07 Setembro 2006
Hoje estou de luto carregado
Faz
hoje 32 anos, corria o ano de 1974. Sem consultar previamente os
dirigentes das comunidades europeia, asiática e negra de Moçambique, sem
auscultar o parecer dos líderes religiosos e dos restantes partidos,
movimentos e associações políticas (FUMO, GUMO, COREMO, FICO), Mário
Soares e Samora Machel estabeleceram em Lusaca o calendário para a
independência do território. O ministro dos negócios estrangeiros
português (Mário Soares), sempre pressuroso em agradar aos seus
interlocutores, alargou-se em generosidades e insistiu em não apresentar
quaisquer condições que aquietassem o terror que se ia apossando de
todos os moçambicanos hostis à entrega do poder a um movimento armado,
ultraminoritário e comunista. Divulgado o acordo para a transmissão de
poderes, realizou-se nos arrabaldes de Lourenço Marques um ajuntamento
da FRELIMO, no termo do qual se deram largas ao ódio anti-português.
Pontificaram nas arruaças membros do grupo "Democratas de Moçambique",
maioritariamente ligados ao advogado milionário Almeida Santos. A
bandeira portuguesa arrastada pelas ruas perante a população gerou, de
imediato, uma enérgica reacção de repúdio, sobretudo quando deram
entrada no hospital central de LM feridos brancos...pintados de negro !
Eram os instigadores de uma revolta negra que não encontrou qualquer
adesão.
Revolta portuguesa
Milhares
de brancos, negros, indianos e mulatos ocuparam o aeroporto, a estação
do Rádio Clube de Moçambique, as redacções dos jornais e
conglomeraram-se numa imensa massa humana nas principais artérias da
capital. Pediam que fosse ouvido o povo moçambicano, que se realizasse
um plebiscito em harmonia com o Programa do MFA. Mas o governo português
já tinha feito tábua-rasa das promessas feitas em 25 de Abril. Spínola,
o homem de caco de vidro, aprovava sem pestanejar o protocolo de
Lusaca. O PS e o PCP emitiam comunicados que não deixavam qualquer
margem para contemporizações. O PS afirmava sem rebuço: "não pode
admitir-se que uma minoria de reaccionários impeça o caminho do povo de
Moçambique para a sua própria libertação. (...) A descolonização
portuguesa constitui uma forma nova, original e revolucionária, sem
paralelo em experiências estranhas, de formar uma aliança de povos
senhores dos próprios destinos e livres da ingerência das superpotências"
(in República, 10.09.1974). O PS ainda fazia ainda parelha com o PCP
nesse conturbado Setembro em que Spínola, cada vez mais patético do alto
da sua arrogância autista, pedia que a "Maioria Silenciosa" se
pronunciasse. Samora Machel e a tropa portuguesa puseram-se de acordo e
decidiram agir. Spínola enviou ameaças aos líderes da revolta
portuguesa, insinuando que se fosse preciso mandava a aviação bombardear
o Rádio Clube de Moçambique. Diz-se (1) que Soares terá pronunciado a
terrível ameaça: "se for preciso, atirem-nos [aos revoltosos] ao mar"(2).
