Dicas sobre como descortinar a presença de ciências sociais nas coisas
Cada profissão tem a sua maneira de abordar as coisas. As ciências sociais não são exactamente uma profissão. São uma maneira de ver as coisas e nisso têm algo de profissão no sentido de maneira de fazer as coisas. Não existe, naturalmente, consenso sobre a maneira de fazer as coisas. Não obstante, há certas coisas que são básicas e que eu gostaria de partilhar aqui também para o benefício daqueles que se chateiam comigo por termos preferências políticas diferentes, mas dão uma espreitadela aqui para se chatearem ou apenas para resistirem ao impulso de aprender. Ei-las:
1. Há ciências sociais em tudo. Ser cientista social, portanto, é desenvolver a capacidade de estabelecer a sua presença nas coisas. Esta presença manifesta-se sobretudo ao nível de proposta de descrição da maneira de ser das coisas;
2. Por exemplo, quando alguém diz que a corrupção impede o desenvolvimento de Moz. a ciência social aí está no desafio que essa constatação nos lança para ser substanciada. Dito doutro modo, a ciência social é a preocupação de nunca falar à toa, mas sempre com fundamento;
3. Então, a primeira coisa que devo fazer é procurar saber como posso demonstrar isso empiricamente. Isto é, extraio dessa constatação proposições passíveis de serem verificadas na realidade. Vamos lá, posso dizer que quando se desviam fundos públicos enfraquece-se o aparelho de estado, o que por sua vez diminui a sua capacidade de intervenção para o desenvolvimento; posso dizer que quando se aceitam subornos obriga-se o estado a pagar caro por serviços se calhar até de má qualidade; posso também dizer que quando se transmite a imagem dum país corrupto isso afugenta investidores. Portanto, toda a constatação pressupõe a possibilidade de verificação empírica. O dever dum cientista social é sempre de identificar as proposições que nos permitem fazer isso;
4. Só que o processo não é linear. Muitas vezes, o cientista social precisa de definir os seus conceitos com clareza. Na constatação aqui em causa os conceitos centrais são “corrupção” e “desenvolvimento”. O que significam exactamente? Infelizmente, há muita circularidade e ambiguidade na definição destes conceitos porque, no fundo, não são conceitos analíticos. São conceitos normativos, portanto, de defícil operacionalização no trabalho de pesquisa. O grande risco que se corre aqui é de incluir muita coisa que, se calhar, precisaria de ser mantida distinta para uma melhor compreensão das coisas. Assim, o conceito de corrupção implica o abuso do poder, o suborno, peculato, mas também, na prática, a ineficiência burocrática, o contorno de regras institucionais e por aí fora. Para um jornalista investigativo que frequenta a igreja onde a corrupçao é o demônio que precisa de ser exorcisado é fácil concluir, a partir da ausência de medicamentos no hospital da Beira, que a corrupção esteve em acção, mas para um cientista social isso apenas repete uma constatação, não a demonstra. O cientista social quer saber, acima de tudo, o que viabilizou as condutas descritas como sendo corruptas e que atributo nelas seria responsável pela causalidade que se estabelece. A este tipo de perguntas a intelectualidade da indignação responde com uma reafirmação das suas crenças;
5. A definição dos conceitos é um passo preliminar para depois o cientista social decidir que tipo de informações pode obter – na base desses conceitos – e como vai as obter. É aquilo que a gente chama de trabalho de campo que em instituições de combate à corrupção consiste em ir a um sector qualquer, constatar problemas e concluir que esses problemas podem ser reduzidos à corrupção. É a tal circularidade de que falava mais acima. Países em desenvolvimento caracterizam-se pela ineficiência burocrática e uma das coisas que essa ineficiência pode criar é espaço para o tipo de comportamentos descritos como “corrupção”. Nestas circunstâncias, dizer que a corrupção é a causa da ausência de desenvolvimento é como dizer que tossir é a causa da asma. O cúmulo disto é quando se toma o bom desempenho dos países nórdicos nas classificações internacionais de corrupção como prova da importância de combater a corrupção para se ter bom desempenho económico. Ninguém, contudo, acha estranho que a corrupção seja alta nos países com fraco desempenho económico e baixa nos países com forte desempenho económico. Ninguém coloca a hipótese de a relação ser inversa, isto é ser necesssário bom desempenho económico para ter menos corrupção;
