Foi uma tarefa gigantesca pôr a funcionar os hospitais deste país
Fernando
Vaz inicia a sua vida política fora de Moçambique, na Casa dos
Estudantes do Império, em Lisboa, na década 50. Como chega à Casa dos
Estudantes do Império?
Antes
de responder à sua pergunta, gostaria de agradecer este honroso convite
de poder participar neste seu programa de 50 anos da vida da Frelimo.
Considero este programa extremamente importante, porque consegue, de
cada um de nós, extrair aqueles pedaços da história deste país e da
história da Frelimo. Queria em seguida cumprimentar,
também, os telespectadores da Stv e pedir-lhes alguma tolerância e
paciência para ouvirem o pouco que tenho para informar sobre a minha
participação na criação da Frelimo e, sobretudo, no desenvolvimento
deste país. Relativamente à pergunta que me fez, bom, eu nasci em
Maputo, há 83 anos. Estudei aqui desde o ensino primário ao secundário.
Sou filho de pais que vieram de Goa há um século para Moçambique. Fiz o
ensino secundário e, como era bom aluno, fui premiado com uma bolsa de
estudo para fazer o curso de Medicina. Partimos em 1949, digo partimos
porque muitos de nós saímos naquela altura. É o caso do meu amigo da
escola primária Marcelino dos Santos, que partiu para Lisboa para fazer o
curso de Engenharia e muitos outros. O ponto de encontro
estratégico em Lisboa era precisamente a Casa dos Estudantes do Império.
Aquela Casa reunia não só os estudantes de Moçambique, como todos os
estudantes das ex-colónias do ultramar, como eles chamavam. A Casa dos
Estudantes do Império era, de facto, um viveiro, um alforge de líderes,
de intelectuais que conseguiram fazer avançar todos os movimentos de
emancipação das ex-colónias. É o caso do Eng. Amilcar Cabral, do Dr.
Agostinho Neto, do Dr. Mário Pinto de Andrade, enfim, era uma série de
gente de alto nível intelectual e todos envolvidos em movimentos de
libertação. Havia dois aspectos essenciais na Casa dos Estudantes do
Império: um deles era, de facto, o movimento libertador e de emancipação
dos povos das colónias; o segundo ponto tinha a ver com o derrube da
ditadura salazarista em Portugal.
E como é que se desenvolvia a vida política na Casa dos Estudantes do Império?
Bom,
a verdade é esta: nós os estudantes que vivíamos na Casa dos Estudantes
do Império tínhamos 24 horas por dia à nossa disposição. A nossa missão
principal era estudar, obter o melhor conhecimento possível. Mas já
imaginou estar numa grande cidade sem problemas de
manutenção e alimentação! Sobrava tempo para outras actividades lúdicas e
para a vida associativa e política. É evidente que a vida política,
muitas vezes, predominava em relação à vida académica e os
estudantes foram sempre contestatários. Muitos dos nossos colegas não
acabaram os cursos. Eu, felizmente, acabei o curso. Ainda fui presidente
da Casa dos Estudantes do Império e, de facto, aquela casa era,
extremamente, movimentada. Com uma agitação política muito grande,
desfavorável, a situação chegou a tal ponto que o governo português achou que devia encerrar.
Antes
de avançarmos para o assunto relativo ao encerramento da Casa dos
Estudantes do Império, gostava de perceber se este sonho ou desejo de
independência, na altura, na década 50, era algo que imaginavam ser
alcançável ou ainda era muito utópico?
Sim,
sempre sonhávamos com a independência de todas as colónias. A unidade
de pensamento entre todos foi sempre um factor decisivo. Desde que o
colono ocupou e iniciou o processo de colonização, houve sempre um
movimento de resistência, no sentido da independência. O povo
moçambicano sempre lutou pela sua independência. Evidentemente que
sempre que há uma ocupação surge um movimento contrário de expulsão
daquele que explora, neste caso o colono. Nós intelectuais assumimos
todo este pensamento que já vinha há séculos. Então, como intelectuais,
tínhamos essa obrigação de teorizar todo o sentimento de revolta e
desejo de emancipação dos povos que eram dominados.
