quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

D. Matteo Zuppi revela mais pormenores do Acordo de Roma

 


Quando Raul Domingos foi Pelé
Entrevista conduzida por Mário Martins *
ACORDO_PAZ_MOÇAMBIQUE_ROMA D. Matteo Zuppi é um amigo do nosso jornal e, sempre que pode, passa por cá para nos dar sempre mais uns detalhes sobre o caminho difícil que levou à reconciliação dos moçambicanos em 1992. Desta feita não foi connosco mas ao jornal confessional “Mensageiro”que D. Matteo partilhou mais alguns pormenores inéditos das conversações de Roma. E um dos pormenores é o equívoco de Raul Domingos ser tomado por Pelé quando era suposto de estar secretamente em Roma na companhia de Vicente Ululu
...
Como é que a Comunidade chegou a interessar-se pela situação em Moçambique ou como é que o problema da guerra em Moçambique chegou à Comunidade?
D. Matteo: Foi através da Porta Aberta. Santo Egídio não representa o início da Comunidade. Esta começou em 1968 e em 1973 é que chegámos a Santo Egídio, como lugar confiado à Comunidade. Aí começámos a fazer uma oração, todas as noites, às 20h45, aberta a quem queria entrar. Uma vez, convidámos um bispo de Moçambique, o arcebispo da Beira, a participar na oração. E começou uma amizade entre nós e ele. No início, ele falou-nos do problema existente entre o Estado e a Igreja. O Estado, no início, tinha uma imagem muito negativa da Igreja, nacionalizou todos os templos; olhava a Igreja como colaboradora do antigo regime. Mas boa parte da Igreja tinha estado do lado da independência, embora grande parte dos bispos fossem africanos, porque a Santa Sé mudou muitos deles em 1974 e 75.


Como actuaram?...
- Nós colocámos o bispo D. Jaime em contacto com o Partido Comunista Italiano. Nós não conhecíamos ninguém, mas chamámos alguns apoiantes, um pequeno grupo, e depois chegámos até ao próprio Berlinguer, o secretário-geral. O PCI era um dos mais importantes da Europa, nós pensamos que era mesmo um dos mais importantes do mundo. Na verdade, o PCI chegou a ter 45% dos votos em Itália, um pouco antes de ter assinado o compromisso histórico com a democracia cristã. Berlinguer era um homem de cultura, um homem com sensibilidade. Ele mostrou-se sensibilizado com o nosso contacto e mandou o irmão a Moçambique, porque havia uma ligação muito forte entre o Partido Comunista Italiano e a Frelimo. Muitos membros da Frelimo tinham construído laços muito fortes com o PCI durante os anos da luta de libertação. Então, o irmão de Berlinguer foi a
Moçambique dizer-lhes: Olha, vocês têm de se reunir com a Igreja para encontrar solução para alguns problemas.
Depois, ele pediu-nos ajuda, porque Moçambique vivia um problema muito grave, em 1984, com a seca. E nós começámos a enviar ajuda. Mas o problema era este: qual o sentido desta ajuda, se o país continuava em guerra? Os bispos de Moçambique fizeram algumas cartas pastorais muito importantes, nas quais defenderam a necessidade de diálogo. Depois, foram falar com o presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, e ofereceram-se como mediadores para o diálogo com a Renamo. Nós queremos contactar a Renamo..., disseram-lhe.
Chissano respondeu-lhes: Isso é convosco. Eu não vos peço para irem falar com a Renamo, mas se vocês querem ir falar, é um problema vosso... Isto aconteceu no final de 1987, princípios de 1988.
Ainda existia o Muro de Berlim...
- Sim. Mas a situação em Moçambique era diferente da de Angola. Angola era como que um laboratório da União Soviética, até mais do que um laboratório... Em Moçambique, a Frelimo tinha ligações com Moscovo, mas também tinha boas relações com os Estados Unidos da América.
Por causa da proximidade da África do Sul?
- Porque era pragmática! Isso já era visível no tempo de Samora Machel. Recorde-se o Acordo de Incomáti, que Samora Machel assinou com o regime do apartheid sul-africano e que fez acabar com as actividades do ANC
em Moçambique. Moçambique
mantinha boas relações com os Estados Unidos e com muitos países europeus. A Frelimo era pragmática.

