sábado, 8 de setembro de 2012

CRÓNICA DE CABO VERDE

CRÓNICA   DE   CABO   VERDE




  Palavras escritas...
AS DUAS figuras cimeiras do novo Estado independente eram filhos de padres. Aristides Pereira, o Presidente da República, é filho de um sacerdote católico. O mesmo aconteceu com o Presidente da Assembleia Nacional Popular, o falecido Abílio Duarte, «o mais novo dos nove filhos» do pároco da freguesia de Nossa Senhora da Graça, na Praia. A esposa de Duarte, por sua vez, é «neta de um cónego».
 
  •  Grande parte da futura liderança dos movimentos de libertação fugiu de Portugal, em Junho de 61. Pedro Pires então alferes miliciano da Força Aérea, foi um deles. Pires «fora um dos que tinha aceitado a bolsa dos americanos para ir estudar nos E.U.A», mas «incompatibiliza-se com um funcionário desse  país em Accra, pelo que acaba por dar outro rumo à sua vida». Em vez dos «States», foi para Marrocos. Seguiu-se Cuba, Conacri e as matas da Guiné, donde saiu para ser primeiro-ministro de Cabo Verde. 
  • Vinte e dois anos depois da paz, o dia-a-dia da guerrilha continua a ser um assunto tabu. Aristides Pereira prefere não entrar em detalhes: «Numa guerra com vários anos de duração as pessoas casam-se. Apesar das precauções (...) houve efectivamente coisas muito feias, mas só mais tarde poderei falar disso...». 
  • O general Lopes dos Santos foi um dos últimos governadores do Império. Esteve à frente de Macau e Cabo Verde (que deixou em Fevereiro de 1974). Aposentado em Oeiras, faz a autocrítica do regime: «Se eu fosse angolano ou moçambicano não podia deixar de aspirar à independência. Foi um erro nosso não perceber isso há mais tempo.» 
  • Depois de um curso em Cuba, um comando cabo-verdiano dispunha-se a abrir um foco de guerrilha no arquipélago, para o que foi solicitada a ajuda da URSS. Conta Aristides Pereira que «quando os especialistas soviéticos nos pediram os dados sobre Cabo Verde, disseram: ‘Nem pensar nisso! Se fosse uma ilha, vá que não vá. Agora dez ilhas, com os meios modernos, vocês vão ser massacrados’. (...) Para os soviéticos, a ideia do desembarque era completamente visionária». 
  • Carlos Reis foi o primeiro quadro do PAIGC a trocar Conacri por S. Vicente, onde chegou nos primeiros dias de Maio. A decisão foi tomada em Conacri. Como? Reis explica: «Como todos queriam vir para Cabo Verde, fizemos aquele jogo infantil, ‘un, deux, trois’, para ver quem seria o primeiro. Ganhei eu.» 
  • Para a independência muito contribuíram as conversações subterrâneas. Amaro da Luz, por exemplo, veio a Lisboa «contactar parte do MFA, nomeadamente Melo Antunes, Costa Gomes e Vasco Gonçalves, para desbloquear as coisas». Também José Luís Fernandes participou «em encontros secretos com o MFA». E, em Cabo Verde, houve «dois tipos de contactos» com as autoridades portuguesas: «um oficial e outro secreto». Silvino da Luz e Pedro Pires foram os principais protagonistas. Este último avistou-se em segerdo, em S. Vicente, com o capitão-de-fragata Almeida d’Eça. 
  • O apoio do MFA ao PAIGC foi total. Pedro Pires, quando chegou a Cabo Verde, vindo da Guiné, foi «transportado num avião da FAP». A cimeira de Spínola com Mobuto, na ilha do Sal, deixou de ser secreta porque houve um militar português que passou a informação ao PAIGC. Este vigiava permanentemente o governador, «graças à cumplicidade de elementos do MFA no Palácio do Governo». Silvino da Luz conta que «sabiamos tudo o que se passava com ele. Chegámos a entrar-lhe no gabinete e a retirar-lhe os blocos de notas.»  
  • Mário Soares apenas pairou sobre as conversações, completamente dirigidas por Almeida Santos. Segundo Osvaldo Lopes da Silva, «o Soares assistia, mas passou o tempo todo num divã, a dormitar de forma ostensiva». Pedro Pires corrobora: «Pareceu-me que o Soares não estava muito interessado na questão.»  
  • No dia da independência, o Presidente Aristides Pereira «anunciou durante a sua posse (...) a restituição às respectivas famílias dos cidadãos presos no Tarrafal. (...) No entanto, um dia depois », os detidos «  foram conduzidos ao aeroporto da Praia e embarcados para Portugal, na companhia dos militares portugueses». 
  •  A primeira dor de cabeça de Aristides Pereira foi de carácter financeiro.«Nós não tínhamos recursos nenhuns, e sem a ajuda fundamental de certos países não sei o que seria de nós. (...) O Presidente Gowon ( Nigéria ) pôs à nossa disposição 100 ou 200 mil dólares, já não me lembro; mandei uma missão à Costa do Marfim, mais concretamente o Corsino  Tolentino, que falou com o Presidente Houphouet-Boigny. Este, como não gostava de operações bancárias, mandou o Tolentino voltar à tarde e quando chegou tinha a esperá-lo um maleta cheia de dinheiro. O Presidente Nyerere (Tanzânia) foi também extraordinário.» 
  • A URSS tentou convencer o PAIGC a autorizar a construção de uma base naval. A insistência manteve-se durante anos. Silvino da Luz: «Os soviéticos não falavam abertamente no assunto, mas de forma eufemística. Falavam em ‘porto de descanso’ para as suas tripulações ou em ‘reparação’ das suas embarcações.» O projecto nunca vingou.   

 (In Jornal "Expresso" - 12/04/1997)