sábado, 17 de novembro de 2018

"Se as mulheres que trabalham nas fábricas parassem 20 minutos perdíamos a guerra"

Das fábricas ao batalhão da morte, a primeira grande guerra das mulheres. A conscrição em massa dos homens abre espaço para as mulheres em profissões que lhes eram interditas; na frente de batalha, milhares arriscam a vida, e na Rússia são formados batalhões femininos de combate. Mas, no fim do conflito, tentar-se-á voltar com o relógio atrás.

"Se as mulheres que trabalham nas fábricas parassem 20 minutos perderíamos a guerra."
As palavras são de Joseph Jacques Césaire Joffre, o general que comandou o exército francês na Primeira Guerra Mundial. Refere-se sobretudo às operárias da indústria de armamento, para as quais se fixaram diminutivos, talvez por carinho, talvez por, apesar de tanto se elogiar o seu esforço, serem encaradas como suplentes num trabalho que não era realmente para elas: munitionnettes, obusettes. As fotografias de época mostram-nos, às centenas, nas fábricas, mulheres de calças ou fato de macaco, mulheres a reparar locomotivas, a conduzir elétricos (uma ocupação na qual foram impostas, já que os sindicatos se opunham, com a sua contratação a especificar que seriam despedidas quando os legítimos proprietários dos postos de trabalho, os homens, regressassem), a laborar no campo, inclusive puxando arados, já que as bestas de carga eram requisitadas para o esforço de guerra.
"Se as mulheres que trabalham nas fábricas parassem 20 minutos perderíamos a guerra."
Respondiam assim ao apelo do então presidente do Conselho, René Viviani, que no início do conflito lhes pedira para substituírem os homens - um apelo que demonstrava bem como a interdição que lhes era imposta numa série de áreas e a sua qualificação como "homens com defeito" era sem sentido.

O trabalho que liberta

Em França e nos outros países envolvidos no conflito a resposta das mulheres foi massiva - colocando, mesmo as mais ativistas dentre elas, entre parêntesis a sua luta pela igualdade, nomeadamente pelo direito ao voto, suspendendo a ideia de uma "internacional das mulheres". Nas palavras d a jornalista francesa e sufragista Jane Misme: "Durante a guerra, as mulheres do inimigo serão também o nosso inimigo."
Os números são eloquentes: no Reino Unido, o número de mulheres que trabalhavam por salário subiu 555 por cento em 1914 e 1918, para 7,5 milhões; em 1917 em cada três trabalhadores assalariados, um já era mulher. Quase um milhão delas trabalhava na indústria do armamento; no arsenal de Woolwich, no início do conflito, trabalhavam 14 mil homens e nenhuma mulher; em 1918 estas eram já metade dos 100 mil operários. E não se limitavam a trabalhavam duramente - em França, sete dias por semana, mais de 10 horas por dia -; corriam riscos terríveis. Alvo de bombardeamentos por Zepelins, as fábricas de armamento eram também potencialmente mortíferas devido ao tipo de produtos manipulados, muitos deles extremamente tóxicos. As operárias perdiam o cabelo, tinham horríveis afeções de pele, ficavam sem apetite, e com múltiplos sintomas que em alguns casos evoluíam até intoxicações fatais. Há 400 mortes de mulheres contabilizadas em resultado deste tipo de trabalho no Reino Unido, mas terão sido provavelmente muitas mais.
"Antes de 1914 a maioria não podia gastar dinheiro sem autorização dos maridos, agora viam os seus salários aumentar de forma significativa: no início da guerra, o salário médio semanal das mulheres era de 10 xelins; em 1916 já era de 30 xelins (uma libra e meia) e duas libras no fim da guerra."
A dureza e o perigo deste trabalho, tornado ainda mais pesado pelo facto de muitas dessas mulheres terem filhos e serem obrigadas, ao fim de 10 e 12 horas de jornada, a ainda tratar de compras e alimentação para a família, correspondeu no entanto a uma alteração significativa no estatuto feminino. Não só os salários, apesar de quase sempre inferiores aos dos homens, eram mesmo assim mais elevados dos que os praticados nas funções que as mulheres desempenhavam antes da guerra - serviço doméstico, empregada do comércio, outros trabalhos em fábrica - como, sublinha um artigo de 2015 na Socialist Review (Women and the First World War, de Jan Nielsen), as mulheres da classe trabalhadora experimentaram uma liberdade social sem precedentes.
"A trabalhadora da indústria de armamento tornou-se o símbolo da modernidade. Em termos superficiais, isso era evidenciado pela sua aparência. Corpetes e ganchos de cabelo continham metal -- um material necessário para o material de guerra - e foram substituídos por roupas largas e cabelo curto, enquanto que as calças [indumentária até aí exclusivamente masculina] eram adotadas por quase todas. Socialmente, as mulheres faziam o que antes só nos homens era observado -- fumar, ir aos pubs ou ao cinema, sós ou com outras mulheres. Muitas saíram de casa para ficar mais perto das fábricas, ficando em hospedarias (...). Antes de 1914 a maioria não podia gastar dinheiro sem autorização dos maridos, agora viam os seus salários aumentar de forma significativa: no início da guerra, o salário médio semanal das mulheres era de 10 xelins; em 1916 já era de 30 xelins (uma libra e meia) e duas libras no fim da guerra, quatro se se tratasse de um cargo de supervisão."