Os bispos, então...
- Até 1988 não era possível falar com a Renamo, porque era falar com os terroristas, com os bandidos armados. A partir do momento
em que D. Jaime
e os outros bispos moçambicanos receberam esta luz verde do presidente Chissano, D. Jaime chamou-nos imediatamente e disse: Nós temos esta luz verde, ajudai-nos a encontrar a Renamo!. E nós começámos à procura do caminho da Renamo.

Como é que fizeram? Foram a Moçambique?
- Não. A estratégia foi procurar elementos da Renamo no exterior e verificar se tinham um contacto directo com a Renamo. A Frelimo era uma estrutura muito interna, o Dhlakama estava no terreno, nunca ninguém o tinha visto. Então, apareciam pessoas que nos diziam Eu sou da Renamo, mas depois verificava-se que não tinham qualquer ligação directa à Renamo que estava a combater
em Moçambique. E
fomos testando contactos. Uma vez, encontrámos um moçambicano que vivia na Alemanha e que julgámos ter uma boa ligação à Renamo que estava no interior de Moçambique. E dissemos-lhe: Muito bem, tu tens de nos dar um sinal concreto. E pedimos-lhe a libertação de uma religiosa portuguesa que tinha sido raptada.

A Renamo raptava religiosas?
- Sim, mas mais por medo que depois dos ataques chegassem as forças da Frelimo e matassem as populações, para acusar a Renamo. Esta foi, pelo menos, a justificação que depois nos deram. Nós temos de as levar connosco, caso contrário chega o Exército regular e mata, disseram-nos. E muitas vezes isso terá acontecido, porque o Governo pensava haver uma colaboração entre os camponeses e a Renamo. Então, a
Renamo atacava e levava consigo a aldeia inteira, para evitar represálias sobre os habitantes.
E esse sinal foi dado?
- Sim, muito rapidamente. Levaram a religiosa portuguesa até à fronteira de Moçambique com o Malawi e nós mandámos lá um missionário para a receber. Correu tudo bem e, então, nós decidimos que aquele era o canal bom, o canal apropriado para contactar directamente a Renamo no terreno.
Estava aberto o caminho para as negociações...
- Não, porque de início a Frelimo não queria negociar. A Frelimo queria que, em primeiro lugar, a Renamo entregasse as armas. Depois, propunham uma amnistia, dizendo: Vocês são culpados, mas nós perdoamos e vocês podem regressar a casa. Mas a Renamo respondia: Nós pegámos em armas porque queremos fazer isto, isto e isto. Portanto, se vocês não fazem essas mudanças, nós continuaremos a lutar. A amnistia, para a Renamo, era um insulto, porque não se sentia culpada de nada. A guerra tinha começado não porque a Renamo fosse um bando de ladrões, mas porque do outro lado estava um poder marxista que defendia soluções políticas com as quais a Renamo não concordava. E por isso dizia Se vocês não mudam, nós continuamos a lutar. Mas a Frelimo não queria negociar. O Governo aceitava que os bispos falassem com a Renamo, mas para convencer esta a entregar as armas.
Uma situação difícil...
- Sim. Em Maio de 1988, combinámos uma viagem de D. Jaime à Gorongoza, porque o bispo era muito aceite pela Renamo. Antes, tínhamos promovido um encontro entre D. Jaime e o contacto da Renamo que vivia na Alemanha; depois, organizámos a viagem de D. Jaime à Gorongoza, com a ajuda dos sul-africanos, o que prova que estes ainda tinham laços com a Renamo. Mas o bispo não sabia que o encontro se iria realizar dentro de Moçambique, pensava que iria ser na Zâmbia. Os sul-africanos fizeram isto, segundo disseram, para não assustar D. Jaime. A viagem foi feita toda durante a noite; partiram de noite e regressaram ainda durante a noite, de avião.
Foi a oportunidade de D. Jaime falar, durante duas ou três horas, com Dhlakama. Este encontro foi fundamental, porque Dhlakama - que já confiava
em D. Jaime
e começava a ter confiança connosco – disse: Este é o verdadeiro caminho para a paz.

