O líder da Renamo, Afonso Dhlakama, diz ser tratado como escravo num país onde ele introduziu a democracia. Na
entrevista à RTP, que, a seguir, passamos a transcrever, Dhlakama
reitera a ideia de manifestação e considerar o MDM como “um grupo de
rapazes gananciosos”.
Disse, quando se transferiu para o mato, que queria estar mais perto do povo sem voz. Conseguiu?
Com
certeza. Nampula (...) é a base eleitoral da Renamo. Eu sei que muitos,
quando vim cá em Janeiro de 2009, não entendiam quase nada. Pensavam
que eu estivesse a estranhar Maputo, a capital. Desde que a guerra
acabou, já completámos 19 anos, sempre estive em Maputo. Só que depois
de ter visto a situação em Moçambique, achei que era bom, de facto,
deslocar-me de Maputo para estar mais próximo do eleitorado.
O que sente nesses contactos? O que lhe dizem as pessoas?
O
povo está muito satisfeito. Há muita coisa, em particular aqui em
Nampula, que já mudou, porque os outros sentem que Dhlakama está em
Nampula e já tentam fazer coisas melhores para dar a entender que não é
só Dhlakama que sabe fazer, eles também sabem. Não é só o povo de
Nampula, mas também da Zambézia, Sofala, Manica e por aí. Isto leva
também o Governo a pensar mil vezes que Dhlakama, no centro e norte do
país onde é muito apoiado, talvez esteja a preparar qualquer coisa, como
um golpe, etc. Essa é forma de persuasão que faz com que o Governo
comece a fazer, um pouco, boas coisas no centro e norte deste país. Eu
acho que são ganhos para as regiões centro e norte.
Então, isto tem sido pressão para a descentralização do poder?
Exactamente!
Tudo era feito em Maputo. Ultimamente, continua a ser assim, mas vê-se,
paulatinamente, o cuidado dos nossos irmãos do Governo porque, de
facto, a minha presença cá no norte está a fazer com que algumas coisas
sejam mudadas em benefício dessas populações. Não posso aqui dizer
concretamente, mas o ambiente está cada vez mais a mudar, porque o
Governo tem medo que, de facto, eu esteja a influenciar a população do
centro e norte.
O
facto de Nampula estar a ser alvo, tal como outras províncias desta
zona, de tanto crescimento económico e também o grande crescimento
populacional destas zonas influenciaram – estes dois factos – esta sua
decisão?
Quando
se fala de Moçambique, em tudo, estamos a falar do centro e norte. Eu
sou do centro, mas não decidi estar no centro porque daria razão aos
nossos irmãos do Governo de me atacarem, talvez por serem regionalistas
(...). Eu não sou do norte, mas, por isso mesmo, vim cá e ninguém pode
acusar-me. A acusação só pode ser partidária, pois o norte, de facto,
está mais ao lado de Dhlakama e da Renamo, porque querem mudanças.
Ninguém pode apontar-me o dedo, dizendo que vim viver junto aos
familiares, porque não sou do Norte, sou do centro.
Está
a milhares de quilómetros de Maputo e da Assembleia da República.
Enfraquece os argumentos da Renamo o facto de o líder da oposição não
ser deputado?
Não,
pelo contrário. Como eu não sou deputado da Assembleia da República
(AR), continuo de longe a dar orientações lá. Não preciso de estar,
todos os dias, a orientar à bancada da Renamo, seja a partir de Nampula
ou de qualquer parte de Moçambique, porque existe o plano e estratégia
da bancada da Renamo para discutir com a Frelimo na AR. Portanto, a
minha ausência de Maputo não tem nada que ver com aquilo que está a ser
discutido na AR.
A Renamo tem apostado numa estratégia, na Assembleia, para se constituir como uma oposição credível?
