Dicas sobre como evitar ser enganado por resultados
A Finlândia – Deus abençoe essa nação – está em alta pelas melhores razões possíveis. O seu novo governo combina juventude e igualdade de gênero num espectáculo político jamais visto. É uma versão do Nokia tipo Gaza 2040, isto é muito antes do seu tempo... É natural que a gente se excite ao ver isto, mas há alguns desafios analíticos que é preciso acautelar do ponto de vista das ciências sociais. Esses desafios têm a ver com o risco presente sempre que nos apoiamos em resultados para avaliar a qualidade do processo que os produziu. O meu Maxaquene caíu de divisão (e se calhar merecidamente como dirão os adeptos do Desportivo que de futebol pouco entendem), mas não são apenas as más decisões tomadas pela direcção que explicam isso. São as boas decisões tomadas pelos outros e o facto estrutural de que alguém deve cair no fim do campeonato. Então, vamos ver como isso afecta o raciocínio analítico:
1. É charlatão todo o cientista social que se arroga a capacidade de prever o futuro. O futuro, em ciências sociais, é aquilo que vemos como resultado de alguma coisa. Neste empreendimento nunca se parte do princípio de que o resultado seria fruto de algo propositado. O resultado é sempre um fruto possível, mas não absolutamente certo, da acção anterior;
2. Isto quer dizer que embora a igualdade do gênero na Finlândia não tenha caído do céu, não há também muito valor em comparar esse resultado com a sua ausência em África, pois na Finlândia também podia ter sido diferente;
3. A comparação só é fecunda quando se concentra no processo. O que importa comparar é o processo que levou a Finlândia ao que se vê agora e, nisso, o que se procura saber não é porque esse processo só poderia ter conduzido ao resultado que vemos hoje, mas sim que circunstâncias específicas tornaram esse resultado mais provável do que outros. Em sociologia chama-se a isto de probabilidade objectiva;
4. Sem tirar o mérito à Finlândia, o recuo histórico revela uma “anomalia”, a saber porque só agora, em 2019, é que o país regista tal feito. Com efeito, a Finlândia introduziu o sufrágio universal já em 1906 (ainda sob dominação russa, mas já perto do fim). As mulheres, sobretudo organizações femininas como Martta e Unioni, fundadas respectivamente em 1899 e 1892, tiveram um papel importante não só no nacionalismo finlandês como também na concepção do estado previdência que tanto marcou a cultura política finlandesa nos anos a seguir à Segunda Guerra Europeia. A ideia da mulher que cuida da nação e que se traduziu numa concepção específica do estado (previdência) criou espaço para uma boa parte da política de igualdade do país;
5. Esse papel da mulher não foi apenas fruto de alguma vontade política posta em prática. Ele correspondeu a certos factores estruturais característicamente finlandeses como, por exemplo, o papel dominante da mulher no imaginário nacionalista (no conto épico nacional, o Kalevala, isto é mais do que evidente, sobretudo o papel de Louhi, a matriarca da sociedade matrilinear do norte da Finlândia, descrita como aguerrida e que protege o país dos seus inimigos; na verdade, a mulher sempre teve forte protagonismo naquele país; até aos anos 60, 65% da população era rural e lá o papel da mulher nunca foi subalterno apesar da igreja luterana; demonstra isso o papel reservado à mulher de cuidar do gado bovino e todas as representações daí decorrentes);
6. O contexto, portanto, em que se logra a igualdade do gênero na Finlândia e em Moz é completamente diferente. Por isso, o resultado que se verifica lá hoje dificilmente pode servir como termo de comparação. Isto não quer dizer que em Moz não se possa fazer mais. Quer dizer que é preciso apreciar o que se fez (ou não se fez) dentro do seu devido contexto. Por exemplo, os esforços empreendidos pela Frelimo em prol da emancipação não produziram resultados finlandeses apenas por falta de vontade, mas também porque a forma como a questão do gênero se coloca (de cima para baixo) e o contexto em que ela se coloca (com um regime colonial e trabalho missionário que promovem e reforçam sistemas patriarcais dominantes) desenvolvem em si uma dinâmica própria que precisa de outros instrumentos analíticos. E mesmo assim, ainda que seja pouco, o que se fez a este nível no nosso País é extraordinário. Muito cedo se criaram mecanismos de valorização do talento e competências de mulheres, o que faz com que elas sejam um factor muito importante do devir do nosso País, mais importante, por exemplo, do que as mulheres foram e têm sido em muitos países “desenvolvidos”. A Luísa Diogo não foi Primeira Ministra por ser mulher; foi pela sua comprovada competência e ao comparar Moz com Finlândia a gente precisa de saber que estruturas foram essas que em Moz criaram a possibilidade do reconhecimento dessa competência;