Estava cansado da guerra...
- Não. Ele disse: Se nós temos de falar, é com estes que devemos falar. Por um lado, D. Jaime é moçambicano e sempre falou de diálogo, mesmo fazendo zangar o Governo moçambicano. Depois, porque a Comunidade de Santo Egídio não tem nenhum interesse
em Moçambique. E
ainda havia a circunstância de D. Jaime ser da mesma tribo de Dhlakama; foi uma razão secundária, mas importante, porque falavam a mesma língua.

Tinha sido aberto o caminho do diálogo.
- Depois começaram contactos no Quénia, com a mediação de responsáveis quenianos. Mas estes contactos fracassaram, na minha opinião porque eram demasiado formais.
E vocês?...
- Nós não fizemos mais nada, nessa altura, porque não considerávamos uma parte indispensável do processo de diálogo. Se as coisas estavam a andar, perfeito! Mas a verdade é que esses encontros no Quénia, em 1989, entre o Governo moçambicano e a Renamo, acabaram por fracassar. Aliás, as duas delegações nunca se encontraram.
Nunca se encontraram?!
- Foi assim... O Quénia convidou as duas delegações. Quis alojá-las no mesmo hotel, mas logo que isso se soube, os elementos da Renamo fugiram. Nós queremos negociar, não queremos ‘coisinhas’assim de estar no mesmo hotel, disseram. Então, o Governo de Moçambique enviou uma lista de exigências. Para negociar, vocês têm de estar de acordo com isto: um, dois, três, quatro, cinco!. E a Renamo disse: Muito bem. Mas para negociarmos vocês têm de estar de acordo com isto... E enviaram 17 pontos. E o diálogo acabou, sem nunca as duas delegações se encontrarem.
Quem estava por detrás da Renamo?
- Eu penso que, na realidade, não havia nada, nem ninguém. Aliás, como penso suceder em muitas das guerras em África. No início, a Rodésia e a África do Sul apoiaram a reacção de alguns moçambicanos contra a Frelimo. Claro que a Rodésia branca, de Ian Smith, não queria ter ao lado um país marxista. E o mesmo sucedeu com a África do Sul; se havia um país que apoiava o ANC, então eles apoiavam quem se opunha ao Governo de Moçambique. Mas nunca a Rodésia nem a África do Sul foram os ‘padrinhos’da Renamo. Eu penso que a Renamo foi sempre autónoma. Era uma reacção de moçambicanos, que contava com um certo apoio dos chefes tradicionais, que tinham sido humilhados pelas estruturas da Frelimo. E, depois, havia os erros da Frelimo, a corrupção, as nacionalizações.
Havia portugueses por detrás da Renamo?
- É difícil dizer. Haveria, certamente, alguns portugueses que olhavam bem a Renamo, os portugueses são saudosistas... E havia aqueles que tinham visto os seus bens nacionalizados. Mas eu nunca vi ninguém a dizer a Dhlakama você tem de fazer isto, fazer aquilo. Não, era mesmo o Dhlakama que decidia.
As negociações fracassaram e...
- Em 1989, nós decidimos: É preciso tomar uma iniciativa. E começámos a dizer a Dhlakama que teria de se deslocar a Roma. Pedimos autorização ao Governo italiano e este disse que sim, mas acrescentando que a deslocação teria de ser secreta. De qualquer modo, informámos o Governo moçambicano de que iríamos tomar uma atitude deste género. Dhlakama foi a Roma, secretamente, encontrou-se com alguém do Governo italiano e, então, disse que as negociações teriam lugar em Roma.
Quem estava no Governo em Itália?
- Na altura, Andreotti já era primeiro-ministro e ajudou-nos muito. Dhlakama chegou sem documentos e os serviços de segurança deixaram-no entrar, e sair de Itália, sem qualquer documento. Ou seja, o Governo italiano deu cobertura à operação.
E pagou os custos?
- Não. Os custos pagámos nós. Gastámos uma verba significativa para nós, mas que não era nada comparada com os custos da guerra.
Muito dinheiro?
- Algumas centenas de milhões de liras. Em dólares, cerca de 300 mil.
O valor de um automóvel...
- O valor de um apartamento em Roma, com dois ou três quartos, em Trastevere.
E...
- Depois dessa visita de Dhlakama a Roma, dissemos ao Governo moçambicano que era chegada a altura de se encontrar secretamente com a Renamo,
em Roma. Nós
garantíamos o sigilo. O Governo moçambicano aceitou, mas a Renamo mostrou algum receio. E só em Julho de 1990 é que houve o primeiro encontro.

