quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A Lei da Amnistia Pariu Um Rato




A 12 de Agosto de 2016, com a aprovação da Lei da Amnistia (Lei n.º 11/12), José Eduardo dos Santos (JES) julgava ter garantido a impunidade do seu bando de saqueadores. Esta lei, nos termos do seu artigo 1.º, n.º 1, amnistiava todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015.
Convém referir que tal norma beneficia de protecção constitucional, por via do artigo 62.º da Constituição (CRA), segundo o qual são considerados válidos e irreversíveis os efeitos jurídicos dos actos de amnistia praticados ao abrigo de lei competente. Isto quer dizer que não é possível fazer aprovar agora uma nova lei para revogar a anterior Lei da Amnistia.
Contudo, como aliás aconteceu com várias normas jurídicas apressadamente redigidas no final do regime de JES, esta lei promete mais do que aquilo que é capaz de conceder. Na verdade, e ao contrário do que poderia pensar-se, vários delitos não ficaram amnistiados.
Normas internacionais e peculato
Algumas restrições à Lei da Amnistia provêm de normas internacionais aplicáveis directamente no ordenamento jurídico angolano, por força do artigo 13.º da CRA, que no seu número 1.º estabelece o seguinte: “O direito internacional geral ou comum, recebido nos termos da presente Constituição, faz parte integrante da ordem jurídica angolana.” O n.º 2 determina: “Os tratados e acordos internacionais regularmente aprovados ou ratificados vigoram na ordem jurídica angolana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica internacional e enquanto vincularem internacionalmente o Estado angolano.” A este preceito acrescem ainda os artigos 26.º e 27.º da Constituição.
Outra restrição advém das molduras penais. Doze anos é uma pena de prisão elevada para Portugal, mas não no direito angolano. Por exemplo, o crime de peculato, um dos principais que terão sido cometidos pelos sequazes de JES, e que significa, em termos simples, desvio / apropriação indevida de dinheiros públicos, é punível até 16 anos de cadeia. Ora, assim sendo, isto significa que os “grandes desviadores de dinheiro público” não foram amnistiados.
Quer sobre a influência do direito internacional, quer sobre a influência das molduras penais (penas de prisão) na restrição da eficácia da Lei da Amnistia, escreveremos detalhadamente noutra oportunidade.
Crime continuado
Hoje, vamos abordar outra forma de limitação da Lei da Amnistia: a ocorrência do crime continuado.
Um crime continuado é, em linguagem não jurídica, a prática criminosa de um indivíduo repetida ao longo do tempo. Imaginemos um funcionário público que todos os dias, durante 20 anos, retira 100 kwanzas do cofre da sua repartição.
Neste caso hipotético, estamos perante uma situação em que existe uma pluralidade de factos (rouba dinheiro em diferentes dias) a que corresponde uma unidade de acção (comete sempre o mesmo crime). A situação deve então ser tratada como um único crime. O crime continuado pode entender-se como uma pluralidade de acções semelhantes, objectiva e subjectivamente, que são objecto de valoração jurídica unitária.
Assim, se pensarmos num fictício general K. ou engenheiro M. e verificarmos que, entre 2010 e 2017, ambos procederam sistematicamente ao desvio de fundos públicos para a sua propriedade privada, repetindo o mesmo comportamento e criando esquemas semelhantes, poderemos argumentar que não estamos perante vários crimes, mesmo se um desvio tiver sido realizado na Sonangol, outro no Ministério da Construção e outro num diferente organismo. O ponto fundamental é que um indivíduo repete o mesmo comportamento ao longo do tempo.
Logo, neste enquadramento, um dirigente que tenha saqueado em 2014 (e supostamente esteja abrangido pela Lei da Amnistia que JES aprovou), continuando a cometer o crime depois disso, de acordo com a teoria do crime continuado poderá ver esse seu comportamento unificado e punido pela soma dos actos praticados. Deste modo, a Lei da Amnistia não tem qualquer efeito neste caso.