7. Como teria sido a política de igualdade do gênero se a Finlândia tivesse tido uma trajectória económica como a da Albânia? Infelizmente, aqui está outro elemento dos riscos do foco nos resultados. Dá a impressão de que tudo o que foi feito só podia dar neste resultado. O “milagre económico” finlandês foi também propiciado por factores aleatórios. A insistência da União Soviética de ser paga indemnizações militares em bens manufacturados contribuiu muito para a industrialização da Finlândia (efeito positivo duma política perversa) e, também, para a forte inclusão da mulher no mercado de trabalho. O facto de a Finlândia comprar o seu petróleo da União Soviética também contribuiu para que ela fosse poupada os efeitos negativos da crise da OPEP dos anos setenta, algo que deu ao país uma certa vantagem na Europa;
8. Então, o caminho que leva a Finlândia ao que vemos hoje é sinuoso. Dele não me parece possível extrair qualquer logaritmo útil a ser aplicado pelos países que querem seguir o exemplo. Isto não quer dizer que não se possa celebrar esse resultado. O que me parece imprudente é tomar isso como medida do compromisso finlandês com esse fim e da ausência desse compromisso da parte dos outros (malta nós);
9. Curiosamente, e sem querer promover a complacência, pode ser que no cômputo geral o que se fez em Moz em apenas 40 anos seja mais digno de nota do que o que os finlandeses fizeram em 113 anos!
10. Em 2007 viajei de ferry de Helsínquia (Finlândia) a Tallin (Estónia) – e de regresso – com a minha filha mais nova que na altura tinha cerca de 10 anos. Passamos o tempo todo a contar o número de jovens do sexo masculino que estavam embriagados, mas depois desistimos e começamos a contar o número dos que não estavam embriagados... é um dado anedótico, portanto, sem grande valor empírico, mas lembro-me de pensar na altura que para entender aquele país eu precisaria de saber mais sobre as suas mulheres (no bom e no mau sentido...).
2. Isto quer dizer que embora a igualdade do gênero na Finlândia não tenha caído do céu, não há também muito valor em comparar esse resultado com a sua ausência em África, pois na Finlândia também podia ter sido diferente;
3. A comparação só é fecunda quando se concentra no processo. O que importa comparar é o processo que levou a Finlândia ao que se vê agora e, nisso, o que se procura saber não é porque esse processo só poderia ter conduzido ao resultado que vemos hoje, mas sim que circunstâncias específicas tornaram esse resultado mais provável do que outros. Em sociologia chama-se a isto de probabilidade objectiva;
4. Sem tirar o mérito à Finlândia, o recuo histórico revela uma “anomalia”, a saber porque só agora, em 2019, é que o país regista tal feito. Com efeito, a Finlândia introduziu o sufrágio universal já em 1906 (ainda sob dominação russa, mas já perto do fim). As mulheres, sobretudo organizações femininas como Martta e Unioni, fundadas respectivamente em 1899 e 1892, tiveram um papel importante não só no nacionalismo finlandês como também na concepção do estado previdência que tanto marcou a cultura política finlandesa nos anos a seguir à Segunda Guerra Europeia. A ideia da mulher que cuida da nação e que se traduziu numa concepção específica do estado (previdência) criou espaço para uma boa parte da política de igualdade do país;
