O
escritor Mia couto deu, em Portugal, uma entrevista onde falava da
necessidade de “revolta”. Esta chegou a Maputo e foi alvo de várias
interpretações. A “O País” Mia diz que o seu discurso foi tirado do
contexto.
Um
discurso que teve várias interpretações – “É preciso sair à rua, é
preciso revoltarmo-nos, é precisa esta insubordinação”- saiu de uma
entrevista dada por Mia Couto em Portugal. Em Maputo, encontramo-nos com
o escritor e, ao falar do que marca o mundo, desde a crise mundial,
passando pela democracia moçambicana, “primavera árabe”, prendemo-nos
também na explicação dessa entrevista vista como incentivo à violência.
Para Mia Couto, as palavras repetidas foram tiradas do seu contexto. No
entanto, diz que a manifestação é um direito garantido pela
constituição. Mas esta entrevista começou pela crise.
Falha do sistema
Quando
as primeiras notícias sobre a crise económico-financeira surgiram,
correntes positivistas, compostas também por alguns membros do
executivo, acreditavam que Moçambique passaria ao lado dela. Não andamos
distraídos em relação a esta crise?
Noto
que, enquanto muitos governos na Europa estão a ter a tendência de
contenção de despesas, reduzindo ao máximo aquilo que são despesas
públicas, por exemplo, o número de vereadores, o número de câmaras, de
distritos, nós estamos a fazer o contrário. Estamos a
aumentar o número de instituições públicas. Provavelmente, vamos ter que
pagar o preço disso mais tarde. Quanto à ideia de que poderíamos passar
ao lado da crise (...), é preciso referir que não existe “ao lado” no
mundo actual. pertencemos todos ao mesmo sistema e isso vai ter que ser
contabilizado.
Uma
notícia publicada no “Mediafax” indica que, entre 2003 e 2009,
Moçambique recebeu e gastou 10 biliões USD em ajuda externa, enquanto a
pobreza aumentou de 54,1% para 54,7%. Será que sabemos o que fazer com
tanto dinheiro ou estamos ainda à procura de um rumo?
Acho
que há uma cautela em vários níveis do Governo. É evidente que quem
recebe dinheiro tem pouca consciência sobre o valor e sobre o que isso
significa e que algum dia isso tem que ser pago. Os assuntos entre
amigos podem passar, mas os países, os governos e instituições bancárias
não são amigos de ninguém. Portanto, isso que parece ser dado não é bem
assim, não há nenhuma generosidade.
Para
que sociedades estamos a caminhar perante esta crise, que se torna uma
característica de diferentes países tanto na Europa como em África?
Não
vejo a crise só do lado negativo. Acho que esta crise é sinal que
mostra que alguma coisa está a quebrar-se, está-se a partir de um modelo
que devia ter sido questionado mais cedo. Porque este modelo, que
parece capaz de resolver os problemas do mundo, teria que ser posto em
causa. Queríamos ter tido a capacidade de interrogar criticamente onde é
que este modelo nos serve. Agora, parece sermos obedientes, bons
rapazes ou bons alunos deste modelo, mas, provavelmente, há limites
neste formato de fazer economia e de fazer administração. penso que é
isso que não se está a mostrar. E, a crise é necessária do ponto de
vista de que, por vezes, é preciso chegar ao fundo para depois perceber como é que vamos olhar alternativas e escolher opções.
Quando fala de modelos, neste caso, refere-se ao modelo económico, mas, por vezes, questiona-se...
...
e faz-se muito bem em questionar. Acho que esse pôr em causa, muitas
vezes, é olhado como uma atitude negativa do inimigo. Mas esse pôr em
causa é saudável, há um assumir de um olhar crítico sobre aquilo que é
importante porque, de repente, estamos a pensar no nosso país sobre um olhar de alguma coisa que foi construída fora, sobre pressupostos que são cultura e politicamente distintos.
Obama e indignados
Queríamos também nos referir ao modelo político que começamos a adoptar quando fala da necessidade de questionar. Falhamos também no modelo político? O capitalismo continua a melhor via ou precisamos de recuar para encontrarmos outro rumo?
Acho
que a dificuldade - pertencendo ao mundo e estando sujeito a normas que
são ditadas a partir de fora, como outros países – é de fazer uma ilha,
uma espécie de modelo único. Eu não sei como se chega lá. O que sei é
que este caminho é perigoso, mesmo que a gente esteja a fazer bem e
mostre competência, tem limitações provadas a nível mundial. Portanto,
uma das grandes injustiças deste modelo neoliberal é a forma como o
cidadão se tornou refém daquilo que são falhas de sistemas, como o
bancário, em que somos chamados a pagar com altos preços por crises
instaladas por forças que enriqueceram e vão continuar a
enriquecer e que não são postas em causa. É um sentido de injustiça
profundo. Estou a falar como cidadão e escritor, mas o próprio
presidente Barack Obama, durante as manifestações de ocupação de Wall
Street, aceitou que havia ali um sentido ético de injustiça naquela
gente - que se sentiu frustrada e enganada - a quem se pedem sacrifícios
e aponta dedo para os outros que nunca se sacrificam e dão volta por
cima.