Estranhos "reaccionários"
A
censura de Lisboa tentou por todos os meios escamotear a dimensão do
movimento, imputando-o a uma minoria sem expressão. Contudo, a revolta
foi colectiva, cobrindo a quase totalidade das minorias branca e
asiática, a quase totalidade dos miscigenados e vastos sectores da
população negra, sobretudo aquela que conhecia o terrorismo da FRELIMO, a
brutalidade do seu líder Samora, os desmandos da sua soldadesca
esfarrapada, analfabeta e primitiva. A liderança da revolta era
compósita: Joana Simeão, jornalista negra que se opusera durante anos ao
poder português mas se aproximara de uma posição negociada, líder
fundadora do GUMO (Grupo Unido de Moçambique), Máximo Dias, também negro
e co-fundador do GUMO, o pastor Uria Simango, o dissidente da FRELIMO
Lázaro Kavandane, Neves Anacleto, um respeitado jurista branco oriundo
do republicanismo reviralhista e animador da oposição democrática a
Salazar ( Neves Anacleto (3) era avô de Francisco Louçã),
advogados, economistas e médicos indianos, membros destacados do
regulato negro, pastores e sacerdotes cristãos, homens de negócios,
membros das forças de auto-defesa de Moçambique (milícias, OPVDC -
Organização Provincial de Defesa Civil) e quadros negros intermédios. Os
meios de que dispunham eram escassos. Mal armados, mas contando com a
carismática presença de guerreiros de elite (Daniel Roxo), não podiam
bater a tropa portuguesa, mas poderiam, com êxito, impedir o controlo
das principais cidades do território pelo miserável exército de Samora, o
qual não dispunha de efectivos nem capacidade para se impor. Uma ajuda
preciosa chegou aos revoltosos. Da África do Sul começaram a chegar nos
dias 7 e 8 centenas de portugueses aí radicados, dispostos a ajudar os
patriotas de Lourenço Marques. O Movimento Moçambique Livre padecia,
contudo, de uma incurável vulnerabilidade: era apenas a expressão
espontânea de um povo ultrajado no direito de escolher o seu futuro,
traído por Lisboa e entregue ao concentracionarismo vindicatório da
FRELIMO.
O fim do sonho e o começo do terror
No
dia 9, transportados de avião, chegaram aos subúrbios de Lourenço
Marques os primeiros efectivos da FRELIMO. Foram dadas às células ordens
de contra-ataque e começou a carnificina. Centenas de brancos e mulatos
mortos à paulada, famílias queimadas dentro das viaturas, assaltos e
saque a residências, invasão da zona comercial e vandalização. A tropa
portuguesa não esboçou qualquer atitude. O movimento esboroava-se.
Machel, de Dar-es-Sallam, estimava que os "vagabundos e criminosos" (A
Capital, 10 de Setembro 1974) seriam esmagados, no preciso momento em
que uma figura sinistra, o comandante Vitor Crespo, assumia em Lisboa as
funções de Alto Comissário Geral de Moçambique. O Moçambique português
morria. Começava o êxodo. Os que ficaram depressa se inteiraram dos
propósitos dos novos senhores: centenas de detenções marcaram a entrada
da tropa comunista em LM. No preiamar das matanças e desmandos, Rui
Knopfli, director de A Tribuna de Lourenço Marques, açulava: "esses
grupos activistas são compostos por filhos de família, ex-comandos e um
sector da pequena burguesia comerciante, que por ignorância se deixaram
arrastar nesta aventura". O filho de família Knopfli dizia tudo: o
movimento era, em suma, todo o Moçambique do asfalto. Sem o asfalto, ou
seja, com Samora e seus energúmenos, Moçambique caiu na espiral do
regresso à selva. Os líderes negros moderados foram mortos - Joana
Simeão foi enviada para a "reeducação, onde morreria em condições
trágicas, violada por centos de guerrilheiros antes de ser enterrada
viva, com o corpo destruído por tesouradas - os brancos saíram do país e
vieram as campanhas machelistas: guerra ao "tribalismo", guerra à
"religião", guerra aos muçulmanos, guerra aos "parasitas indianos",
guerra a tudo que lembrasse a sociedade colonial. Passariam ainda 20
anos antes que os moçambicanos pudessem reconstruir, dos caboucos
carbonizados, o direito a viverem em paz e liberdade.
(1) Jorge Jardim. Moçambique, terra queimada. Lisboa: Intervenção, 1976
(2) Clotilde Mesquitela. Moçambique: sete de Setembro. Lisboa: A Rua, 1977
(3) A. Neves Anacleto. A inventona do 28 de Setembro. Lisboa: ed. autor, 1975