Escrito por Isadora Ataíde |
Condições de trabalho
precárias e assimetrias entre trabalhadores nacionais e estrangeiros são
conclusões do estudo realizado pelo sociólogo João Feijó sobre as
relações laborais no sector formal de Maputo.
Director científico do Instituto
Superior Monitor, Feijó observou que os trabalhadores preferem o
“contorno” à confrontação para melhorar o seu nível de bem-estar. O
investigador aponta que os sindicatos “são fracos e não protegem” os
trabalhadores e que a “forma” da distribuição de recursos determinará a
conflitualidade laboral no próximo período. O estudo ‘“Eles fingem que
nos pagam e nós fingimos que trabalhamos” – resistência e adaptação de
trabalhadores moçambicanos em Maputo’ foi publicado na última edição da
revista Estudos Moçambicanos. Como se caracterizam os trabalhadores
formais de nível médio em Moçambique?
Em Moçambique é arriscado dar uma resposta, eu posso falar sobre Maputo. Os trabalhadores de nível médio caracterizam-se por salários baixos e há grandes assimetrias salariais nas empresas entre os cargos de topo e de base. Isso é mais visível nas empresas de capital estrangeiro, embora também existam diferenças nas empresas de capital nacional. Tem-se trabalhadores nacionais a ganharem três mil meticais e estrangeiros a ganharem cinco mil dólares, é bastante normal. Depois há o problema do aumento das exigências laborais, que é superior ao ritmo das qualificações. Quais as consequências das assimetrias para as relações laborais e sociais no mundo do trabalho? É uma situação bastante complexa, existem fenómenos de conflitualidade surda. Há resistências, mas uma resistência passiva. As coisas não são contestadas porque é arriscado arriscar, porque se tem medo. Não estamos numa sociedade de cultura muito participativa e porque os sindicatos são fracos e não protegem os trabalhadores. A estratégia da confrontação existe, mas não é predominante. A estratégia é a de contornar através da compensação salarial e da rentabilização do esforço-benefício. Os salários são baixos e não convidam à produtividade, por isso as pessoas optam por controlar a produção, por terem tempo para actividades extra-profissionais, ainda que não seja fácil porque a vigilância é muito apertada. A conflitualidade surda assenta na fofoca, na maledicência, no boato e em alianças. Outra questão é que mesmo nas empresas do sector formal a fronteira entre a empresa e a família não é clara. Ou seja, a lógica de gestão é muito paternalista. Eu pago baixos salários porque estou a ajudar familiares e amigos. E assim criam-se amortecedores de conflitos sociais. As tensões que existiriam como resultado das contradições de classe e da existência de um mercado de trabalho dual deixam de existir, porque ninguém vai se virar contra a família, contra as suas relações de proximidade. Ainda, nos extractos mais baixos o patrão é visto como um pai, que ajuda nos momentos difíceis. Essa percepção resulta de um Estado social fraco, sem subsídios de desemprego, segurança social e serviço de saúde de qualidade. As assimetrias revelam um mundo do trabalho dual? Com duas referências distintas? Eu acho que sim, mas não sei se essa dualidade pode ser estruturada em termos de nacional/estrangeiro. Há uma estrutura bastante hierárquica e bastante assimétrica em toda a sociedade moçambicana, inclusivamente nas empresas estrangeiras. Seria uma explicação maniqueísta dizer-se que a dualidade assenta em características étnicas, de nacionalidade ou raciais. Penso que a dualidade é um fenómeno estruturado na sociedade. Em Moçambique persistiram formas de trabalho forçado até 1961, qual o peso do legado colonial nas relações de trabalho? A memória é evidente, existe de forma vivida pelos mais velhos e através das narrativas dos pais e avós e nos bancos escolares. Cada vez que há uma situação de conflito laboral a memória vem ao de cima e a palavra chibalo aparece. Cada vez que se trabalha acima do previsto ou mesmo no limite do horário ouve-se a palavra chibalo, comentários do tipo “o chibalo já acabou”. As condições de trabalho são precárias, é necessário reformar