Faz
aqui uma referência ao discurso de Barack Obama e Mia Couto lançou “Se
Obama Fosse Africano?”. Passados esses anos todos e olhando para a
expectativa que se tinha criado com a eleição de Obama, principalmente
em África, ainda se tem nele a mesma imagem de salvador que havia?
Nunca
tive essa expectativa. Só tomei a eleição de Obama como um facto contra
um edifício de racismo que estava instalado nos Estados Unidos. O facto
de um homem negro nos Estados Unidos ter sido eleito presidente acho
que é uma coisa que devemos saudar no mundo todo. Agora, sabendo que
esse homem, qualquer que fosse sua raça, iria defender os interesses dos
Estados Unidos, em qualquer conflito entre os interesses
norte-americanos e os africanos ou asiáticos etc., seria uma grande
ingenuidade pensar que ele defenderia os interesses de África. Ele é
americano. Até sou um pouco crítico em relação àquela denominação
“afro-americano”, como se ele tivesse um pé cá e outro lá, ele tem os
dois pés lá. O facto de ter uma certa raça não faz com que ele seja
menos americano.
A entrevista de manifestações
Quando
aparece a dar entrevista fora do país, o seu discurso é alvo de várias
interpretações. Agora questiona-se a sua entrevista onde diz ser
necessário que as pessoas se manifestem. Como é que vê a reacção que
essa entrevista provocou em Moçambique?
Houve
uma falha por se ter reproduzido uma declaração minha fora do contexto
em que ela foi pronunciada. Fui entrevistado durante a minha estadia na
Europa por uma agência noticiosa portuguesa, que me perguntou sobre o
movimento dos indignados. Esse dia era de um movimento internacional em
que jovens indignados saíram à rua manifestando-se contra injustiças do
sistema bancário, entre outras injustiças que se manifestam em todo o
mundo. Perguntaram-me se apoiava esta ideia de jovens saírem à rua e
manifestarem-se, mostrarem a sua opinião, e eu respondi que sim, que
eles não deviam resignar-se, que deviam sair à rua e que deviam
manifestar-se. Acho que aquelas manifestações são ordeiras, pacíficas.
Há uma ou outra que degenerou mal por causa de um confronto. Mas, no
geral, foram manifestações ordeiras e pacíficas. Eu sou a favor que
essas manifestações possam realizar-se quando são vontade da sociedade
em que elas ocorrem. No caso de Moçambique, sou contra manifestações de
violência, sou contra manifestação que ocorreu em Setembro, sou contra
manifestações que, agora, alguns políticos anunciam como trampolim para
chegarem ao poder. Fazem manipulação daquilo que são sentimentos das
pessoas para, depois, cavalgarem acima disso e tirarem vantagens
pessoais. Mas acho que manifestação é um direito que o cidadão tem em
Moçambique, é uma garantia dada pela constituição. portanto, não estou a
fazer um discurso à margem da lei. Sendo um direito constitucional,
essas manifestações são legais, como acontece, por exemplo, com os
“madjerman”, que se manifestam todas as quarta-feira já há anos e a
polícia protege-os. É uma aprendizagem, é um exercício de democracia.
Acho que o grave é uma sociedade impedir manifestação como acontecia nos
países do norte de África, onde se bloqueia e se julga que qualquer
manifestação, mesmo que seja legal e pacífica, é uma obra de diabo. O
que vai acontecer é uma grande manifestação que resulta na quebra total
do sistema. Felizmente, Moçambique não é assim, é um país que permite
manifestação. Então, é esse tipo de coisa que estava a saudar, esse tipo
de expressão cívica, de cidadania construtiva e positiva.
Pouco
depois da sua entrevista e do movimento dos indignados, aconteceu, em
Maputo, a manifestação dos desmobilizados. Sentiu uma tentativa de
aproveitamento do seu discurso para legitimar essa manifestação?
Quando
saí de Moçambique, não havia ainda essa manifestação dos desmobilizados
e nem eu tinha algum contacto com isso. Portanto, não havia nenhuma
ligação entre essa ou qualquer outra manifestação que estivesse a
ocorrer em Moçambique. Eu não estaria a encorajar nem a fomentar nada.
também não tenho esse poder e nem quero ser aproveitado. Não quero que alguém use minhas palavras como um trampolim ou uma caução para
qualquer coisa. Qualquer coisa que quer força política, que quer usar
manifestação para um propósito de ordem política de violência, derrube de sistema e de instabilidade, sou absolutamente contra.