Na altura, decorria em Itália o Mundial de futebol...
- É verdade. E nós pensámos, entre outras loucuras que fizemos, em levar as duas delegações a um desafio de futebol do Mundial, um jogo entre as selecções dos Camarões e de Itália,
em Roma. E
tivemos um problema sério, porque um dos elementos da Renamo era parecido (uma semelhança longínqua, mas uma semelhança)

com... Pelé. Eles foram para o jogo rodeados pela segurança italiana, não tinham documentos e, de um momento para o outro, no estádio, centenas de pessoas começaram a gritar Pelé! Pelé! e a segurança entrou em pânico.
Foi um problema sério [D. Matteo, que confessa nunca ter entrado num estádio de futebol, ri-se às gargalhadas]. (a delegação da Renamo era composta por Raul Domingos e Vicente Ululu).
As negociações...
- As duas delegações encontraram-se e nós fizemos um primeiro documento, um documento-chave para a paz, que começava com uma frase do papa João XXIII: buscar aquilo que nos une e colocar de lado aquilo que nos divide. Em segundo lugar, as duas partes reconheciam-se como filhos da nação moçambicana, da mesma família. Em terceiro lugar, ambos concordavam em prosseguir com este método de encontros para encontrar uma solução para o problema da guerra
em Moçambique. E
o encontro decorreu tão bem que, no final, apesar de ser uma reunião secreta, as duas partes decidiram tornar público o comunicado. E quiseram que se soubesse que voltariam a encontrar-se. Foi uma bomba!

Eles ainda estavam em Roma quando foi divulgado o comunicado?
- Sim. Mas nós impedimos que eles falassem com os jornalistas, porque o encontro era secreto. Sabem que nem sequer temos fotos desse encontro?! Tínhamos receio de estragar tudo e, portanto, nem sequer tirámos uma foto que fosse nesse dia 10 de Julho de 1990.
Também assinou o documento?
- Sim. Assinei como testemunha, que era o estatuto da Comunidade de Santo Egídio.
E...
- Surgiu o problema de quem seriam os mediadores do processo de paz. E eu convidei-os a regressarem dali a um mês para resolvermos esse problema. Eles voltaram a Roma. O Governo não queria mediadores, queria falar directamente com a Renamo, sem qualquer espécie de testemunhas. A Renamo não aceitou, exigindo mediadores. Começaram as divisões: o Governo queria o Zimbawe como moderador, a Renamo queria o Quénia.
E nenhum queria o mediador do outro. Então, eles disseram: Já que estamos aqui, estes que nos ajudaram a encontrar-nos é que vão ser os mediadores. E ficaram como mediadores um representante do Governo italiano, o bispo da Beira, o fundador da Comunidade de Santo Egídio (Andrea Ricardi) e eu próprio. Nós confiamos em
vocês. Vocês são os mediadores, disseram. E assim começámos a fazer a mediação.
E assim um padre, o D. Matteo, de um momento para o outro tornou-se num diplomata.
- Sim. De certa maneira, sim. Mas nunca me senti, nem nunca serei diplomata. Penso que um dos segredos é que eles confiaram em nós, porque viram que não tínhamos qualquer interesse em Moçambique e, por outro lado, porque éramos verdadeiramente neutrais, não defendíamos nem uns nem outros. Era uma autoridade moral, que os dois respeitavam. E que permitiu que eles falassem verdadeiramente entre eles.
As negociações...
- As negociações duraram dois anos. Começámos em Julho de 1990 e terminámos em Outubro de 1992.
A parte final foi difícil?
- Em Agosto de 1992, Dhlakama e Chissano encontraram-se
em Roma. Foi
o segundo encontro entre os dois líderes. E decidiram que a paz seria assinada antes de 1 de Outubro desse ano. Eles foram-se embora e ficaram as duas delegações a negociar. Havia duas ou três questões de fundo que ainda não estavam resolvidas e que precisavam de ser analisadas por Chissano e Dhlakama. Este só chegou a Roma no dia 1 de Outubro e trabalhámos dois dias sem dormir. O acordo ficou concluído na tarde do dia 3 e decidimos assiná-lo no dia seguinte, 4 de Outubro, um domingo, dia de S. Francisco.