a legislação do trabalho? A situação é muito complexa, é verdade que algumas empresas podem pagar mais, mas outras não podem. Há muitas empresas que não cumprem sequer o que está definido na lei do trabalho, a fuga à segurança social é enorme. Se nem aquilo que é de lei é cumprido, tornar a legislação mais proteccionista é ambicioso. Em Maputo, no sector formal da economia, encontramos muitas empresas que seguem a lei. Mas Moçambique não é Maputo, é um país extenso onde é muito complicado aplicar a lei. Eu fiz algumas entrevistas noutras províncias que mostram que mesmo os empresários nacionais não cumprem a legislação. Pagam abaixo do salário mínimo, não pagam férias nem segurança social e fogem aos impostos. SINDICALISTAS COM AMBIÇÕES POLÍTICAS E qual a explicação para que os sindicatos sejam tão fracos? O grande problema deriva de não haver uma grande indústria, não há massa para lutar de forma assídua como existe na África do Sul. A forma como os sindicatos surgiram ajuda na explicação. A Organização dos Trabalhadores Moçambicanos surgiu apadrinhada pelo partido no poder e apoia-no durante as eleições. Os próprios sindicalistas têm ambições políticas, tornam-se deputados, governadores, ministros. Outra questão é a sensibilidade do assunto, Moçambique teve uma guerra de 16 anos que destruiu o país. Então há uma grande preocupação em proteger a unidade nacional, como diz o sociólogo Carlos Serra vivemos numa zona “socialmente sísmica”. Nunca houve uma greve geral em Moçambique, e esse é um os motivos. Existe liberdade, mas as pessoas têm receios. Basta se ver o que acontece aos que reivindicam, um dos líderes dos antigos combatentes foi preso, por exemplo. Nos motins de 2010, chamados de greve, não houve ninguém a dar a cara pelo movimento, ninguém tinha coragem de aparecer, mesmo as entidades mais activas e corajosas. Quais as práticas e as formas de corrupção na fiscalização do trabalho que identificou no estudo? Corrupção é muito difícil de provar, existe sem ser vista. O que existe são muitas acusações de corrupção. Os empregadores reconhecem que têm problemas e que pagam ao ministério do trabalho. Há muito discurso sobre alegada corrupção, os trabalhadores também a observam. São sobretudo eles que denunciam, contam que os empregadores ofertam presentes e que estes são aceites. Por exemplo, nos restaurantes a fiscalização é convidada para entrar, sentar e comer sem pagar nada. Bem, estamos no campo das representações, estamos no campo do discurso sobre a corrupção e não sobre a corrupção. Embora a corrupção seja endémica no dia-a-dia do país. A pesquisa mostra as dificuldades dos trabalhadores, ganham pouco e moram longe, não têm refeições no local de trabalho... É verdade, mas ninguém vive do salário. As pessoas procuram rentabilizar a sua renda em acordo com a sua formação e as suas relações pessoais. Se eu for um bom electricista posso fazer alguns biscates e ganhar mais numa manhã do que numa semana de trabalho. Este é um dos aspectos que justificam a falta de assiduidade. Se eu tiver um brother num departamento importante do governo também posso ganhar algum dinheiro. As pessoas vão a África do Sul e compram produtos para vender aqui, fazem negócios. A questão do emprego está relacionada às políticas sociais e urbanas - como a questão do transporte, água, energia. Maputo precisa de políticas para modificar o contexto das relacções laborais? Está integrado sim. Há uma grande incompreensão dos recém-chegados sobre o que se passa aqui. Os estrangeiros não fazem a mínima ideia do que as pessoas fazem para chegar ao centro da cidade. Há um grande desconhecimento da realidade profunda, as pessoas pensam que África é Maputo. Isso revela desconhecimento sobre as dinâmicas familiares e as suas responsabilidades. Os problemas são tantos que o trabalhador fica impossibilitado de trabalhar, tem de resolver problemas que não são voluntários, mas sim da sociedade. O facto de se fazer horas extraordinárias, por exemplo, não compensa o transtorno de se perder o último transporte para casa. A vida social é muito complexa, coisas como o