Por
falar em revolta, a Casa dos Estudantes do Império foi sempre vista
como um centro de actividades subversivas não só contra a ditadura de
Salazar, mas também pela emancipação dos povos das colónias portuguesas.
Em que consistiam essas actividades subversivas?
Bom,
as actividades eram muitas. Como nós tínhamos, como disse
anteriormente, 24 horas sobre 24 horas por dia para nos dedicarmos a
outras actividades, e muitos de nós éramos também
presidentes das associações de estudantes nas diversas universidades que
frequentávamos, até conseguíamos ser dirigentes das federações das associações. Havia um movimento associativo enorme e, de facto, muitos de nós orientávamos as
actividades das associações e das federações associativas. Tínhamos um
papel muitíssimo importante na reivindicação, nas lutas estudantis, nos
protestos, na elaboração de panfletos, nas marchas, enfim. Sabe como é a
vida académica, é extremamente agitada e entregavamo-nos sempre com
muita coragem, muita determinação nestas actividades de reclamação...
E
como era a sua relação com a elite intelectual das colónias, caso de
Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, entre outros
moçambicanos que mais tarde chegaram à Casa dos Estudantes do Império,
como Joaquim Chissano, Sérgio Vieira e Pascoal Mocumbi?
A minha geração é anterior à dos camaradas Joaquim Chissano, Mocumbi e Sérgio
Vieira. Nós éramos mais velhos e, na verdade, a nossa relação era muito
boa. O Dr. Agostinho Neto era médico também, tirou o curso de Medicina
e, portanto, a relação era muito fácil. O Dr. Hélder Martins era a mesma
coisa. O Raposo Pereira fazia parte da direcção da Casa. Eram todos
dessa geração e dávamo-nos muitíssimo bem. Cada um tinha a sua secção
conforme a colónia a que pertenciam, mas havia sempre debates
, encontros, festas, animações e teatro. Havia de facto uma camaradagem
muito e muito grande. Os intelectuais têm um papel muito grande em
qualquer movimento contestatário. Eles conseguem teorizar e dar uma
dinâmica ao movimento revolucionário.
O
Governo colonial, através da PIDE, encerrou a Casa dos Estudantes do
Império. Consta-nos que teve um papel preponderante para a sua
reabertura. Por que razão fecharam?
É
preciso saber por que é criada a Casa dos Estudantes do Império. No
orçamento de funcionamento da Casa dos Estudantes do Império estavam
inscritas verbas dos orçamentos das respectivas colónias. a colónia de
Moçambique tinha no seu orçamento geral uma rubrica de financiamento da
Casa dos Estudantes do Império. O mesmo sucedia com Angola e outras
colónias. A Casa dos Estudantes funcionava de facto dessas verbas.
Evidentemente que o objectivo do governo português era controlar os
estudantes universitários, sem dúvida nenhuma. Eles sabiam
perfeitamente que a classe estudantil representava uma elite e seriam
os futuros dirigentes das colónias. Portanto, a intenção do governo era
controlar e sabíamos que a PIDE estava atenta a todos os nossos
movimentos. Nós conseguíamos publicar panfletos, feitos a stencil, e outros documentos. promovíamos
palestras e debates, mas a Pide tinha conhecimento. Tinham a sua
táctica. Houve uma determinada altura em que as coisas começaram a
agudizar-se e houve muita gente que teve que sair, por exemplo, o
camarada Marcelino dos Santos e muitos outros saíram do país,
exactamente, por pressão da PIDE. E então aproveitando uma não aprovação
em assembleia-geral das contas apresentadas pela Direcção-Geral fecharam a Casa dos Estudantes do Império durante 3 a 4 anos. É a minha geração
que entra em negociações com o ministério da Educação e do Ultramar,
pois eram estes dois ministros que controlavam a Casa dos Estudantes do
Império. Não foi fácil e houve necessidade de se modificarem os
estatutos. Passou a chamar-se Casa dos Estudantes do Ultramar. E passou a
haver uma direcção única sem secções. Então sou nomeado presidente da Casa dos Estudantes do Ultramar.
