De que é feito o prestígio de Kofi Annan? Nunca alguém esteve tão perto de ser a voz de "nós, os povos", e jamais alguém pagou um preço tão alto por isso. Agora, o antigo secretário-geral da ONU lançou um livro de memórias.
Este artigo foi originalmente publicado a 16 de Dezembro de 2012. É agora recuperado por ocasião da morte de Kofi Annan, este sábado, 18 de Agosto de 2018.
Como é que se explica a longevidade do prestígio moral de Kofi Annan? O quebra-cabeças é ter sobrevivido a falhanços, tanto seus como da instituição que serviu durante 50 anos (1). O carisma é apenas uma parte da história. Para além do seu charme, que é muito, há também a autoridade que vem da experiência. Poucas pessoas passaram tanto tempo em mesas de negociações com bandidos, senhores da guerra e ditadores. Ele tornou-se no emissário mundial para as trevas.
Para estas negociações frequentemente difíceis, Annan levava o seu temperamento sereno, que desenvolveu cedo na infância, no Gana. O pai, Henry Reginald Annan, vivia entre dois mundos, como alto responsável de uma multinacional britânica e chefe hereditário de um país à beira da independência. Na luta ganiana, os Annan ocupavam o cauteloso meio campo, apoiando a independência, mas mantendo-se à distância do nacionalismo revolucionário de Kwame Nkrumah.
Graças a estas experiências, Annan tornou-se perito na circunspecção e na habilidade em lidar com todos os lados, sem revelar o seu próprio jogo. Tinha o temperamento perfeito para as Nações Unidas. Quando viu a sua carreira no Gana ser bloqueada por uma sucessão de regimes militares, inscreveu-se na ONU e desde então passou a vida nos seus escritórios de Nova Iorque e Genebra. Como [o Presidente norte-americano] Barack Obama, cedo aprendeu a superar os preconceitos raciais e a posicionar-se como a pessoa mais confiante e racional de todas, acabando por não pertencer a ninguém senão a si próprio.
Mas o facto de ser ao mesmo tempo agradável e distante não revela tudo. Não explica como conseguiu manter a sua reputação intacta enquanto escalava os departamentos mais burocráticos da ONU - recursos humanos e orçamento -, onde nepotismo e má gestão eram notórios. Esta ascensão exigiu um trabalho delicado mas implacável da sua própria reputação, para além de uma capacidade de se distanciar dos sarilhos.
Pelo caminho, internacionalizou profundamente a retórica moral da instituição sem nunca deixar que a dura realidade arrasasse com o seu idealismo. Quando, com o apoio americano, ascendeu ao cargo mais alto da ONU, em 1996, mostrou um instinto notável e uma grande capacidade para incluir nos seus discursos, cheios de empenho e de nuances, as esperanças da própria instituição que ainda restavam. Quando aceitou o prémio Nobel da Paz, a ele atribuído e às Nações Unidas em conjunto em 2001, muitos o viram como a encarnação mais completa de sempre dos ideais das Nações Unidas.
Para o prestígio sobreviver, tem de ser acompanhado de sucessos, e muito aconteceu durante a sua direcção - o Pacto Global da ONU [com o qual as empresas se comprometem a respeitar vários princípios para a construção de um mercado global mais estável], os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio [oito objectivos de desenvolvimento humano para serem atingidos até 2015], o Fundo Mundial para a Sida, o Tribunal Penal Internacional, a doutrina "responsabilidade de proteger" [uma resposta para as violações em massa dos direitos humanos] - pelas quais o louvamos, porque lhes deu um encorajamento benevolente e a máxima publicidade. Annan entendia os media modernos como nenhum secretário-geral antes dele e usava o poder da sua própria celebridade para aumentar a visibilidade da sua instituição.
Também percebeu que a globalização estava a criar novos actores para além dos Estados soberanos e foi suficientemente perspicaz para se aperceber que a ONU teria de deixar de ser simplesmente uma organização intergovernamental para criar parcerias com empresas, ONG e essa criação sempre em multiplicação que é a sociedade civil. Compreendeu que se a sua autoridade era atribuída pelos Estados-membros, que pagavam as contas e depositavam os seus votos, o seu prestígio moral vinha de "nós, os povos", os milhões de cidadãos comuns cuja fé na ONU tinha conseguido sobreviver a uma série de desilusões.