Qual foi o último problema a encontrar solução?
- Foi talvez o da administração. A Renamo ocupava algumas zonas, nas quais tinha uma certa administração paralela. O Governo dizia: Chega! Agora vamos enviar o nosso administrador, a nossa administração. Fazemos a paz, então essas zonas são território moçambicano e nós somos o Governo. A Renamo argumentava: Não.
Vocês vão mandar em zonas que são nossas? Nós temos de ter a nossa administração. E cada um tinha as suas razões. O Governo dizia não poder aceitar a divisão do país. A Renamo não queria ver militares do Governo nessas áreas e se isso acontecesse continuaria a lutar.
E...
- Chegou-se a um compromisso de que o Governo aceitava a administração da Renamo como administração do Estado.
Seguiu-se a aplicação do acordo.
- De início não quisemos que a Comunidade fosse envolvida na aplicação do acordo. Quisemos guardar uma certa distância, quisemos constituirmo-nos como uma certa reserva, para o caso de haver problemas na aplicação do acordo. Por isso é que envolvemos a ONU; quem aplicou o acordo foram as Nações Unidas. Nós ficámos de fora, embora continuássemos a resolver algumas questões, uma vez que éramos os mediadores. Fazíamos propostas informais.
Acabou tudo em bem...
- Em 1994 foram feitas as primeiras eleições livres.
O acordo de paz em Moçambique é o grande triunfo da Comunidade de Santo Egídio nesta área?
- De certo modo, sim. Porque foi um papel formal e porque o acordo de paz resultou. Por outro lado, para muita gente foi um primeiro conhecimento da Comunidade. No entanto, a esta acção seguiram-se outras, como o caso da Guatemala, em que promovemos encontros entre a guerrilha e o Governo.
Chegaram a ser convidados para as negociações em Timor?
- Não. E nem teríamos de ser, porque havia lá quem trabalhava bem a favor da paz. Não há que criar problemas onde eles não existem. Em Timor, a ONU já estava a fazer a mediação. Eu conhecia bem o actual primeiro-ministro, Mário Alkatiri, estive com ele variadíssimas vezes. Mas o processo estava a decorrer, não havia que intervir. Aliás, penso que o protagonismo é, muitas vezes, inimigo da paz. Seja o protagonismo de uma pessoa ou de uma organização.
A Comunidade de Santo Egídio assume-se como uma estrutura informal da igreja católica para as questões da paz?
- Somos da igreja e estamos
em Roma. Mas
que sejamos uma espécie de diplomacia paralela do Vaticano, isso não. Somos uma realidade de igreja, mas que diz respeito apenas a nós.

Como é que o Vaticano olha para a Comunidade?
- Vê-nos bem, somos reconhecidos. Apoia-nos em muitas coisas. Isso sucedeu, por exemplo, quando promovemos um encontro entre facções argelinas,
em Roma. Foi
muito difícil, havia muitos partidos envolvidos, no sentido de encontrar o caminho para a democracia. No entanto, o Governo argelino recusou qualquer tipo de diálogo.

