30.12.2018 às 22h00
Doze chefes de Estado e de Governo marcam presença na posse de Bolsonaro. Dos [outros] sete países lusófonos comparecem Jorge Carlos Fonseca de Cabo Verde e Marcelo Rebelo de Sousa que é também o único Presidente da União Europeia que assiste à cerimónia de posse do 38º Presidente do Brasil
Há 33 anos, o Brasil acordou com a notícia de que o Presidente eleito não tomaria posse nesse dia. Tancredo Neves, o D. Sebastião dos brasileiros e primeiro Presidente civil eleito depois de 21 anos de regime militar, estava gravemente doente. Eram 3h da manhã quando Ulysses Guimarães, presidente do Parlamento, comunicou aos deputados que Tancredo tinha sido hospitalizado e que seria empossado o vice-presidente, José Sarney.
Nas vésperas de Jair Messias Bolsonaro tomar posse, a 1 de janeiro — aparentemente bem recuperado do atentado que sofreu durante a campanha eleitoral —, a comentadora Cora Rónai, politicamente tida como liberal, disse ao Expresso que Bolsonaro “é uma pessoa singularmente despreparada para o cargo, muito polémica, de modo que é difícil distinguir o que é ruído e o que é preocupação real. Para mim, fica cada vez mais clara a falta de qualquer projeto de Governo: o nível de improvisação é inacreditável e assustador”. O susto de Cora não se fica pelas “ideias” de Bolsonaro nem pela “sua ignorância sobre mudanças climáticas e política internacional, sobre educação e economia”.
Cora, que é filha do refugiado judeu húngaro Paulo Rónai — nome maior das Letras brasileiras pelo seu trabalho como tradutor e ensaísta —, vê “com uma mistura de todos os maus sentimentos possíveis, mas sobretudo com desgosto e constrangimento”, as declarações do novo líder do Brasil, depois de ter conversado ao telefone com o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, tantas vezes citado na imprensa internacional pelas suas declarações xenófobas e antieuropeias. No final desse telefonema, Bolsonaro disse, em entrevista concedida à imprensa brasileira no Rio de Janeiro, que Orbán “está muito feliz” com a sua eleição e que serão “grandes parceiros para o futuro”.
Orbán é um dos três primeiros-ministros (os outros representam Israel e Marrocos) que assistirá à investidura de Bolsonaro. E esse facto não deixará de incomodar milhares de brasileiros que, como Cora ou o ex-diretor da Biblioteca Nacional do Brasil Renato Lessa, têm ligações familiares mais ou menos diretas a judeus que escaparam ao Holocausto e fizeram do Brasil a sua nova pátria.
“DESCONSTRUIR OS ÚLTIMOS 30 ANOS”
“O desenho geral da equipa [governamental] indica a presença de um esforço para dissipar — ou mesmo eliminar — as marcas da modernidade cultural, fixadas no país a partir do início do século passado, com o movimento modernista”, diz Renato Lessa, catedrático de Filosofia Política. “Em particular, trata-se de ‘desconstruir’ os efeitos dos últimos 30 anos — a partir da Constituição de 1988 —, ou seja, o tempo em que o Brasil viveu os seus momentos de maior liberdade política e cultural. A par disso, promete-se a desmontagem dos mecanismos de proteção social, e o que se avizinha é a aplicação de um experimento de liberalismo económico à outrance”, isto é, um liberalismo retrógrado e ultrapassado.
Com uma visão política à esquerda da de Cora Rónai e à direita da de Renato Lessa, o catedrático de Ciência Política Octávio Amorim Neto diz que “as linhas gerais do programa de Governo ficaram muito claras” dois meses após a eleição. O novo Presidente quer uma “condução tecnocrática da política, com ativa participação de militares na reserva, um [modelo de] liberalismo económico e de conservadorismo no plano dos valores. O combate à corrupção, as propostas duras na área de segurança pública” também fazem parte da agenda governativa.
Na opinião de Neto e Rónai, as liberdades institucionais não estão ameaçadas por agora. Lessa discorda e diz que “o poder judiciário, assim como as forças policiais, são maciçamente conservadores, ressalvando a presença de um núcleo liberal que poderá opor alguma resistência às inclinações iliberais do futuro Presidente”. É visível a satisfação dos aparelhos policiais — federais e estaduais — com a vitória de Bolsonaro. A polícia no Brasil é de direita e, em medida não desprezível, refratária à noção civilizatória de que deve ser submetida aos ditames do Estado de direito. “O termo ‘direita’, no léxico político do português brasileiro, nada tem a ver com o seu uso em Portugal. Em Portugal, julgo ser impensável que um político da direita declare publicamente que pretende enviar militantes ou políticos de partidos de esquerda para o Tarrafal. Pois bem, é o que Bolsonaro prometeu na semana da sua eleição: enviar a ‘esquerdalha’ para a Ponta da Praia, local de sevícias de presos políticos durante a ditadura militar brasileira.”
“Os nomes indigitados para ministros são, na sua grande maioria, coerentes com as linhas gerais do programa de Governo de Bolsonaro: um número baixo de ministros ligados aos partidos políticos e um número elevado de ministros que são militares. Há grandes dúvidas a respeito de se os ministros partidários serão suficientes para conferir ao Governo uma maioria legislativa estável”, comenta Neto. Na opinião de Rónai, “é mais fácil apontar os sectores que estão menos em risco” do que o contrário: “Paulo Guedes, [ministro] na Economia, tem chamado nomes respeitáveis, e o juiz Sérgio Moro, por menos que se goste dele — os lulistas odeiam-no —, é a garantia de que as leis serão respeitadas. Ele tornou-se uma espécie de avalista do Governo perante boa parcela da opinião pública. O resto do Ministério é o triunfo do baixo clero.” Para Lessa, “Bolsonaro, ao contrário dos antibióticos de largo espectro, pode ser definido como um veneno de amplo espectro. Ele é o desaguadouro — e o elemento de estímulo — de várias vertentes antiliberais e socialmente regressivas, presentes na vida brasileira. A extensão dos danos que imporá ao país dependerá de suas capacidades de gestão, que não parecem ser extraordinárias. Mas também dependerá da reação dos brasileiros, cuja maioria não o escolheu como seu Presidente.”
O tempo dirá se a sorte o vai continuar a proteger como o protegeu da facada, escapando assim à má sorte de Tancredo em 1985, ou de Rodrigues Alves em 1918, que morreu vítima de pneumónica, a maior epidemia do século XX. E se vai ser mesmo um grande aliado de Donald Trump, fazendo “uma reorientação de cunho dogmático na área diplomática”, como vaticina Renato Lessa: “O Brasil deixará de se apresentar ao mundo como mediador de conflitos — agora é um dos poucos países que mantém relações diplomáticas com todos os demais — para se converter em um campeão ideológico de uma nova coligação internacional cristã, como quer o futuro ministro das Relações Exteriores”, Ernesto Araújo.
Para já, sabe-se que Trump não vai à posse e que será Mike Pompeo a representar os Estados Unidos. O PR de Portugal é o único chefe de Estado da UE que assistirá ao longo cerimonial da posse, tal como o ex-presidente Jorge Sampaio assistiu à posse de Lula da Silva em janeiro de 2003.
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