Os realistas olham para a ONU como "uma entidade política sem vontade independente", para usar a frase de Perry Anderson, mas sentem falta do poder que vem com o prestígio moral (2). Parafraseando Estaline sobre o povo, Annan percebeu que a ONU não tinha divisões mas era o porta-voz das esperanças, e nisto residia o poder de que gozava o secretário-geral. Foi o único detentor do cargo desde Dag Hammarksjoeld que conseguiu canalizar as esperanças do mundo para a sua própria influência moral.
Mas o seu prestígio continua com um mistério por desvendar. Nelson Mandela, Desmond Tutu, Aung San Suu Kyi e Václav Havel adquiriram o seu fazendo frente a tiranos. Kofi Annan adquiriu-o falando com eles. O prestígio que é conquistado assim está destinado a ser ambíguo e a deixar um legado complexo.
Em Fevereiro de 1998, voou para Bagdad e convenceu Saddam Hussein a deixar entrar novamente no país os inspectores de armamento da ONU. Quando regressou, foi saudado como um herói e o mundo deixou-se enfeitiçar por ele. Era modesto, mas acreditou na sua própria magia. Há mais do que uma pequena arrogância num comentário passageiro que faz nas suas memórias sobre o facto de as suas acções como secretário-geral terem mais influência do que o Conselho de Segurança [das Nações Unidas]. Na verdade, foi a ameaça iminente dos bombardeamentos aéreos americanos, tanto como as acções de Annan, que ocuparam a mente de Saddam, e a guerra foi apenas adiada e não impedida.
Quando não há qualquer ameaça de força a pairar no ar, como no caso da sua recente missão na Síria, em Agosto deste ano, a diplomacia-relâmpago de Annan apenas dá aos Estados Unidos, tal como à Rússia e à China, um álibi para nada fazerem. Quando abandonou a missão da Síria, comentou que nenhum mediador é bem sucedido se desejar mais a paz do que os protagonistas (3). Mas ele já devia saber disto quando começou. Na sua sede de servir, há um pathos de um político mundial na reforma, temendo que o seu prestígio moral se desvaneça - para acabar por descobrir, tarde de mais, que também se pode perdê-lo quando o usamos.
A autoridade duradoura de Annan gera também perplexidade porque o seu passado não o deixa em paz. Para usar as duras palavras de Samantha Power, "o seu nome vai aparecer nos livros de história ao lado de dois crimes de genocídio definidores do século XX", Ruanda e Srebrenica (4). O seu livro de memórias chama-se Interventions, como que a reconhecer que a sua carreira pública será sempre julgada pelo papel que teve nas operações mais falhadas da ONU.
Confrontado com estes incidentes, ele e o seu co-escritor, Nader Mousavizadeh, decidiram que, quando uma reputação está a ser escrutinada, a candura é a melhor defesa. O resultado é uma revisão resoluta, detalhada e determinada dos seus momentos mais difíceis. Citam na totalidade o famoso fax que o comandante da ONU no Ruanda, Romeo Dallaire, enviou em Janeiro de 1994 para a sede das Nações Unidas pedindo a autorização de Annan para uma acção militar para deter possíveis "genocidiários". Annan recusou, e nem ele nem o então secretário-geral, Boutros Boutros-Ghali, comunicaram o pedido de Dallaire ao Conselho de Segurança.
Dallaire, Power, Philip Gourevitch e outros observadores da catástrofe no Ruanda acreditam que uma acção preventiva da ONU naquela altura poderia ter impedido os acontecimentos terríveis que se desenrolariam em Abril, Maio e Junho, deixando 800 mil pessoas mortas. A resposta de Annan a estas acusações - que não se alterou ao longo da década seguinte - lembra que os americanos tinham acabado de ser expulsos da Somália depois do episódio desastroso do Black Hawk Down [em 1993, quando dois helicópteros dos EUA foram atingidos por milícias somalis e em que morreram 18 elementos de forças de elite] e que a proposta de Dallaire para uma intervenção arriscava-se a um final parecido: "No pedido transmitido por Dallaire para um raide, vimos os ingredientes para um desastre semelhante ao raide falhado a Aidid, em Mogadíscio, três meses antes - mas com uma força que era mil vezes mais fraca em termos de capacidades militares e totalmente isolada de uma possibilidade de reforço."
