Esbirros de circunstâncias (4)
A denúncia
Nenhuma democracia é digna deste nome sem a existência duma imprensa livre. Esta é justamente reconhecida como o quarto poder, pois ela junta-se ao judicial, legislativo e executivo para dar corpo à separação de poderes tão essencial à gestão das diferenças. A liberdade de imprensa, contudo, por si só não garante que a imprensa cumpra com o seu papel de quarto poder. Na verdade, a imprensa pode até ser o ingrediente que vai estragar o prato. Infelizmente, em Moz estamos longe duma imprensa consciente do bom serviço que ela pode prestar à democratização do País. Temos uma imprensa essencialmente ideológica, perplexa e profundamente destructiva, mas fortemente convencida da sua própria utilidade.
Não foi sempre assim. No período imediatamente a seguir à independência não havia, claro, liberdade de imprensa. Mas havia um compromisso social forte que fez da imprensa nessa altura um elemento importantíssimo para a formação duma esfera pública com forte consciência cívica. Os órgãos públicos manteem, apesar de tudo, esta vocação. É verdade que uma maior distância em relação ao poder político seria boa e salutar. Essa distância não existe pelas mesmas razões que fazem com que a imprensa independente, dum modo geral, seja um desastre político, nomeadamente a sua ideologização. A imprensa é útil para a democracia quando ela se constitui como moderadora do debate público, isto é quando ela protege o principal bem da democracia e do desenvolvimento, a saber, a qualidade do debate público. Para isso ela tem que primar pela integridade profissional, isto é noticiar para promover a cidadania e não apenas para satisfazer projectos políticos particulares.
Infelizmente, a imprensa (isto é, uma boa parte; dos jornais só O País é que me parece menos ideológico e, por isso, mais isento) em Moz faz mais no campo da promoção ideológica e menos na promoção da cidadania. Para mim, o momento mais tristemente central desta evolução, o momento em que a imprensa independente se despediu do País e abdicou do seu papel cívico, foi a charada mediática de proclamação do malogrado líder da oposição como figura do ano pelo semanário Savana. O País estava sob a forte ameaça de violência política por conta dum entendimento muito problemático do que significa respeitar a constituição e jornalistas movidos por um entendimento curioso de ética jornalística decidiram conferir a quem ameaçava a ordem constitucional o título de figura do ano mesmo sabendo que isso atiçaria ainda mais o fogo. Como foi isso possível?
Acho que foi possível por causa duma transformação insidiosa da função da imprensa. Com efeito, a imprensa, dum modo geral, abandonou o seu papel de informação e assumiu um outro mais de acordo com as dificuldades típicas de abordagem analítica do País, a saber o papel de denúncia. Informar significa proporcionar às pessoas os elementos de que elas precisam para formarem a sua opinião. Isso significa, num primeiro momento, reconhecer que o jornalista não sabe necessariamente quais são esses elementos e, por isso, ele precisa de dar a palavra a quem sabe – os especialistas das várias matérias. Significa também ter consciência de que não se trata de qualquer opinião, mas sim de algo que reforce a cidadania e os valores republicanos que ela ajuda a proteger. Informar, neste sentido, significa contribuir para a criação e reforço dum espaço público que promove a politização do nosso quotidiano.
O desiderato de informação, porém, foi preterido a favor da denúncia. Esta consiste na simples exposição não apenas do que está mal, mas também dos que são responsáveis por isso. Isto corresponde ao discurso da indústria do desenvolvimento que tem, claro, recursos para promover este tipo de jornalismo. Não há essencialmente nada de errado na exposição de podres. Quando esta exposição, contudo, é feita sem a devida contextualização analítica ela tem o efeito de promover narrativas simplistas dos problemas que o País enfrenta, contribuíndo desse modo para que as suas verdadeiras causas não sejam abordadas. Em relação às dívidas ocultas, por exemplo, a imprensa foi dum modo geral um autêntico desastre, mais interessada em denunciar quem recebeu o quê, quando e como do que em procurar trazer ao debate os factores que concorreram para que elas tivessem sido não só possíveis como também tivessem tido o efeito que tiveram.
A denúncia, na verdade, é a rejeição de valores republicanos. Em democracias maduras, por exemplo, a imprensa pode estar contra o envolvimento do seu país numa guerra qualquer além fronteiras. Uma coisa que nunca vai fazer, contudo, é celebrar os desaires sofridos pelo seu exército, muito menos tratar as forças de defesa e segurança como se fossem o inimigo. Em Moz é justamente o contrário. Parece haver a convicção segundo a qual a isenção se manifesta melhor pela alegria sádica em ver o exército a sofrer revezes. Não parece existir a ideia de que seja possível estar contra a política do governo sem, contudo, abdicar dos valores republicanos que tornam a defesa do País mais importante do que tudo o resto. Mais uma vez (só para trocar mimos), o Savana sai-se mal nisto. Há semanas publicou um artigo escrito claramente por pessoas (provavelmente sul africanas) interessadas em substituir os mercenários russos em Cabo Delgado com diatribes não substanciadas sobre a sua incapacidade de conter os insurgentes. Inconcebível na imprensa responsável duma democracia madura.
Tenho em mim que sem um quarto poder digno desse nome dificilmente o nosso País vai avançar. Infelizmente, a imprensa moçambicana é parte do problema, não da solução. Não há democracia que aguente com desinformação ideológica.
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