moçambicano é preguiçoso e o estrangeiro é explorador não explicam a realidade. A grande conclusão é que por parte da população não há uma crítica ao sistema, mas a posição que eu tenho no sistema. Não se quer subverter o sistema, o problema é eu estar cá em baixo. Um dos entrevistados para este estudo tem uma barraca no Zimpeto e paga mil meticais para o seu empregado, ou seja, o que ele critica nas relações laborais ele reproduz como patrão. O aumento dos estrangeiros em Moçambique explica-se apenas pela falta de mão-de-obra qualificada ou é resultado também da crise económica europeia e das facilidades para atrair capital estrangeiro? A legislação é proteccionista, não é fácil um trabalhador estrangeiro vir para Moçambique, as empresas têm de cumprir cotas e no geral estão no limite. Não me parece que haja uma legislação convidativa para o trabalhador, pode haver para o capital nalgumas áreas. Tenho ouvido, em jeito de rumor e sem nada escrito, que há preocupação com a carência de recursos qualificados, sobretudo os altamente especializados. Um quadro estrangeiro é caríssimo, porque ninguém quer vir sem casa, viagens ao país de origem, entre outros. É mais barato contratar um quadro moçambicano do que um estrangeiro, se as empresas contratam alguém de fora é porque estão necessitadas. Há muita malediciência dos estrangeiros em relação aos nacionais: que são pouco qualificados, pouco disponíveis para trabalhar. É uma visão simplista e redutora da realidade. Por sua vez os trabalhadores nacionais queixam-se que estão há muitos anos nas empresas e os estrangeiros são contratados por salários seis ou sete vezes mais altos. Muitos destes casos explicam-se pela relação de confiança para cargos-chave, financeiros ou de logística, por exemplo. Com o aumento dos investimentos estrangeiros e do tecido empresarial tende a aumentar a conflitualidade? Em Maputo há mais conflitualidade do que no Norte do país, talvez pelo facto de uma cultura mais participativa. O principal motivo para a ausência de reivindicação é o desemprego. Seria interessante observar-se se aumenta a conflitualidade em razão dos trabalhadores estrangeiros. Penso que tudo vai depender da forma de distribuição dos recursos, se houver trabalho para todos não haverá problema. Se não houver vão surgir movimentos de xenofobia, é um fenómeno universal que acontece em cenários de desemprego e são promovidos pelos grupos locais que se sentem ameaçados. Em Maputo são as classes médias que sentem a presença do estrangeiro como competidor. Entre as classes mais baixas está tudo bem, porque há empresas que vêm e que estão a dar empregos com salários um bocadinho melhores. Mas acho que no grupo dos recém-licenciados e dos profissionais com experiência, confiante das suas qualificações, vai haver uma grande fricção. Quais os desafios para se compreender as dinâmicas laborais? Há uma questão que é central e sobre a qual eu me pergunto muitas vezes. Esta hierarquia e assimetria ao nível da distribuição dos recursos de poder é uma realidade pós-colonial, colonial ou pré-colonial? Quando isto começou? No período colonial havia grandes assimetrias. Após a independência éramos todos pobres. Agora voltaram a haver grandes assimetrias. Será que isto está estruturado na lógica local? Como funcionavam as lógicas monárquicas pré-coloniais? Faltam estudos para se tentar explicar este fenómeno. É preciso constituir uma equipa pluridisciplinar, reunir geográfos, historiadores, antropólogos para se compreender o percurso das relações laborais, porque elas são anteriores ao período colonial. É um assunto actual para se compreender o que se passa, inclusive deve-se olhar para a África do Sul para se compreender o que acontece aqui e vice-versa. Estudar o que se passa em Maputo para compreender o que se passa no resto do país. Porque ‘lá no mato’ não fazemos a mínima ideia do que acontece. Sei que há zonas com atropelos da lei assustadores que não são denunciados. |
terça-feira, 11 de setembro de 2012
As coisas não são contestadas porque é arriscado arriscar”
As coisas não são contestadas porque é arriscado arriscar”