Obviamente, a lei angolana não estabelece esta interpretação dos factos de maneira inequívoca. Contudo, permite elaborar essa teoria, que no caso português foi desenvolvida por alguma doutrina ainda na vigência do Código Penal de 1886, ainda em vigor em Angola. Muitos viam no 3.º ponto do art. 421.º, introduzido em 1931, a base do crime continuado que serviu para futura elaboração jurisprudencial.
Basta então aplicar-se esta interpretação da lei para que todas as práticas de delapidação continuada do património público em Angola possam ser objecto de investigação e acusação criminal. Quem começou a desviar dinheiro público antes de 2015 e tiver continuado depois, pode efectivamente ver unificado todo esse comportamento num único crime, que só termina depois de 2015, e ser punido pela totalidade da prevaricação.
Exemplifiquemos. O nosso imaginário general K. apoderou-se de 200 milhões de dólares antes de 2015. Em 2016 “apenas” se apodera de uma ninharia: um milhão de dólares. No entanto, se aplicarmos a teoria do crime continuado, o general K. terá de responder por crime de peculato no valor de 201 milhões de dólares.
Assim, só estão livres de punição os dirigentes e funcionários públicos que tiverem deixado de roubar a 11 de Novembro de 2015 e mais nenhum crime semelhante tiverem cometido depois disso, absolutamente nada. Aqueles que, de alguma forma, tenham prosseguido a sua prática criminosa poderão ver os crimes unificados num só e punidos pela totalidade.
Como se referiu, esta é uma das limitações subjacentes à Lei da Amnistia. Tal como os crimes continuados são unificados e a contagem para a prescrição só começa no último acto, o mesmo se aplica em termos de amnistia: a continuação do crime é unificada e o crime afere-se pelo último momento em que foi cometido.
De acordo com os ensinamentos da criminologia, aquele que pratica o crime continuado adopta um comportamento quase compulsivo e repetitivo. Serão raros os casos de dirigentes e funcionários públicos que terão terminado as suas acções criminosas automaticamente a 11 de Novembro de 2015. Na maior parte dos casos, terão continuado. E para esses não haverá Lei da Amnistia.
O branqueamento de capitais como figura autónoma
Mas há ainda aqueles que terão desviado biliões de dólares até 2015 e que, portanto, não precisavam de continuar a roubar. Talvez a maior parte tenha parado de o fazer. Só que também estes indivíduos enfrentam um problema: a prática do crime de branqueamento de capitais.
O facto de o crime inicial (o desvio de fundos) ser amnistiado não preclude a investigação e acusação por branqueamento de capitais.
A jurisprudência mais actual – ainda que possa ser discutida a sua pertinência, e o autor destas linhas discute – defende que a punição por branqueamento de capitais não pressupõe a necessidade de existência de um agente determinado ou condenação pelo crime subjacente. A lei exige apenas o conhecimento da prática da infracção principal, e não a sua punição. O crime de branqueamento e a respectiva reacção penal são autónomos em relação ao facto ilícito típico subjacente. Por consequência, pode acontecer que o crime inicial não seja efectivamente punido, seja por morte, por prescrição ou por amnistia.
Portanto, mesmo nesses casos, pode continuar a punir-se os branqueamentos. Imaginemos que o fictício engenheiro M. tinha desviado biliões de dólares até 2014, com práticas que não configuravam o crime de peculato, e por isso estava amnistiado. Contudo, em 2016, o engenheiro M. comprou, com esses biliões desviados, um avião a jacto que hoje continua a usar. Isto significa que está a branquear o dinheiro recebido ilicitamente. Neste caso, a investigação por branqueamento pode prosseguir e o indivíduo pode ser condenado por essa prática, mesmo que o crime inicial esteja amnistiado.
Conclusão
Se formos a ver bem, no fim de contas, a Lei da Amnistia não tem afinal tantas salvaguardas como se poderia pensar, e quase todas as prevaricações cometidas no passado podem ser julgadas e devidamente punidas. Haja coragem jurídica para agir.

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