Numa admissão surpreendente, Annan acrescenta que a força de Dallaire era "uma força de paz deliberadamente fraca e vulnerável para pôr em perigo a confiança de ambos os lados". "Deliberadamente fraca e vulnerável"... Quando o prestígio moral se ilude pensando que não precisa de armas, pode tornar-se num cúmplice do mal.
A mesma fé na força dissuasora das boas intenções moldou fatalmente a política da ONU sobre os abrigos na Bósnia. Annan estava encarregue das operações de paz da ONU nesta altura e observou indefeso às redacções de mandatos no Conselho de Segurança e ao envio de tropas que não conseguiriam proteger os refúgios que fossem alvos de ataques. Tem o crédito de se ter mantido firme. Disse ao Conselho de Segurança que os abrigos não poderiam ser protegidos com menos do que uma força adicional de 32 mil soldados. O CS ignorou o conselho, deixando pela segunda vez os civis a serem protegidos pela "presença" e não por forças autorizadas e dispostas a combater. Oito mil civis de Srebrenica pagaram com a vida esta ilusão fatal sobre o poder do prestígio moral da ONU.
Depois da Bósnia, Annan refez o seu próprio prestígio moral sendo cândido quando os outros o eram menos, incluindo presidentes e primeiros-ministros. Nas suas memórias, admite erros, mostrando como a burocracia das missões de paz da ONU era incapaz de assumir os fardos gigantescos que lhe eram impostos por Governos frívolos no fim da guerra fria. Ele assume agora as responsabilidades, salientando um ponto: "Para um homem, ou para uma criança, para quem a presença de um capacete azul é tudo o que separa a segurança da morte certa, a conversa sobre mandatos limitados, meios inadequados, e missões com poucos recursos - por mais certas que seja - é no mínimo, e na melhor das possibilidades, uma traição."
A única coisa que não fez na altura foi tornar públicas as suas dúvidas. Admitiu numa entrevista recente com Charlie Rose que deveria ter gritado com altifalantes contra a falta de vontade do Conselho de Segurança de proteger os abrigos da Bósnia com meios robustos, mas acrescenta que a ideia que o secretariado das Nações Unidas fazia das relações públicas era "arcaica" (5). E por isso manteve-se silencioso. Como funcionário público internacional, não lhe cabia enxovalhar publicamente os governos nacionais. Isto é culpar a cultura mandarim do secretariado, mas também admitir que ele próprio era um prisioneiro dessa cultura.
O paradoxo fundamental da carreira de Annan é o de que num período em que o prestígio da ONU declinou, na década de 1990, devido ao incumprimento das promessas morais que não conseguiu cumprir, o seu prestígio passou incólume. O seu património político perante os americanos também cresceu. Quando os EUA decidiram finalmente fazer alguma coisa quanto à matança na Bósnia em Agosto de 1995, Annan foi útil para se ultrapassar a resistência da ONU ao bombardeamento de alvos sérvios. Em poucas semanas, a força aérea americana, juntamente com a ajuda aos croatas, inverteu o equilíbrio contra os sérvios e levou-os à mesa das negociações em Dayton.
Tendo-se tornado útil na Bósnia, Annan era um candidato óbvio quando [a então secretária de Estado norte-americana] Madeleine Albright e [o Presidente] Bill Clinton estavam à procura de alguém que substituísse Boutros Ghali. É um sinal da sua sagacidade ter percebido, ao contrário de Boutros Ghali, que a ONU nunca conseguiria ter êxito sem o investimento da América. Uma vez eleito, em 1996, usou a sua celebridade para amenizar o Congresso, apaziguar os falcões republicanos anti-ONU e descongelar as contribuições americanas para a organização.
Interventions revela o quão difícil foi manter os seus amigos americanos contentes. Madeleine Albright avançou com a sua candidatura para depois o ignorar sem misericórdia, acordando-o a dada altura às 4h30 da manhã para lhe ditar um comunicado de imprensa sobre o Iraque. Ela "nunca compreendeu realmente", diz numa fria declaração, que ele também era responsável pelos outros membros da ONU.