Nós
já provámos isto (...). Aliás, queria dizer que o número de assentos
foi diminuído, porque aquilo que temos hoje como oposição na AR não
representa a força da Renamo. Já tivemos 120 deputados; já tivemos 117;
já tivemos 90. Agora, a Frelimo reduziu-nos para 51. Mas mesmo assim, em
termos de estratégia de programa de governação, tendo em conta aquilo
que nós somos em Moçambique, em temos de democracia, desenvolvimento,
justiça e liberdades, quando um representante da Renamo apresenta na AR
os nossos argumentos, a população entende que, de facto, este partido é
que está próximo dela. Não em termos eleitorais apenas, mas a maneira de
governar o povo. O que é governar? É como se fosse um negócio: votem em
mim porque vou criar boas escolas para os seus filhos; votem em mim
porque as estradas vão ser melhoradas; votem em mim porque a justiça vai
estar perto da população; votem em mim porque a pobreza vai
desaparecer, haverá emprego para a juventude; votem em mim porque o
senhor vai sentir-se moçambicano. Hoje, toda a gente sente-se da
Frelimo. Se alguém não é da Frelimo, não é moçambicano. Vou dar um
exemplo: eu não sei por que os moçambicanos estudam, doutoram-se, são
engenheiros, agrónomos, médicos, etc., se não são deixados exibir suas
capacidades académicas e intelectual? Tudo é feito só com a vontade da
Frelimo. Quer dizer, alguém licencia-se, mas quando é funcionário da
Administração Pública não pode continuar como académico. Automaticamente
deve passar a ser do partidário Frelimo.
Está a acusar a Frelimo de partidarizar...
Não
é acusar, é uma realidade. Já não é acusação, publicidade ou
propaganda. É uma realidade em Moçambique. Para alguém ser promovido a
comandante da polícia, é preciso que, em primeiro lugar, aceite
preencher a ficha para ser membro da Frelimo; para ser professor do
ensino primário é preciso, em primeiro lugar, ser membro do partido
Frelimo; para ser parteira numa aldeia lá fora, é preciso que seja
membro do partido Frelimo.
É
por isso que as coisas não podem andar. Se um intelectual não quer ser
político, mas é obrigado a ser político, esquece o profissionalismo que
ele estudou, a prioridade de servir o povo, porque é obrigado a servir o
partido Frelimo. Quando é que vai servir o povo? É por isso que quer a
educação, quer a saúde como os serviços sociais não funcionam, porque
tudo é partidarizado.
Quando diz que a Frelimo roubou ou subtraiu mandatos à Renamo, o que quer, efectivamente, dizer?
Eu
não estou a fazer uma acusação descabida, nem quero aproveitar a RTP
África para fazer um pronunciamento sobre isto. Aliás, há testemunhas
até europeias e americanos. Se forem a Portugal e perguntar àqueles que
já foram observadores em nome da União Europeia em Moçambique, poderão
testemunhar, a partir das primeiras eleições, em 1994, 1999, 2004 e
2009, também em todas as eleições autárquicas, que nunca tivemos
eleições transparentes em Moçambique. Mas alguém pode dizer que Dhlakama
quer justificar a derrota. Não é! Qualquer partido, quando perde porque
perdeu, tem que mudar as tácticas e preparar-se para as próximas
eleições. Mas não é o que se passa em Moçambique, onde a Frelimo nos
rouba oficialmente. Digo isso porque um simples roubar é o que se passa
noutros países: fazer desaparecer um boletim de voto, cinco votos. mas é
isso o que acontece cá. Temos uma lei eleitoral que foi aprovada na AR,
defendida pela maioria da Frelimo, cujo artigo 85 preconiza que se
contam os votos que forem encontrados dentro da urna. Isso significa
que, mesmo havendo eleitores numa assembleia de voto, se um partido
conseguir introduzir votos e apanhar 45 mil votos, são considerados
válidos. Quem está a defender esse artigo? É crime! É incrível que a
União Europeia, os americanos, amantes da democracia, estejam a
acreditar que num país africano como Moçambique aconteça isto. Mas
quando Guebuza, Chissano ou outro qualquer proclamam vitória falsa,
explicamos que andaram a encher as urnas. E pode dizer-me, senhora
jornalista, que fazem enchimento onde a Renamo está presente. É verdade,
mas é que a polícia defende a Frelimo. Temos o chamado Secretariado
Técnico de Administração Eleitoral – STAE –, que é um órgão técnico que
ajuda a Comissão Eleitoral de Eleições – CNE. Segundo os critérios da
Frelimo, quem está nessa Administração Eleitoral são todos membros da
Frelimo, alegando que são funcionários do Estado. A Frelimo diz: não
podemos partidarizar o STAE. Não podemos colocar membros dos partidos.