Mas em 1965 volta a ser encerrada...
Não
sei exactamente a data, mas foi novamente encerrada e foi criada uma
procuradoria dos estudantes, que já não tinha o carácter associativo, e
era controlada directamente pelo Governo. Era uma procuradoria que era
um departamento do Ministério da Educação. A seguir dá-se o grande êxodo
dos estudantes universitários das colónias...
Nessa
altura deixa Portugal e segue para Timor-Leste para prosseguir com os
seus estudos. Continuou envolvido na luta pela libertação de Moçambique?
Continuei
sempre ligado à Casa dos Estudantes do Império, até que depois 1958/9
entro para os hospitais civis de Lisboa como interno. E aquela vida dos
hospitais não permitia tanta participação. Quando a Índia
conquista os territórios de Goa a Casa dos Estudantes do Império não se
pronuncia contra este abuso, pelo contrário, acha muito bem, porque foi
sempre um movimento anti-colonial que presidiu ao pensamento da Casa dos
Estudantes do Império e é este um dos motivos do encerramento
definitivo da Casa.
Em
1970 retoma a Moçambique já formado em Medicina, especializado em
Cirurgia Geral. Em 1974, já no Governo de Transição, é nomeado
director-geral do Hospital Central de Maputo, que era uma unificação do
Hospital Miguel Bombarda e Hospital da Universidade. Como foi dirigir a
maior unidade sanitária do país numa altura muito conturbada, por conta
da saída dos quadros portugueses para a metrópole?
Diz
muito bem. Esse período do Governo de Transição e dos primeiros anos da
independência foi extremamente conturbado. Deve-se recordar que em 1975
a medicina foi nacionalizada e pouco depois foi publicada a lei da
socialização da medicina. O que é isto da socialização da medicina? O
governo entendeu que devia encerrar todas as clínicas privadas e
hospitais privados e todos os recursos da saúde deviam pertencer ao
Estado. O Governo decidiu que a saúde passaria a ser um direito do
cidadão e um dever do Estado. Esta foi a decisão que presidiu ao Governo
de Transição e ao primeiro governo de Moçambique independente. Isso
gerou uma contra revolução terrível. Primeiro com a saída de muitos
médicos, enfermeiros e outros técnicos, de modo que se fechou o hospital
da universidade porque já não havia médicos, porque a maioria deles
(professores) estavam ao serviço da Faculdade de Medicina e foram-se
embora. Além disso, aquele hospital era especial. Os hospitais
universitários são hospitais especiais. São hospitais de elite. O que é
que isto significa? Significa que só são admitidos ao hospital
universitário aqueles casos clínicos mais complicados; são admitidos
casos que servem de modelo de ensino para os estudantes; são hospitais
em que o doente fica mais tempo internado para permitir que os
estudantes aprendam; são hospitais especiais em que os doentes são
submetidos a exames complementares de diagnóstico para o aluno perceber
como é que se faz o diagnóstico. Enfim, há uma série de características
clínicas para se entrar nesse hospital. Havia um certo elitismo e isto
envolvia também questões raciais, de certo modo. Mas o que é certo é que
saíram todos os médicos e o hospital ficou sem pessoal técnico. Então
houve necessidade de recolher o que existia e transportar para o
Hospital Miguel Bombarda, criando-se o Hospital Central de Lourenço
Marques e depois de Maputo, por despacho do primeiro-ministro na altura,
o camarada Joaquim Chissano. E eu sou nomeado director desse hospital.
Foi uma tarefa muito grande fazer essa transformação e gestão. Se hoje o
Hospital Central tem 250 médicos, na altura tínhamos 30 a 40 médicos.
Esta
unificação do Hospital Miguel Bombarda e do Hospital da Universidade
fez do Hospital Central de Maputo uma unidade estratégica aliada ao
contexto da nacionalização dos serviços da saúde...
Passou
a ser hospital Central, de referência nacional não só assistencial como
universitária. Passou também a ser o hospital que ensinava os
estudantes de Medicina e essa tornou-se na grande dificuldade, aliada à
resolução dos problemas assistenciais. Havia que cumprir a orientação de
que a saúde era um direito do cidadão e um dever do Estado! Infelizmente, o grande peso caiu, pelo menos, na cidade do Maputo, no Hospital Central.