No entanto, foi um político demasiado cauteloso ao não ter percebido que era uma boa política, tanto para a Administração Clinton como para Bush, atingir publicamente a ONU. Apesar disso, as duas administrações viraram-se para ele quando precisaram da sua bênção moral. Mesmo um Governo inclinado para a invasão unilateral do Iraque se sentiu obrigado a enviar Colin Powell a defender a sua posição na ONU. As páginas mais vivas de Interventions descrevem o almoço de ministros dos Negócios Estrangeiros depois da apresentação de Powell, onde enfrentou o descrente Dominique de Villepin, da França, e Igor Ivanov, da Rússia. Depois de lhes assegurar, e a Annan, que pessoalmente detestava a guerra - "perdi amigos na guerra; combati em duas guerras; comandei duas guerras" -, Powell afirmou que não "aceitava a premissa de que a guerra leva sempre a maus resultados". Nesta altura, o alemão Joshka Fischer interveio: "E nós somos o melhor exemplo disso."
A cena capta a política exercida ao mais alto nível como Annan a vivia, mas também reflecte aquilo para que na verdade a ONU serve. É o fórum onde os poderosos adquirem legitimidade convencendo os fracos de que a sua causa é justa. Powell estava ainda à procura dessa legitimidade seis semanas depois da invasão quando entrou no gabinete de Annan com uma equipa para provar que os invasores americanos tinham encontrado armas de destruição maciça. Era um secretário de Estado perturbado ainda à procura da absolvição. "Kofi, eles fizeram de mim um homem honesto", exclamou. Annan e a sua equipa continuavam ferozmente descrentes das provas.
O prestígio chega àqueles que acertam nas grandes questões. Annan acertou no Iraque. Saddam Hussein suspendera todos os programas de fabrico de armas de destruição maciça em 1991. Se as conclusões da Agência Internacional de Energia Atómica e do inspector da ONU Hans Blix tivessem sido escutadas, e se tivesse sido dado mais tempo a Blix para as confirmar, a falta das armas iraquianas teria sido exposta. Mas como admitiria mais tarde o vice-primeiro-ministro iraquiano Tarek Aziz, eles não poderiam permitir que "os judeus e os persas" descobrissem e por isso bloquearam os inspectores, provocando a invasão e a queda do seu regime.
A reputação de Colin Powell nunca mais recuperou do Iraque, e provou ser também um ponto de viragem para Annan. Durante cinco anos, lutara para manter a ONU no centro da dança diplomática com Saddam, ao mesmo tempo que procurava garantir que, se a força fosse usada, seria aprovada no Conselho de Segurança. Mas tinha já criado um precedente para a acção unilateral, ao dar a sua bênção à operação da NATO no Kosovo, lançada sem o acordo do Conselho de Segurança. Agora, com o CS a recusar-se terminantemente a aprovar a invasão do Iraque, concluía que a invasão americana foi "ilegal". A Administração Bush nunca lhe perdoou essa avaliação. Ignorou a ONU, lançou-se na invasão e Annan ficou com o curto conforto de saber que ele e a sua organização se recusaram a legitimar um falhanço: "As Nações Unidas ergueram-se, por si e pelos seus princípios fundadores. Pode ter significado pouco para o mundo - e para o povo do Iraque - nos meses e anos seguintes, mas tinha sido muito pior ter aprovado uma guerra combatida sob falsas premissas."
Em Agosto de 2003, o enviado pessoal de Annan ao Iraque, Sérgio Vieira de Mello, e 22 dos seus colegas foram mortos num ataque terrorista contra a representação da ONU em Bagdad. Foi uma parábola do excesso de confiança. Annan e a ONU tiveram fé na protecção americana e Annan pagou por esta fé perdendo um dos seus amigos e colaboradores próximos mais antigos.
No ano a seguir à invasão, rebentou o escândalo à volta do programa Petróleo por Alimentos, que a ONU desenvolveu para garantir que Saddam não usaria as sanções internacionais ao regime para matar à fome o seu povo. Com o conluio activo de funcionários da ONU, o regime de Saddam amealhou 8,4 mil milhões de dólares em subornos, e alguns responsáveis das Nações Unidas e de contratos estrangeiros fizeram fortunas ilegais num programa que supostamente deveria ajudar os iraquianos mais pobres. Quando Annan nomeou Paul Volcker para descobrir a verdade sobre o programa, Volcker descobriu que a Cotecna, uma das mais de duas mil empresas envolvidas nestes subornos, contratara Kojo Annan, o filho de Kofi, e lhe pagara até 2004, apesar de ele ter deixado de trabalhar lá em 1998.