6. Em situação ideal, devia ser possível extrair proposições claras para orientarem a recolha de informação na base da qual poderíamos articular a constatação sobre a corrupção e o desenvolvimento com a ideia de que elas estariam numa relação causal;
7. Os cientistas sociais que estiverem a ler isto vão logo notar que fiz aqui o esboço da estrutura dum estudo. Há uma teoria (a relação entre corrupção e desenvolvimento), hipóteses (por exemplo, quando se desvia dinheiro público enfraquece-se o aparelho de estado), operacionalização de conceitos (aqui só falei de corrupção, não disse nada sobre “desenvolvimento”, outro conceito de difícil definição), trabalho de campo (decisões sobre a recolha de informação) e, finalmente, a interpretação, isto é se a informação que eu tenho me permite reafirmar a relação causal entre corrupção e desenvolvimento;
8. Os cientistas sociais mais atentos ainda hão-de ver aqui a ideia central do livro “A leitura sociológica” que escrevi em 2004 com estudantes de sociologia da então UFICS, alguns dos quais são hoje professores universitários (não só em Moz!) ou altos quadros no aparelho do Estado. Não sei se ainda tem à venda, mas não sou suficientemente modesto para não aconselhar a sua leitura, sobretudo aos que teimam em confundir opinião com análise social e indignação com validação;
9. É com este esquema básico que abordo qualquer coisa que chama a minha atenção. Só depois de fazer a coisa passar por este crivo é que emito opinião. O crivo não quer dizer que tenha de fazer pesquisa para me pronunciar. Diz-me apenas que a coisa faz sentido ou não, ou mostra-me o que precisaria de ainda ser feito para que a coisa faça sentido;
10. Eu acho que a capacidade de descortinar a presença das ciências sociais nas coisas é uma parte importante da condição cidadã. Não é possível exercer a cidadania acreditando em tudo que conforta as nossas convicções.
2. Por exemplo, quando alguém diz que a corrupção impede o desenvolvimento de Moz. a ciência social aí está no desafio que essa constatação nos lança para ser substanciada. Dito doutro modo, a ciência social é a preocupação de nunca falar à toa, mas sempre com fundamento;
3. Então, a primeira coisa que devo fazer é procurar saber como posso demonstrar isso empiricamente. Isto é, extraio dessa constatação proposições passíveis de serem verificadas na realidade. Vamos lá, posso dizer que quando se desviam fundos públicos enfraquece-se o aparelho de estado, o que por sua vez diminui a sua capacidade de intervenção para o desenvolvimento; posso dizer que quando se aceitam subornos obriga-se o estado a pagar caro por serviços se calhar até de má qualidade; posso também dizer que quando se transmite a imagem dum país corrupto isso afugenta investidores. Portanto, toda a constatação pressupõe a possibilidade de verificação empírica. O dever dum cientista social é sempre de identificar as proposições que nos permitem fazer isso;
4. Só que o processo não é linear. Muitas vezes, o cientista social precisa de definir os seus conceitos com clareza. Na constatação aqui em causa os conceitos centrais são “corrupção” e “desenvolvimento”. O que significam exactamente? Infelizmente, há muita circularidade e ambiguidade na definição destes conceitos porque, no fundo, não são conceitos analíticos. São conceitos normativos, portanto, de defícil operacionalização no trabalho de pesquisa. O grande risco que se corre aqui é de incluir muita coisa que, se calhar, precisaria de ser mantida distinta para uma melhor compreensão das coisas. Assim, o conceito de corrupção implica o abuso do poder, o suborno, peculato, mas também, na prática, a ineficiência burocrática, o contorno de regras institucionais e por aí fora. Para um jornalista investigativo que frequenta a igreja onde a corrupçao é o demônio que precisa de ser exorcisado é fácil concluir, a partir da ausência de medicamentos no hospital da Beira, que a corrupção esteve em acção, mas para um cientista social isso apenas repete uma constatação, não a demonstra. O cientista social quer saber, acima de tudo, o que viabilizou as condutas descritas como sendo corruptas e que atributo nelas seria responsável pela causalidade que se estabelece. A este tipo de perguntas a intelectualidade da indignação responde com uma reafirmação das suas crenças;