5. Esse papel da mulher não foi apenas fruto de alguma vontade política posta em prática. Ele correspondeu a certos factores estruturais característicamente finlandeses como, por exemplo, o papel dominante da mulher no imaginário nacionalista (no conto épico nacional, o Kalevala, isto é mais do que evidente, sobretudo o papel de Louhi, a matriarca da sociedade matrilinear do norte da Finlândia, descrita como aguerrida e que protege o país dos seus inimigos; na verdade, a mulher sempre teve forte protagonismo naquele país; até aos anos 60, 65% da população era rural e lá o papel da mulher nunca foi subalterno apesar da igreja luterana; demonstra isso o papel reservado à mulher de cuidar do gado bovino e todas as representações daí decorrentes);
6. O contexto, portanto, em que se logra a igualdade do gênero na Finlândia e em Moz é completamente diferente. Por isso, o resultado que se verifica lá hoje dificilmente pode servir como termo de comparação. Isto não quer dizer que em Moz não se possa fazer mais. Quer dizer que é preciso apreciar o que se fez (ou não se fez) dentro do seu devido contexto. Por exemplo, os esforços empreendidos pela Frelimo em prol da emancipação não produziram resultados finlandeses apenas por falta de vontade, mas também porque a forma como a questão do gênero se coloca (de cima para baixo) e o contexto em que ela se coloca (com um regime colonial e trabalho missionário que promovem e reforçam sistemas patriarcais dominantes) desenvolvem em si uma dinâmica própria que precisa de outros instrumentos analíticos. E mesmo assim, ainda que seja pouco, o que se fez a este nível no nosso País é extraordinário. Muito cedo se criaram mecanismos de valorização do talento e competências de mulheres, o que faz com que elas sejam um factor muito importante do devir do nosso País, mais importante, por exemplo, do que as mulheres foram e têm sido em muitos países “desenvolvidos”. A Luísa Diogo não foi Primeira Ministra por ser mulher; foi pela sua comprovada competência e ao comparar Moz com Finlândia a gente precisa de saber que estruturas foram essas que em Moz criaram a possibilidade do reconhecimento dessa competência;
7. Como teria sido a política de igualdade do gênero se a Finlândia tivesse tido uma trajectória económica como a da Albânia? Infelizmente, aqui está outro elemento dos riscos do foco nos resultados. Dá a impressão de que tudo o que foi feito só podia dar neste resultado. O “milagre económico” finlandês foi também propiciado por factores aleatórios. A insistência da União Soviética de ser paga indemnizações militares em bens manufacturados contribuiu muito para a industrialização da Finlândia (efeito positivo duma política perversa) e, também, para a forte inclusão da mulher no mercado de trabalho. O facto de a Finlândia comprar o seu petróleo da União Soviética também contribuiu para que ela fosse poupada os efeitos negativos da crise da OPEP dos anos setenta, algo que deu ao país uma certa vantagem na Europa;
8. Então, o caminho que leva a Finlândia ao que vemos hoje é sinuoso. Dele não me parece possível extrair qualquer logaritmo útil a ser aplicado pelos países que querem seguir o exemplo. Isto não quer dizer que não se possa celebrar esse resultado. O que me parece imprudente é tomar isso como medida do compromisso finlandês com esse fim e da ausência desse compromisso da parte dos outros (malta nós);
9. Curiosamente, e sem querer promover a complacência, pode ser que no cômputo geral o que se fez em Moz em apenas 40 anos seja mais digno de nota do que o que os finlandeses fizeram em 113 anos!
10. Em 2007 viajei de ferry de Helsínquia (Finlândia) a Tallin (Estónia) – e de regresso – com a minha filha mais nova que na altura tinha cerca de 10 anos. Passamos o tempo todo a contar o número de jovens do sexo masculino que estavam embriagados, mas depois desistimos e começamos a contar o número dos que não estavam embriagados... é um dado anedótico, portanto, sem grande valor empírico, mas lembro-me de pensar na altura que para entender aquele país eu precisaria de saber mais sobre as suas mulheres (no bom e no mau sentido...).
Não há nada de errado em aplaudir os bons exemplos. É até bastante salutar desejar que eles sejam emulados entre nós. O que me parece problemático é fazer isso sem atenção aos contextos que são diferentes e ainda com o risco de menosprezar aquilo que pode até ter sido feito melhor entre nós. Isso acontece, infelizmente, quando se descuram aspectos analíticos cruciais como, por exemplo, a relativa marginalidade de resultados em relação a processos.
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