Referiu-se
às manifestações do Norte de África. Acreditava-se que daquela parte do
continente surgia uma mensagem para outros políticos e líderes
africanos. Chegámos ao “fim da história”, como diria Fukuyama?
Acho
que a história está no princípio sempre. O que julgo ter acontecido nos
países do Norte de África é aquilo a que chamavam uma maneira ingénua
de “primavera árabe”, como se fosse despontar de uma era democrática.
quem ficou amarrado a essa percepção imediata, provavelmente, está
equivocado. Há ali complexidades e particularidades daquelas sociedades
que não se reproduzem no resto de África e um dos componentes é
religioso. Estamos a observar agora que essa revolta teve, além de um
caris político e social, uma voz da revolta que reclamava contra regimes
laicos. Acho que é preciso ver o filme até ao fim – e nós ainda não
vimos – para percebermos o que foram esses movimentos. De qualquer
maneira, extrapolar o que aconteceu no norte de África para o resto do
continente é muito apressado.
O
mesmo movimento que dominou o norte de África expandiu-se a outros
países fora do continente, como a Síria, mas com respostas diferentes.
Estamos constantemente presos à vontade da Nato e/ou do Ocidente?
Sim.
E são sempre fundamentadas em duas medidas, num carácter que para mim é
um pouco hipócrita. Por que se fez intervenção na Líbia e não se faz
noutros casos? Por que na Líbia foi cometida alguma coisa que está muito
para além daquilo que foi decisão tomada nas nações unidas? Não tenho
simpatia nenhuma pelo regime de Kadafi e do regime líbio, mas observamos
uma espécie de permissividade que deixa que aconteçam certas coisas que
não se deixam acontecer com os outros. Há aqui um certo cinismo que
parece enfraquecer as razões sejam da Europa, sejam da nato, sejam do
conselho de segurança das Nações Unidas. Quem decide sobre
essas coisas não o faz numa base democrática. O Conselho de Segurança
das Nações Unidas não fala em nome do mundo. Neste momento, são cinco
potências com direito de veto, acho que isso tem que ser contestado.
Partindo dessa ideia de democracia, gostava que voltássemos para o caso de Moçambique. Que tipo de democracia temos?
Sinceramente
acho que não estamos mal nesse nível. A democracia que temos é aquela
que foi proclamada de cima para baixo. A democracia que nos falta é a
que depois vem de baixo para cima, aquela que nós conquistamos como
cidadãos, como grupos e como movimentos sociais, e isso implica uma
aprendizagem. Em Moçambique (...), o que falta em termos de vida
democrática, não pode ser uma coisa que um governo ou um partido nos dá. Nós
temos um olhar ambíguo: por um lado, choramos porque não temos e, por
outro, choramos olhando para o grande pai que é o Estado, que é o
criador da nação, como se daí tivesse que vir a resposta. É preciso que
haja mais vida partidária. Realmente, quantos partidos políticos existem
em Moçambique? Existem de facto? Vejo a maior parte destes partidos
como um movimento no período das eleições, mas não existem depois. Não
existem no sentido que também não propõem, não vejo uma voz alternativa
que pensa a sociedade de outra maneira. Contestam o poder que é uma
outra coisa. Quem apresenta um novo programa político com coisas que são
fundamentadas que há um caminho que se possa seguir? São poucas vozes.
Muitas vão surgir quando os jovens que estão a formar-se e a recolher
ideias pelo mundo se corporizarem numa força política. e essa força
política tem que ser saudada pela Frelimo, tem que ser saudada pelo
poder, porque é uma coisa que é construtiva e não vai pôr em causa
(...). Nós temos sempre como modelo de oposição o que é feito pela
Renamo. Mas a Renamo não é um partido de oposição, é uma outra coisa que
quer tomar o poder à força, sempre foi este o seu propósito. Não
pensemos que a Renamo é uma força de oposição nesta que é uma visão
democrática de uma sociedade que tem uma oposição construtiva.
O
debate que se levanta quando se pensa no fim do mandato do actual
Presidente da República é sobre lideranças. De que tipo de liderança
este país vai precisar nos próximos anos?
Penso
que é uma liderança que tem que responder algumas a coisas em
simultâneo. Primeiro, tem que ter autoridade moral dada por exemplos,
por aquilo que é dada pelas suas próprias práticas. Tem que ser uma
liderança que assegura a estabilidade. Este país precisa de tempo,
precisa de estabilidade. Não é por uma revolução que se faça hoje que a
gente vai mudar o país para melhor. É preciso que assegure tempo,
continuidade, uma certa estabilidade. Onde há ruptura é a nível da
moralidade, postura ética e nós precisamos urgentemente de nos rever nos
nossos dirigentes. Não faço o discurso de não nos revemos
em todos. Penso que não se pode falar dos dirigentes de uma maneira tão
fácil e simplista. Entre eles, há aqueles que têm essa nossa aposta
moral.