Muita gente olhou para esse encontro com muita esperança, tanto mais que a Comunidade de Santo Egídio estava envolvida...
- O grande problema foi a presença da FIS. Mas a verdade é que a FIS é que é o problema. Eles estavam dispostos a dizer aos seus homens Chega! Basta de violência! se tivesse havido uma abertura ao diálogo por parte do Governo. E não houve.
É fácil elaborar um acordo de paz? Basta apenas colocar as pessoas a falar umas com as outras? Há truques?
- É verdade que há muitos truques, há uma dinâmica complicada, complicadíssima. Mas sem as pessoas falarem umas com as outras é difícil chegar a qualquer entendimento e acabar com a guerra. Falar apenas, não chega. Mas falando procura-se uma solução; é o início da solução. Depois, há uma dinâmica que se estabelece.
E, a certa altura, começa a existir uma cumplicidade entre os negociadores. Vimos isso no caso de Moçambique, no caso do Moçambique. A certa altura, eu começo a entender os teus problemas e tu começas a entender os meus. E depois tens de explicar aos teus seguidores que não és um traidor, e eu tenho de explicar aos meus que não sou tonto. E aqui há uma cumplicidade, mesmo entre as delegações.
D. Matteo fala destas questões, deste trabalho, com muito entusiasmo...
- Eu acredito que a guerra é a mãe de todas as pobrezas. Olha para Angola, um país riquíssimo, que vende petróleo a todo o mundo, e que vive na pobreza! Pense-se no sofrimento que causa.
Quando entra na sua igreja, de manhã, vai à espera de encontrar um novo desafio deste tipo ou vai preparado para um dia normal?
- O segredo é não nos colocarmos limites. Ninguém pensava, na Comunidade, ver-se envolvido um dia numa situação como a de Moçambique, ser mediador de paz ou ver como se constitui um exército único. Mas se somos chamados a colaborar, se alguém precisa de nós, não podemos fechar as portas. Por isso, dizemos que não há limites que não seja lutar contra o mal e fazer a caridade.
Assumem-se como herdeiros do apelo à paz feito pelo Papa em Assis?
- Assumimos. Depois de 1986, todos os anos temos promovido encontros. E o que vemos? Tem havido uma participação crescente, uma participação extraordinária. Têm sempre participado chefes de religiões, patriarcas.
Um dos mais significativos foi o de 1989,
em Varsóvia. Belíssimo
! Assinalámos os 50 anos do início da II Grande Guerra e foi impressionante porque, pela primeira vez, muitos muçulmanos foram ver os campos de concentração nazis.

Muçulmanos?...
- Muitos muçulmanos, na verdade, não acreditam nos campos de concentração. Eles pensam que foi o sionismo que inventou todo o cenário dos campos de concentração para justificar a existência do Estado de Israel. Foi a primeira vez que muitos deles foram a Auschwitz. E os muçulmanos levaram uma coroa de flores, tal como fizeram todas as outras religiões.
Como prevê o futuro da Comunidade de Santo Egídio? Cresceu enquanto foi novidade e entrará agora em crise?
- Não. Nós temos de continuar o nosso trabalho com paciência, porque ainda se continua a matar em nome da religião. Este espírito de Assis é uma resposta a esses problemas.
Vive em Itália, um país rodeado de conflitos. Veja-se o caso dos Balcãs e, do outro lado do Mediterrâneo, a Argélia... Como se sente, ao olhar tão de perto essas realidades?
- Há duas maneiras viver. Uma, a mais comum, é pensar que o fogo do meu vizinho não me diz respeito e que ninguém me vai tirar o meu bem-estar. A outra é tentar construir pontes, apoiar a educação, ajudar a criar laços entre os povos. Este último é o nosso caminho. No caso dos Balcãs, a Comunidade envolveu-se durante dois anos e chegou a ter um acordo assinado por Milosevic e Rugova, sobre o funcionamento das escolas no Kosovo.
Isto ainda antes do conflito ter mesmo acontecido. Os sérvios aceitaram ceder algumas escolas, aceitaram que o albanês fosse ensinado nessas escolas, aceitaram algumas coisas. O acordo não foi assinando em conjunto; Milosevic assinou primeiro, Rugova assinou depois. Mas depois os albaneses optaram pela via militar, através do UÇK, e o acordo ficou sem efeito. Rugova era um pacifista, nunca aceitou a violência como método. Era até chamado de Ghandi dos Balcãs. Quando chegou a UÇK, os sérvios disseram: Ai querem a violência?... Então vamos para a violência!.
Para estar tão bem informado, D. Matteo é um padre que lê muitos jornais...
- Eu penso que um padre deve ler o jornal todos os dias. Ou melhor: todos os cristãos devem ler um jornal todos os dias. Caso contrário, vivem nas nuvens. É necessário ler a bíblia e o jornal, todos os dias.
* © 2009 PPFMC Messaggero di S.Antonio Editrice
SAVANA – 14.08.2009

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