Só que, por natureza, o Estado em Moçambique é o partido Frelimo. Como
disse, ninguém pode ser funcionários público sem que tenha cartão do
partido Frelimo. O que isto significa? Que quem organiza, decide,
recenseia diminui os mandatos, roubar votos e prepara boletins é o
partido Frelimo. A Frelimo decide quantos deputados quer e mete por si. E
os nossos fiscais, quando descobrem e reclamam na mesa de voto, os
presidentes de mesa, também oriundos da Frelimo – uma vez que mesmo
concorrendo os nossos membros não lideram as mesas de voto – são
instruídos que não pode haver nenhuma mesa onde a Frelimo perca. É
preciso meter votos a favor da Frelimo, e metem. Se alguém da Renamo
reclama, eles chamam a polícia que, ao invés de prender o ladrão, prende
o homem da Renamo ou de outro partido, que vai ficar na prisão até ao
fim da votação.
Tendo em conta este contexto e o quadro que aqui traçou, quais são os objectivos da Renamo a curto, médio e longo prazo?
Atendendo
tudo isto de que estamos a falar e que já não é Dhlakama que está a
reclamar, mas o povo moçambicano que quer mudanças e que também tem
vontade de votar e ter um presidente legitimamente eleito, chego à
conclusão, como moçambicano, de que já fiz o que fiz. Passados 19 anos
de sacrifício desde que a guerra acabou a 4 de Outubro, nunca procedemos
mal contra a Frelimo, nunca fizemos recuar investimentos como fazem
outras oposições criadas, porque nós entendemos que era bom deixar a
Frelimo fazer brincadeiras, mas também para termos uma imagem da paz. Eu
acredito que os europeus, quando metem biliões de meticais, não é
porque há boa governação, mas porque há o calar das armas.
Eles não sabem que há um partido, há um líder que sofre. Eu sou tratado
como escravo, mas nunca reagi contra o governo da Frelimo. Agora, em
nome da democracia e do povo de Moçambique, depois das últimas eleições
de 2009, eu declarei não reconhecer os resultados. Por exemplo, como
fiquei em segundo lugar, de acordo com a Constituição da República,
devia ser membro do Conselho do estado, mas não fui tomar posse, porque
estaríamos a legitimar coisas que não podemos. Eu não reconheço as
instituições que foram constituídas na sequência dos resultados das
últimas eleições. Quando me pergunta qual é a estratégia, a resposta é
simples: é a revolução pacífica. Nós queremos fazer manifestação.
Queríamos fazer desde Outubro deste ano, mas estamos a demorar um pouco
porque queríamos convencer Guebuza e seu Governo a um diálogo. Somos
irmãos. Há um problema dentro da casa e vamos sentar. Quem tem a sua
razão coloca no papel.
Qual é a sua relação com o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), que acabou por agregar alguns ex-quadros da Renamo?
Eu
não gosto de desprezar os partidos, porque lutei pela democracia
multipartidária, mas quando é um partido que aparece como um partido
entre aspas, não perco tempo. Para mim, falar do Movimento Democrático
de Moçambique (MDM), falar com Lutero ou com Daviz é como se estivesse a
falar sozinho. Estou a falar sozinho e não é desprezo nenhum.
Mas já apoiou Daviz Simango
Não,
não. Quer dizer, estamos a dizer que não desprezamos partidos, mas se
alguém nos coloca um assunto nacional para resolvermos e pergunta-me a
respeito do MDM, é como se estivesse a falar sozinho ou
com o meu filhinho em casa. Então, não perco tempo porque o MDM, para
mim, não é um partido. É um grupo de rapazes que se enganaram, que
pensavam que iam receber biliões, bicicletas e que agora todos estão a
regressar, porque não é nada. Temos que resolver assuntos do país com a
Frelimo que está a governar e que está a criar problemas. Não temos nada
a ver com o MDM.
Considera que a política moçambicana tem sido prejudicada pelas ambições pessoais de alguns políticos no activo?