As guerreiras esquecidas

Ao mesmo tempo, aponta a académica francesa Sylvie Brodziak, há uma sensibilização das mulheres para o trabalho - uma parte delas sempre tinham sido assalariadas, mas outras, sobretudo as burguesas, não - e uma sensibilização da sociedade, da mente coletiva, para a ideia de que as mulheres são capazes de desempenhar tarefas que até ali lhes estavam vedadas, tão bem ou até melhor que os homens. Com exceções: por exemplo no metro de Paris as mulheres não são admitidas como condutoras por se considerar que o sistema de sinalização é "demasiado complicado".
Serviam no entanto para conduzir ambulâncias na frente e para, como médicas e enfermeiras, tratar os feridos em hospitais de campanha. Ou mesmo - algo de que se fala tão pouco -- para combater. Caso de Flora Sandes, a britânica que terá sido a única mulher com a sua nacionalidade a combater oficialmente na Primeira Guerra, alistada no exército sérvio. Originária da classe média, descrita como "maria rapaz", Flora tinha um curso de estenografia, sabia usar uma arma, guiava carros de corrida e já tinha estado no Egito, nos EUA e no Canadá quando a guerra rebenta. Aos 38 anos, tendo treino como enfermeira, ofereceu-se para o serviço de ambulâncias, sendo colocada na Sérvia. Ao fim de um ano a tratar de feridos, e como as forças austro-húngaras avançassem e obrigassem os sérvios a retirar, envolveu-se no combate propriamente dito e foi integrada no exército sérvio, no qual chegou rapidamente a oficial.
Ferida pela explosão de uma granada ao lutar na Macedónia, recebeu uma condecoração pela sua bravura em combate enquanto recuperava, tendo regressado às trincheiras ainda antes do fim da guerra - escrevendo depois um relato da sua experiência. Muito mais medalhada foi a sérvia Milunka Savić, a mulher mais condecorada da Primeira Grande Guerra. Nascida camponesa, disfarçou-se de homem para lutar nas guerras balcânicas. Em 1914, porém, é já como mulher que se alista no exército sérvio. Os seus feitos extraordinários em combate valem-lhe várias condecorações sérvias mas também francesas -- por ter lutado ao lado do exército francês na Tunísia - incluindo a Cruz de Guerra.
"A nossa mãe está em perigo. A nossa mãe é a Rússia. Quero ajudar a salvá-la. Quero mulheres cujos corações sejam cristal puro, cujas almas sejam puras, cujos impulsos sejam honrados. Com mulheres destas a dar o exemplo no sacrifício, vós homens tomareis consciência do vosso dever nesta hora grave."
Mas é na Rússia que as mulheres combatentes mais se notabilizam, com a formação de 15 batalhões exclusivamente femininos no exército e uma unidade naval. Terão sido cerca de cinco mil as mulheres alistadas, mas só uma pequena parte esteve na frente de batalha. A ideia de formar batalhões só de mulheres terá nascido por causa da taxa de deserção dos homens ao fim de três anos de guerra e a confusão da revolução: ter mulheres a combater era suposto envergonhá-los.
Terá sido uma camponesa, Maria Bochkareva, que conseguiu entrar no exército russo, em 1914, depois de apelar diretamente ao czar, a sugerir em 1917, ao governo provisório, a formação de unidades de combate exclusivamente femininas. Tanto o governo como o comandante das tropas acharam boa ideia e Bochkareva fez um apelo às mulheres russas: "A nossa mãe está em perigo. A nossa mãe é a Rússia. Quero ajudar a salvá-la. Quero mulheres cujos corações sejam cristal puro, cujas almas sejam puras, cujos impulsos sejam honrados. Com mulheres destas a dar o exemplo no sacrifício, vós homens tomareis consciência do vosso dever nesta hora grave."
Duas mil mulheres responderam à chamada, mas a militar só aceitou 500: as outras não estariam à altura da sua exigência. Das selecionadas, 300 integraram o Batalhão da Morte, assim intitulado por todas as recrutas jurarem lutar até ao fim. E mostraram estar à altura da determinação: estreadas na ofensiva Kerensky (que foi ministro da guerra e depois primeiro-ministro no governo provisório) em julho de 1917, as mulheres sob Bochkareva tomaram as trincheiras alemãs mas tiveram de retirar por falta de apoio dos homens.
"As muitas mudanças permitidas pela guerra não tiveram seguimento. Só as mulheres da burguesia, cujo destino era casar e ser dona de casa, viram a sua situação evoluir, e mesmo assim, só para uma parte"
Nas suas memórias, Bochkareva, que várias jornalistas descreveram como "a Joana D"Arc russa", conta como após a tomada do poder pelos bolcheviques, no fim de 1917, os soldados russos quiseram declarar a paz e confraternizar com os alemães, enquanto o batalhão da morte queria continuar a combater. Em fúria, os homens, que lhe chamavam "bruxa", lincharam 20 soldadas. Foi preciso desmobilizar e tentar salvar as restantes, retirando-lhes o uniforme e fazendo-as retirar uma a uma. Depois de muitas peripécias e de sair da Rússia, Borachkareva regressou e foi integrada no exército russo branco (que lutava contra os bolcheviques na guerra civil), acabando por ser julgada e fuzilada em maio de 1920, com apenas 30 anos.