Com
a nacionalização da saúde, a mesma torna-se um direito do cidadão e um
dever do Estado, juntamente com a criação dos serviços nacionais de
saúde, o que é que isto significou em termos de qualidade de atendimento
à população?
Isto
é um problema delicado. O problema da qualidade sempre se põe em
qualquer acto médico. Agora, evidentemente que nós, mais velhos, somos
os mentores de exigência em termos de qualidade e, na verdade, devo-lhe
dizer que os serviços de saúde tinham muita qualidade. Os médicos que
ficaram no país depois da independência eram extremamente dedicados, não
tinham horas, não respeitavam horários e mesmo os estudantes de
Medicina dos últimos anos compartilhavam inteiramente nos serviços de
urgência do Hospital. Foi um movimento de solidariedade e de entrega
extraordinário. Foram momentos da minha vida dos mais agradáveis que
passei, embora tivesse de trabalhar de três em três dias à noite, e ter
que operar. Mas foi o espírito de solidariedade, de disponibilidade de
cada um que permitiu manter não só o nível assistencial como a qualidade
dos serviços prestados. Nessa altura, não há dúvida nenhuma que as
coisas melhoraram muito. Também não havia clínica privada, e todos
concentravam-se no Hospital Central.
Volvidos 37 anos após a independência, como é que olha para o serviço nacional de saúde?
Essa
é uma pergunta extremamente delicada de se responder. A socialização da
Medicina começou em 1975/6 e depois é reintroduzida a medicina privada
em 1989, e é interessante verificar o seguinte: as pessoas não
compreenderam que de facto estavam a usufruir dum benefício muito
grande, que era uma assistência de qualidade, gratuita, igualitária
(...) e é a própria população, em 1989, que exigi a medicina privada.
Portanto, são petições que são feitas à Assembleia da República exigindo
um atendimento personalizado; um atendimento sempre com o mesmo médico,
quer dizer, a relação médico-paciente passou a ser outra exigência.
E isso garantiu maior qualidade dos serviços?
Não
é maior qualidade. Qualidade não está relacionada com o atendimento
cuidadoso. A qualidade é outra coisa muito diferente. Agora, o que as
pessoas exigem é que, primeiro, sejam atendidas sempre pelo mesmo
médico; segundo, que esse atendimento seja uma amizade. Evidentemente
que depois tenha alguma qualidade. Agora, nós não conseguimos juntar
todos estes três factores. A medicina privada junta o atendimento
personalizado; o atendimento mais simpático, mais humano; cuidados
hoteleiros muito melhores; nunca há falta de medicamentos, enfim. São
aquelas pequenas nuances que de facto fazem a uma medicina aceite pela
população. Quanto à qualidade, isso é completamente diferente.
Os
primeiros anos da independência coincidem com uma guerra que se
prolonga por 16 anos, deixando um saldo de 1 milhão de mortos e perto de
4 milhões de refugiados. Como era a resposta do SNS nessa altura?
É
importante saber que apesar de todos os problemas tivemos, conseguimos
crescer. O PIB cresceu; a população estava mais satisfeita; havia mais
aceitação; havia mais solidariedade, isto é muito importante, mas, de
facto, a guerra de desestabilização rebentou com o país e há pouca gente
que passados estes anos se pode aperceber o que foi a tragédia da
guerra de desestabilização. Como referiu, um milhão de mortos, mas não
foi só isso. Foi a destruição total das nossas infra-estruturas,
fábricas, sobretudo estradas, meios de transporte, hospitais rurais
destruídos, centros de saúde e maternidades destruídos, enfermeiros
mortos. Foi uma guerra implacável, de destruição. Por isso, o Presidente
Samora dizia sempre: “esta guerra é feita por bandidos armados”, pelo
método de combate, pelos objectivos de destruição, que de facto se
apelidou por guerra de desestabilização.