Com
certeza. O problema de Moçambique é que as pessoas confundem democracia
com o que não é democracia. É preciso que as pessoas tenham coragem de
chamar a democracia pelo seu próprio nome e realizar a democracia. Eu já
disse que tivemos várias eleições, mas que todas elas nunca foram
transparentes. Não é segredo. Não é Dhlakama que está a dizer. Se
perguntar a um académico qualquer, em privado, ele vai confirmar isso
que estou a dizer. Mas se estiver com um jornalista moçambicano, esse
académico pode temer represálias. Aconselho que, antes de voltar a
Portugal, fale com reitores, com professores universitários, do ensino
secundário, com médicos, em privado. E vai confirmar tudo o que estou a
dizer. Eu, como líder, como político, não me interessa estar aqui a
fazer propaganda sobre o que não posso justificar. Mesmo que publique
esta entrevista na íntegra em Portugal e os portugueses chamarem-me para
testemunhar o que eu disse em Nampula, nenhuma vírgula irei retirar,
porque estou convencido do que estou a dizer.
Ficou surpreendido com o último Índice de Desenvolvimento Humano?
Fala-se
muito de Desenvolvimento Humanos e Desenvolvimento Económico. Mas isto é
mais publicidade. O que é Desenvolvimento Humano? Se um ser humano em
Moçambique é refém da Frelimo, como é que vai desenvolver-se? Ninguém
pode propor ou dizer o que sente porque é um inimigo. Como eu disse no
início, se você não for membro da Frelimo, não pode fazer negócios, nem
pode sentir-se moçambicano. Então, nunca podemos falar em
Desenvolvimento Humano quando as pessoas são obrigadas a entrar na
prisão, que é o partido Frelimo. Os partidos são como o casamento. Uma
senhora não deve casar-se com um homem por obrigação, porque o mesmo
pode matá-la, ou porque vai reduzir a sua liberdade, como se passa cá em
Moçambique. Tudo o que está em Moçambique é ad hoc (...). Eu estou
muito preocupado com o futuro de Moçambique, não como Afonso Dhlakama
que pretende ser presidente de Moçambique. Estou preocupado porque lutei
pela Democracia. Esta Democracia faz parte do meu sacrifício de 16
anos.
E o senhor desistiu do sonho da presidência...
Como
político, os membros e o povo querem que eu seja presidente, mas há
alguém que, através do roubo, está a dizer que não posso. Mas não é a
preocupação. Veja só que, naquela altura, 1975, 1976, 1977, a Frelimo
era temível e ninguém poderia enfrentá-la e vencer, mas nós, jovens,
dissemos à Frelimo que não! Que a independência não significa isto.
Vocês estão a fazer pior que o colonialismo e não pode ser. A
independência deve ter o seu significado, não apenas tirar a bandeira
portuguesa e içar a da Frelimo. Queremos a democracia multipartidária, a
liberdade e conseguimos. Pelo menos obrigámos a Frelimo a acabar com a
lei da pena de morte. Foi preciso lutar. Obrigámos a Frelimo a acabar
com o controlo da circulação em Moçambique através do sistema de guia de
marcha, sem a qual as pessoas não podiam andar. Isto acabou. As nossas
mães e irmãs eram levadas para campos de reeducação, onde
eram enterradas vivas ou mortas, acusadas de serem traidoras da
revolução, mas também acabámos com isto. As pessoas em Moçambique viviam
em aldeias comunais, prisões forçadas. Ninguém podia pensar ao
contrário do pensamento da Frelimo. Ainda falta muito, mas para quem
conheceu Moçambique em 1975, 1976, percebe agora que a página já é
outra. Naquela altura, não podia colocar um relógio lindo, era
perguntado onde comprou e era preso. As pessoas iam ao campo de
reeducação porque se vestiam bem. Mas quem acabou com essas brincadeiras
todas foi a Renamo com Dhlakama. Eu dirigia a luta, portanto, isto é
mérito e é muito para o povo. Mas eu gostaria que os moçambicanos
tivessem mais do que isso. Que se sentissem moçambicanos, não apenas o
Dhlakama que lutou pela democracia.