que mais tinham apoiado a guerra de libertação esboçou-se quase incredulidade.

Joaquim Chissano voou apressadamente para Quelimane, onde Samora Machel tinha ultrapassado os limites da inconveniência, sabendo estar numa região que lhe era hostil. Chissano tentou explicar ao presidente as consequências da acção que estava a realizar. Segundo testemunho identificado, o choque foi quase duro, mas Chissano não conseguiu mais do que adiar a anunciada alteração do nome de Lourenço Marques. Nada ganhou com isso porque meses depois havia de se fazer essa modificação e para pior. Em vez de Cafumo chamar-se-ia Maputo, sem ao menos se atentar no ridículo a que tal nome se presta.

Ainda houve quem sugerisse que a capital passasse a denominar-se MONDLANE, em homenagem ao sacrificado fundador da "Frelimo". Samora Machel nem quis considerar isso e Marcelino dos Santos opôs-se violentamente, criticando as tendências anti-revolucionárias que se abrigam no culto das personalidades.

O nome de Mondlane não podia, obviamente, ser por eles aceite (ob. cit., pp. 347-349; 351-354; 357-363; 375-376; 381-383).

Continua