No auge dessa guerra ocupou a pasta de vice-ministro da Saúde e depois de ministro da Saúde
Durante
o meu reinado com ministro e vice-ministro da Saúde toda a nossa
actividade era dominada pela guerra de desestabilização. Nós éramos como
bombeiros que andavam a apagar fogos onde eles surgiam. Os problemas
que surgiam eram por causa dessa guerra de desestabilização. Não
conseguíamos estabelecer um programa fundamental, por exemplo. O
Ministério assenta os seus programas lá na periferia. Programas de saúde
pública; programas de vacinações; programas de abastecimento de água,
com abertura de poços; programas de saúde materna-infantil, com apoio
das mães e das crianças; programas de saneamento do meio; programas de
educação sanitária (...). portanto, todos esses programas periféricos,
que eram a nossa sustentabilidade, a gente não conseguia fazer.
Era inevitável que esta guerra fosse prolongada ou o governo tinha como torná-la mais curta?
Nunca
pensei nisso. Mas quando se verificou que a destruição era demasiada,
que economicamente o país estava a tornar-se inviável, quando se
verificou que tínhamos grandes dificuldades em produzir e exportar,
quando se verificou que as nossas fábricas estavam fechadas, que as
nossas estradas não funcionavam, os caminhos-de-ferro não funcionavam, o
país começou a paralisar-se e foi nessa altura, não havia outra
solução. E esse foi o objectivo principal da guerra de desestabilização.
Aqueles que patrocinavam a guerra de desestabilização apostaram dizendo
que o governo vai cair de joelhos e então vai-se render. Na verdade, a
destruição foi de tal ordem que depois esqueceu-se de dizer que 4
milhões de pessoas refugiaram-se nos países vizinhos. A economia, a
agricultura, ficou tudo paralisado. Não era possível pôr a funcionar um
país desta forma. A solução foi iniciar as negociações de paz (...).
mudámos, transformámos a economia em economia de mercado; fizemos uma
sociedade multipartidária.
Fernando
Vaz foi médico-assistente do presidente Samora Machel, um homem forte,
aparentemente saudável. Como era Samora Machel na relação
médico-paciente?
Bom,
eu não sei se sabe que o Presidente foi enfermeiro no Hospital Miguel
Bombarda e sempre teve uma óptima relação com os médicos. Era uma
relação profissional. Samora respeitava muito a profissão;
respeitava muito a qualidade e respeitava muito a saúde dos seus
doentes. E esses aspectos sensíveis na personalidade de Samora levaram a
que o Presidente tivesse sempre um carinho especial pela saúde e
tivesse um carinho pelos programas do Ministério da Saúde. Portanto,
evidentemente, eu fui cirurgião do Hospital Miguel Bombarda desde 1970
até 1974. Ouvia falar muito de Samora. Ele convidou-me a ir a
Dar-es-salaam, onde nos conhecemos melhor. Conversámos muito e ele tinha
uma relação muito íntima comigo. Desenvolvemos uma relação não só por
eu ser médico, mas sobretudo por conhecer toda aquela orgânica do
Hospital Miguel Bombarda e, sobretudo, por querer participar na
reconstrução do novo país. Este é que foi o grande motivo que nos levou a
aderir a toda esta acção movida pela Frelimo, na altura.
Acompanhou de perto o acidente de Mbuzini. Partilha da tese de que o avião foi abatido pelo regime do apartheid?
Infelizmente, eu acompanhei de perto, muito de perto todo este problema do acidente de Mbuzini. O
Presidente estava para chegar no dia 19 à noite, cerca das 19h00, mas
não chegou. Estávamos todos no aeroporto e, na verdade, a primeira
reacção foi de espanto, dúvida e interrogação, porque não tínhamos
nenhuma informação concreta da rota do avião. O avião entrou em contacto
com o Aeroporto como toda a gente já sabe, está escrito em montes de
livros, jornais. O controlador do tráfego aéreo entrou em contacto com o
avião e dizia que em quatro ou cinco minutos iam aterrar, mas não se
sabia qual era a rota do avião. Esta foi a primeira tragédia. Ficámos
toda a noite à espera duma informação e só às cinco da manhã temos
a informação de que o avião tinha caído ali perto em Mbuzini, perto da
fronteira, quando nós pensávamos que o avião tinha caído na Baía da
Manhiça. . Depois sou indicado para ir ver os companheiros que se salvaram e estavam internados na África do Sul. Tive
primeiro que ir ao hospital de Nelspruit e depois então fomos ao sítio
onde tinha caído o avião. Agora, quanto à sua pergunta, bom, essa é a
grande dúvida, que tem motivado muitas opiniões, muitas publicações de
livros, e com grandes pontos de discórdia. Evidentemente que temos
muitas dúvidas em aceitar que foi falha humana.