Tendo sido o querido dos media americanos e do establishment de Washington, Annan assistia agora a pedidos para que se demitisse nas conferências de imprensa. Em Dezembro de 2004, com o seu prestígio estilhaçado, concordou em fazer uma introspecção no apartamento de Richard Holbrooke em Nova Iorque. Ali, Les Gelb, do Council on Foreign Relations [um prestigiado think-tank], disse-lhe que, depois de auscultar as suas fontes em Washington, a perspectiva da Administração Bush sobre Annan era: "Eles não o vão empurrar, mas, se você cair, também não o apanharão."
Annan sobreviveu ao reunir todos os favores políticos que acumulara na sua longa carreira. O seu amigo Bill Clinton foi à Casa Branca dizer a George W. Bush: "Você não quer ter o sangue de Kofi Annan nas suas mãos." Ao que Bush respondeu: "Os meus ultraconservadores querem destruir as Nações Unidas, mas eu não."
Nos seus dois últimos anos como secretário-geral, Annan lutou para salvar a sua reputação. Responsabilizou-se pelos falhanços abjectos de gestão e roubo que caracterizaram o programa Petróleo por Alimentos e procurou recuperar a iniciativa política lançando uma tentativa frenética de reforma da instituição. Quis aumentar o Conselho de Segurança, criar uma comissão de construção de paz e substituir a desacreditada Comissão para os Direitos Humanos pelo Conselho para os Direitos Humanos. O esforço era merecedor, mas o tempo para a reforma já tinha passado. Nessa altura, os EUA já tinham enviado o barulhento John Bolton para a ONU em sinal do seu descontentamento e como compensação à ala direita de Bush. Annan descobriu que o seu prestígio estava demasiado machucado para conseguir reformas significativas. Um secretariado-geral que começara com esperança, em 1996, acabou em frustração, em 2006.
Quando nos lembramos como o cargo de Annan terminou, começamos a compreender a sua determinação em continuar sob os olhares públicos, em mediar um conflito no Quénia na disputa que se seguiu às eleições de 2008 e finalmente na procura da paz na Síria. Estas procuras da paz são mais do que o desejo de um mediador em manter-se ocupado. No fundo, dado aquilo que viu, viveu e pelo qual se responsabilizou, podem ser interpretadas como a busca de redenção de um homem consciencioso.
A história de Annan é um conto admonitório sobre a fragilidade do prestígio moral num mundo teimosamente liderado pelos interesses estatais. Ele pode ser visto como um empreendedor de padrões morais, promover novas ideias de comportamento colectivo, responsabilidade soberana e responsabilização criminosa internacional num mundo que por breves momentos acreditou que a globalização nos pode aproximar. Pôs o seu próprio prestígio em jogo para levar a paz a zonas de guerra, da Bósnia a Timor-Leste. Dialogaria com tiranos se houvesse uma hipótese de paz. Para atingir estes objectivos, estava preparado - era esta a essência das suas funções - para conviver com o nacionalismo estreito dos interesses estatais que servia e com a cobardia da burocracia da ONU que o tornou naquilo que foi. Nunca alguém esteve tão perto de ser a voz de "nós, os povos" e jamais alguém pagou um preço tão alto por isso. O mundo continua a precisar de uma voz assim, mas quem tentar desempenhar esse papel irá querer reflectir dura e longamente nas lições das suas cândidas, corajosas e abundantes memórias.