5. A definição dos conceitos é um passo preliminar para depois o cientista social decidir que tipo de informações pode obter – na base desses conceitos – e como vai as obter. É aquilo que a gente chama de trabalho de campo que em instituições de combate à corrupção consiste em ir a um sector qualquer, constatar problemas e concluir que esses problemas podem ser reduzidos à corrupção. É a tal circularidade de que falava mais acima. Países em desenvolvimento caracterizam-se pela ineficiência burocrática e uma das coisas que essa ineficiência pode criar é espaço para o tipo de comportamentos descritos como “corrupção”. Nestas circunstâncias, dizer que a corrupção é a causa da ausência de desenvolvimento é como dizer que tossir é a causa da asma. O cúmulo disto é quando se toma o bom desempenho dos países nórdicos nas classificações internacionais de corrupção como prova da importância de combater a corrupção para se ter bom desempenho económico. Ninguém, contudo, acha estranho que a corrupção seja alta nos países com fraco desempenho económico e baixa nos países com forte desempenho económico. Ninguém coloca a hipótese de a relação ser inversa, isto é ser necesssário bom desempenho económico para ter menos corrupção;
6. Em situação ideal, devia ser possível extrair proposições claras para orientarem a recolha de informação na base da qual poderíamos articular a constatação sobre a corrupção e o desenvolvimento com a ideia de que elas estariam numa relação causal;
7. Os cientistas sociais que estiverem a ler isto vão logo notar que fiz aqui o esboço da estrutura dum estudo. Há uma teoria (a relação entre corrupção e desenvolvimento), hipóteses (por exemplo, quando se desvia dinheiro público enfraquece-se o aparelho de estado), operacionalização de conceitos (aqui só falei de corrupção, não disse nada sobre “desenvolvimento”, outro conceito de difícil definição), trabalho de campo (decisões sobre a recolha de informação) e, finalmente, a interpretação, isto é se a informação que eu tenho me permite reafirmar a relação causal entre corrupção e desenvolvimento;
8. Os cientistas sociais mais atentos ainda hão-de ver aqui a ideia central do livro “A leitura sociológica” que escrevi em 2004 com estudantes de sociologia da então UFICS, alguns dos quais são hoje professores universitários (não só em Moz!) ou altos quadros no aparelho do Estado. Não sei se ainda tem à venda, mas não sou suficientemente modesto para não aconselhar a sua leitura, sobretudo aos que teimam em confundir opinião com análise social e indignação com validação;
9. É com este esquema básico que abordo qualquer coisa que chama a minha atenção. Só depois de fazer a coisa passar por este crivo é que emito opinião. O crivo não quer dizer que tenha de fazer pesquisa para me pronunciar. Diz-me apenas que a coisa faz sentido ou não, ou mostra-me o que precisaria de ainda ser feito para que a coisa faça sentido;
10. Eu acho que a capacidade de descortinar a presença das ciências sociais nas coisas é uma parte importante da condição cidadã. Não é possível exercer a cidadania acreditando em tudo que conforta as nossas convicções.
Eu sei que algumas pessoas se sentem oprimidas por não serem capazes de rebater alguma opinião. Ficam agressivas e começam a ver arrogância onde ela nem sempre existe. Mas há um remédio simples: É descortinar as ciências sociais nas coisas, isto é antes de abrir a boca para opinar verificar se a coisa faz sentido. Não é a leitura de Weber, Simmel, Durkheim, Ouedraogo ou Amadiumi que vai fazer de alguém cientista social. É, sim, a capacidade de se interpelar, isto é de interrogar o seu próprio conhecimento. É o que tento fazer cá do meu “conforto helvético nos” meus “esbirros de circunstância” conforme fui hoje descrito por uma fonte digna de crédito...
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