Esteve na identificação do corpo de Samora em Mbuzini. Com que impressão ficou do acidente?
Quero
dizer-lhe que esse espectáculo foi o pior que assisti na minha vida. Já
assisti a muitos, infelizmente, na minha vida de médico. Com a guerra
de desestabilização assisti a muitos e muitos crimes colectivos, desde
desastre de Inhagónia às mortes que me chegavam no hospital vítimas de
assassinatos, enfim, é indiscritível. Mas este desastre de Mbuzini foi
das coisas mais chocantes da minha vida. Ali morreram uma série de
amigos íntimos, a começar pelo Presidente, fora os ministros todos que
estavam no avião. Agora, com que impressão fiquei, posso afirmar,
categoricamente, que o Presidente faleceu imediatamente ao acidente.
Teve um traumatismo grave, crânio-encefálico torácico, que deve ter
levado à morte imediata.
Negociou
na altura com o governo sul-africano para que a autópsia do corpo de
Samora acontecesse em Moçambique. Entretanto, identificou-se no local
que tanto o corpo do Presidente Samora Machel, quanto de outros quadros
tinham cortes ou golpes no pescoço. O que isso suscitou na altura?
Bom,
primeiro, entrámos em negociações com o governo sul-africano. Isso é
verdade. Quando acontece um acidente com mortes num país estrangeiro, a
responsabilidade, sempre, na identificação da causa de morte é do país
onde a morte deu-se. Portanto, os nossos compatriotas morreram em
território sul-africano e era da responsabilidade do governo
sul-africano a identificação das causas de morte e só depois é que
poderíamos transladar os corpos para Moçambique. Então eu sabia dessa
lei e informei o Senhor ministro da Segurança, que era o camarada Sérgio
Vieira, e fomos discutir com o ministro dos Negócios Estrangeiros da
África do Sul que estava no terreno, no sítio do acidente, Peter Botha, a
possibilidade de transferirmos pelo menos algumas das individualidades
mais importantes e marcantes do nosso governo para Maputo e depois nos
comprometeríamos a não tocar nos corpos enquanto não vier uma equipa de
anatomopatogistas sul-africanos, para conjuntamente com connosco fazerem
as autópsias. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Peter Botha,
aceitou. E é então nessa altura que nós, já no fim da tarde,
transportámos o corpo do Presidente e de alguns ministros num
helicóptero e aterrámos em Maputo (...) . Esperámos pela equipa
sul-africana de anatomopatogistas e fizemos as autópsias. Eu era o chefe
da missão moçambicana e, conjuntamente, com a equipa sul-africana
fizemos autópsia do Presidente e mais três ou quatro membros do Governo
importantes. Agora, quanto a esses golpes de que fala, não sei como é
que tem essa informação, essa é uma informação um pouco delicada. Na
verdade, verificámos isso. Foi em três ou quatro corpos. lembro-me que
foi num dos corpos do médico cubano; também houve uns cortes nos
elementos da tripulação, não só os soviéticos como também na tripulação
de bordo. Mas esse golpes tinham sido executados nos corpos enquanto
cadáveres, possivelmente para colher sangue para análise de álcool e de
outros produtos que possam existir. É verdade que isso motivou um certo
protesto de algumas embaixadas, nomeadamente a Embaixada de Cuba, mas
que nós explicámos que isso tinha sido feito depois de morte e ficou
registado nos relatórios de autópsia. Como sabe, esses relatórios estão
na posse da nossa segurança e da África do Sul.
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