De volta aos aventais e babetes

Por incrível que pareça, após tais feitos das mulheres durante os anos da guerra, quis-se voltar atrás. Como escreve a jornalista e escritora britânica Kate Adie, "as mulheres levaram uma festinha na cabeça e as suas conquistas foram classificadas como "temporárias", só para aquele período." No mercado de trabalho, onde tinham ocupado tudo, são despedidas e rejeitadas. O recenseamento de mulheres "ativas", ou seja, assalariadas, em França, em 1921, mostra um número praticamente igual ao de 1911: pouco mais de sete milhões. A maioria foi forçada a regressar à vida anterior.
"Pede-se às mulheres que regressem ao lar e que produzam crianças. Há em França, pelo menos, uma grande adesão política, da direita à esquerda, ao discurso natalista. As francesas estão encarregadas de repopular o país e algumas leis querem forçá-las a isso."
"Uma coisa é certa, as muitas mudanças permitidas pela guerra não tiveram seguimento. Só as mulheres da burguesia, cujo destino era casar e ser dona de casa, viram a sua situação evoluir, e mesmo assim, só para uma parte", diz, sobre a França, a historiadora Françoise Thébaud. Tanto mais que a guerra foi uma hecatombe demográfica e "se pede às mulheres que regressem ao lar e que produzam crianças. Há em França, pelo menos, uma grande adesão política, da direita à esquerda, ao discurso natalista. As francesas estão encarregadas de repopular o país e algumas leis querem forçá-las a isso." Há medalhas e prémios para quem tenha mais filhos mas também medidas repressivas: interdição de venda de objetos contracetivos e de difusão de informação sobre contraceção e aborto. E, frisa Thébaud, se durante a guerra as mulheres foram chefes de família, o código civil napoleónico, que decreta a menoridade jurídica da mulher casada, obrigando-a a obedecer ao marido, não é revogado.
"As mulheres levaram uma festinha na cabeça e as suas conquistas foram classificadas como "temporárias", só para aquele período."
Daí que à pergunta "A guerra emancipou as mulheres?", Sylvie Brodziak responda: "Na verdade, não. Mas foi precisa a grande guerra para que a humanidade tomasse consciência da sua outra metade."
E sendo certo que o direito de voto, uma exigência muito forte no pré-guerra, que já tivera a sua estreia na Nova Zelândia no final do século XIX, vai surgir em vários países envolvidos no conflito - no Reino Unido logo em 1918, depois na Alemanha, na Hungria, nos EUA e Canadá -- não será "concedido" em todos, enquanto noutros, que não haviam participado na guerra, como a Holanda, é conquistado logo em 1919. É pois preciso, diz Thébaud, relativizar a influência da guerra: "Essa reivindicação já existia antes, graças a um movimento sufragista muito forte, organizado à escala nacional e internacional, e já tinha sido satisfeita na Nova Zelândia, na Austrália, na Finlândia e na Noruega.

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