A GUERRA NA SÍRIA
Sentenças de morte são entregues em audiências de não mais de três minutos. A prisão militar de Saydnaya, que terá chegado a ter 20 mil detidos, tem agora espaços vazios.
À medida que o Governo sírio consolida o controlo depois de anos de guerra civil, o exército do Presidente Bashar al-Assad está a aumentar o número de execuções de presos políticos, com juízes militares a acelerar o ritmo de condenações à pena de morte, dizem sobreviventes da mais conhecida prisão do país.
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Em entrevistas, dezenas de sírios recentemente libertados da prisão militar de Saydnaya, em Damasco, descreveram uma campanha política do Governo para se livrar dos detidos. Os antigos presos dizem que estes prisioneiros estão a ser transferidos de prisões de toda a Síria para se juntar a detidos no corredor da morte na prisão de Saydnaya, e serem depois executados em enforcamentos antes do nascer do sol.
Apesar destas transferências de novos detidos, o número de prisioneiros nas celas de Saydnaya – que no seu ponto alto terão sido entre 10 e 20 mil – diminuiu muito por causa da velocidade das execuções, e pelo menos uma secção da prisão está agora quase vazia, dizem os antigos detidos.
Alguns destes ex-prisioneiros tinham sido, eles próprios, condenados à morte, mas escaparam depois de familiares terem pago dezenas de milhares de dólares pela sua libertação.
Todos os entrevistados pediram para o seu nome não ser usado por medo de retaliação contra as suas famílias.
Dois dos antigos detidos foram presentes duas vezes em alturas diferentes da guerra a um juiz militar, um deles no início da guerra e de novo agora. Descreveu que a atitude era agora mais dura: “Não houve qualquer espaço para clemência, quase toda a gente na sala foi condenada à morte. Estavam a ler as sentenças alto”.
Os julgamentos são rápidos, duram no máximo uns três minutos. Os detidos não têm advogado, e às vezes assinam confissões sob tortura.
Muitos prisioneiros morrem antes de chegar a esta fase: de subnutrição, falta de cuidados médicos, de agressões físicas.
Um antigo detido diz como guardas forçaram um tubo de metal pela garganta de um companheiro de cela. “Deixaram-no amarrado à parede, para morrer. O corpo ficou connosco toda a noite”, contou um mecânico de 30 anos de Homs. Outro descreveu como os guardas forçaram os prisioneiros da sua cela a matar um outro detido, da cidade de Deraa, ao pontapé.
Imagens de satélite da prisão datadas de Março mostram uma acumulação de manchas escuras que peritos forenses, que as avaliaram a pedido do Washington Post, dizem que parecem ser de cadáveres humanos.
“Enquanto a análise e os dados disponíveis não provam execuções em massa nestas instalações, [as imagens] corroboram as descrições de testemunhas e são consistentes com elas”, disse Isaac Baker, especialista de um centro para o uso de tecnologia de informação na Universidade de Harvard.
Dois antigos detidos que estavam em celas perto da sala dos guardas descrevem ter ouvido conversas sobre execuções no início de Março. “Falaram de uma série de cadáveres que tinham sido levados para o pátio”, disse um homem.
Outras imagens de terrenos militares perto de Damasco, anteriormente identificado pela Amnistia Internacional como um local de sepulturas em massa, parece mostrar um aumento no número de sepulturas. Desertores que trabalharam em locais ligados às prisões militares dizem que esta zona será, provavelmente, a localização para os enterros em massa dos prisioneiros de Saydnaya. No cemitério da estrada que sai de Damasco em direcção ao Sul surgiram dezenas de novas campas desde o início do Inverno.
Cem mil desaparecidos
Após sete anos de guerra, mais de cem mil sírios continuam desaparecidos. As Nações Unidas e grupos de defesa de direitos humanos pensam que milhares, se não mesmo dezenas de milhares, estarão mortos.
Ainda que todos os lados envolvidos no conflito tenham prendido, raptado, e matado prisioneiros, a Rede Síria para os Direitos Humanos estima que até 90% destes tenham passado por uma rede de prisões do Governo onde a tortura, falta de alimento e outras formas de tratamento letal eram sistematicamente usadas, e com o objectivo de matar.
O Governo sírio não respondeu a pedidos de comentário a este artigo.
“Quando estás em Saydnaya, não consegues pensar em nada, não consegues sequer falar contigo próprio”, descreveu Mohamed, 28 anos, um de vários entrevistados. Contou como os guardas obrigavam os presos a estar em silêncio nas celas, onde dormiam em cobertores infestados de carraças, em chão pegajoso de fluidos corporais. “Os espancamentos são tortura. O silêncio é tortura.”
Os que deixou para trás ficaram como “animais numa jaula”, descreveu. “Alguns desistiram, outros ficaram malucos. A morte seria uma bênção para eles. É o que esperam”, contou.
Mohamed esteve numa cela no chamado corredor da morte durante sete dias: depois de irem buscar os presos às suas celas, os guardas tiram-lhes a roupa e deixam-nos assim juntos numa cela na cave. Assim ficam até à data da execução, uma semana depois. Mas no dia da execução, não chamaram o seu nome.
Soube depois que a família tinha pago uma enorme quantia a um intermediário do Governo para conseguir a sua libertação. Uma rede destes intermediários surgiu durante a guerra para levar notícias dos detidos aos familiares, que de contrário não têm qualquer informação, e por vezes para conseguir a libertação em troca de elevados montantes.
Hassan, 29 anos, agricultor, também foi libertado assim. Transferido de uma prisão civil do Sul para Saydnaya, conta como os dias antes da execução se passaram na cela apinhada, com os homens a contar as suas histórias e os seus arrependimentos. “O que se via nas caras era puro terror. A dada altura, todos parámos de falar.” Hassan também escapou graças ao dinheiro pago pela sua família.
Mais notificações de mortes
O relatado aumento nas penas de morte aconteceu numa altura em que decorrem negociações de paz em Astana, quando os rebeldes estão praticamente derrotados, relegados a uma pequena zona no noroeste do país. Responsáveis da Rússia e Irão (que apoiam o regime de Assad) e da vizinha Turquia tentam negociar um fim para o conflito.
O Governo sírio começou entretanto a emitir notas de anúncio de mortes de prisioneiros políticos de modo mais acelerado desde Janeiro – em muitos casos, pareciam relativas a pessoas que se suspeita que já estariam mortas desde o início do conflito.
A comissão da ONU que investiga crimes de guerra na Síria diz que estas notificações mostram que o governo tem sido responsável pelas mortes de prisioneiros cuja detenção nega há anos.
“Pensamos que está obviamente ligado ao facto de o Estado estar a olhar para além do conflito, já que deixou de sentir que a sua existência está totalmente em perigo, e tem de começar a planear como lida com a população em geral”, disse Hanny Megally, uma das principais investigadoras desta comissão. “As pessoas estão a pedir mais informação sobre o que aconteceu, porquê, onde. Onde estão os corpos?”
Hassan ainda hoje acorda a gritar pelo que sofreu nos anos de detenção – e na fuga para a Turquia, onde perdeu uma perna na explosão de uma mina. “A maioria dos que foram meus companheiros de cela estão mortos. Penso sempre nas pessoas que ainda lá estão.”
Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post
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