Em 2010 aprovou-se a actual Constituição que densamente contempla liberdades e garantias fundamentais, o que suscitou elogios de académicos, entre os quais o do actual presidente de Portugal, o professor Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente chegou mesmo a dizer que a Constituição era “muito ambiciosa” durante um evento em Luanda subordinado ao tema “Os grandes desafios da nova Constituição da República de Angola”.
Por Sedrick Carvalho
À altura, “ti Celito”, como é carinhosamente apelidado em Angola, já tinha a reputação de prestigiado constitucionalista e professor, por isso se fez uma tremenda euforia pela sua avaliação, utilizando-a inclusive para legitimar a aprovada Constituição, quatro meses antes das suas declarações, e mais uma vez silenciar as críticas internas. Mas é preciso reiterar que Marcelo Rebelo de Sousa apenas se referiu à parte das liberdades e garantias constitucionais, onde incluiu a livre iniciativa privada e economia de mercado.
Porém, Marcelo Rebelo de Sousa não se pronunciou sobre o título quarto da Constituição, parte que define a organização do poder do Estado, como o modelo de eleição presidencial atípica que lhe concede imensos poderes. E é essa a parte que sempre constituiu o ponto da discórdia da CRA aprovada no calor do campeonato das nações africanas em futebol, o CAN2010 do Angola – Mali, o de atentado à caravana da selecção do Togo.
José Eduardo dos Santos tornou-se um presidente com poderes imperiais, autoritário, acumulando amplas competências como chefe do Executivo, chefe de Estado e comandante-em-chefe. E o problema começou exactamente na forma de eleição do presidente da República.
A lei constitucional de 1991 estabelecia, em seu artigo 57º, que o presidente seria eleito mediante “[…] sufrágio universal, directo, igual, secreto […]”. Ou seja, o presidente tinha de ser eleito nominalmente, individualmente, em disputa com vários candidatos e várias candidatas. Assim foi em 1992, e tivermos a primeira e única mulher candidata à presidência, a malograda Anália de Victória Pereira. Nesse pleito José Eduardo dos Santos obteve uma percentagem abaixa do MPLA nas eleições legislativas, importa recordar.
Esse modelo de eleição, idêntico ao que vigora em Portugal, EUA, e até em Moçambique, permite a escolha directa do presidente fora da lista dos candidatos a deputados e deputadas ao parlamento.
Alterada a constituição, o presidente passou a ser “[…] o cabeça de lista […] do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais […]” (art. 109º CRA). E assim tivemos em 2012 as eleições designadas gerais em que o presidente foi encontrado à boleia do partido.
Em entrevista ao jornal Expresso, João Lourenço respondeu algumas questões pertinentes sobre os superpoderes constitucionais e a eleição directa do presidente. Gustavo Costa, o jornalista, perguntou: “Estaria disposto a promover a mudança da Constituição, diluir os superpoderes actualmente concentrados na figura do Presidente da República e admitir candidatar-se sem a alçada do MPLA?”
A resposta pode ser compreendida por alguns como inteligente, mas nela reconheci outras coisas, como o mesmo cinismo do anterior presidente, desprezo por questões estruturantes, vaidade e arrogância. Entre outras coisas, disse: “Os candidatos ao lugar de Presidente da República devem ser de um partido político, sem necessariamente serem o seu presidente”. Ora, isto, mais do que antes de 2017, todos sabemos, pois João Lourenço é em si a amostra disso ao ser cabeça de lista sem ser presidente do partido. Apegou-se nesse aspecto para deixar claro que, “se for por essa razão, não” admite a necessidade de uma revisão da constituição.
Mas Gustavo Costa é o exímio jornalista que é, e por isso voltou à carga sobre “os superpoderes constitucionais herdados do seu antecessor”. João Lourenço respondeu apontando os limites temporais estabelecidos pela própria constituição para que haja uma revisão (art. 235º, nº. 1), outra resposta óbvia, a qual juntou o artigo 233º para vincar que a iniciativa de revisão recai sobre o presidente e um terço dos deputados. Não respondeu à questão.
À terceira não foi de vez, mas surgiu uma resposta que espelha mais o que lhe vai na alma. João Lourenço não pretende desfazer-se dos superpoderes, por isso escudou-se no partido dizendo que tem de haver um debate interno. Cinicamente também falou que “qualquer outro” partido pode propor uma revisão constitucional, quando sabe que a máquina eleitoral fraudulenta foi oleada ao máximo para não permitir sequer que toda a oposição junta representasse sequer um terço dos deputados.
“O partido político que achar que tem força para fazer isso ou que pode mobilizar outras forças para se juntar a essa causa, que o faça”, disse, referindo-se certamente aos partidos da oposição porque o dele, para além de não o contrariar, não precisaria “mobilizar outras forças” para deliberar por uma revisão.
Entretanto, a primeira questão, referente à eleição directa do presidente, é de extrema importância pois o actual modelo constitui um retrocesso comparado com o que estabelecia a constituição de 1991 e é até vergonhoso que Angola, ao contrário dos países vizinhos e parceiros, e tendo uma constituição “muito ambiciosa” em vários aspectos, não permita aos seus cidadãos uma participação política efectiva sem a âncora partidária.
Quanto aos superpoderes, personalidades próximas ao presidente entendem que ele precisa exactamente concentrar todos esses superpoderes para fazer as reformas que alardeia constantemente querer e estar a fazer. Respondo que se estão a esquecer que se o poder em si já corrompe, então o poder absoluto corrompe também absolutamente, e foi com este poder absoluto que se cometeram as maiores atrocidades em Angola. É preciso desamarrar esses poderes e distribui-los para que haja de facto interdependência e equidade entre as instituições democráticas do Estado.
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