Exclusivo PÚBLICO / New York Review of Books
1. Os falhanços - Petróleo por Alimentos, Ruanda, Srebrenica, escândalos sexuais de capacetes azuis - estão vivamente reflectidos num documentário maldoso, implacável e parcial chamado UN Me, de Matthew Groff e Ami Horowitz. 2. Ver Perry Anderson, Our Man, London Review of Books, 10 de Maio de 2007, uma recensão de James Traub intitulada The Best Intentions: Kofi Annan and the UN in the Era of American Power (Bloomsbury 2006). 3. Kofi Annan Statement, Genebra, 2 de Agosto de 2012. 4. Samantha Power, Chasing the Flame: Sérgio Vieira de Mello and the Fight to Save de World (Penguin, 2008), pág. 239. 5.The Charlie Rose Show, 10 de Setembro de 2012
Interventions: A Life in War and Peace
Kofi Annan, com Nader Mousavizadeh
Para estas negociações frequentemente difíceis, Annan levava o seu temperamento sereno, que desenvolveu cedo na infância, no Gana. O pai, Henry Reginald Annan, vivia entre dois mundos, como alto responsável de uma multinacional britânica e chefe hereditário de um país à beira da independência. Na luta ganiana, os Annan ocupavam o cauteloso meio campo, apoiando a independência, mas mantendo-se à distância do nacionalismo revolucionário de Kwame Nkrumah.
Graças a estas experiências, Annan tornou-se perito na circunspecção e na habilidade em lidar com todos os lados, sem revelar o seu próprio jogo. Tinha o temperamento perfeito para as Nações Unidas. Quando viu a sua carreira no Gana ser bloqueada por uma sucessão de regimes militares, inscreveu-se na ONU e desde então passou a vida nos seus escritórios de Nova Iorque e Genebra. Como [o Presidente norte-americano] Barack Obama, cedo aprendeu a superar os preconceitos raciais e a posicionar-se como a pessoa mais confiante e racional de todas, acabando por não pertencer a ninguém senão a si próprio.
Mas o facto de ser ao mesmo tempo agradável e distante não revela tudo. Não explica como conseguiu manter a sua reputação intacta enquanto escalava os departamentos mais burocráticos da ONU - recursos humanos e orçamento -, onde nepotismo e má gestão eram notórios. Esta ascensão exigiu um trabalho delicado mas implacável da sua própria reputação, para além de uma capacidade de se distanciar dos sarilhos.
Pelo caminho, internacionalizou profundamente a retórica moral da instituição sem nunca deixar que a dura realidade arrasasse com o seu idealismo. Quando, com o apoio americano, ascendeu ao cargo mais alto da ONU, em 1996, mostrou um instinto notável e uma grande capacidade para incluir nos seus discursos, cheios de empenho e de nuances, as esperanças da própria instituição que ainda restavam. Quando aceitou o prémio Nobel da Paz, a ele atribuído e às Nações Unidas em conjunto em 2001, muitos o viram como a encarnação mais completa de sempre dos ideais das Nações Unidas.
Para o prestígio sobreviver, tem de ser acompanhado de sucessos, e muito aconteceu durante a sua direcção - o Pacto Global da ONU [com o qual as empresas se comprometem a respeitar vários princípios para a construção de um mercado global mais estável], os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio [oito objectivos de desenvolvimento humano para serem atingidos até 2015], o Fundo Mundial para a Sida, o Tribunal Penal Internacional, a doutrina "responsabilidade de proteger" [uma resposta para as violações em massa dos direitos humanos] - pelas quais o louvamos, porque lhes deu um encorajamento benevolente e a máxima publicidade. Annan entendia os media modernos como nenhum secretário-geral antes dele e usava o poder da sua própria celebridade para aumentar a visibilidade da sua instituição.
Também percebeu que a globalização estava a criar novos actores para além dos Estados soberanos e foi suficientemente perspicaz para se aperceber que a ONU teria de deixar de ser simplesmente uma organização intergovernamental para criar parcerias com empresas, ONG e essa criação sempre em multiplicação que é a sociedade civil. Compreendeu que se a sua autoridade era atribuída pelos Estados-membros, que pagavam as contas e depositavam os seus votos, o seu prestígio moral vinha de "nós, os povos", os milhões de cidadãos comuns cuja fé na ONU tinha conseguido sobreviver a uma série de desilusões.
Os realistas olham para a ONU como "uma entidade política sem vontade independente", para usar a frase de Perry Anderson, mas sentem falta do poder que vem com o prestígio moral (2). Parafraseando Estaline sobre o povo, Annan percebeu que a ONU não tinha divisões mas era o porta-voz das esperanças, e nisto residia o poder de que gozava o secretário-geral. Foi o único detentor do cargo desde Dag Hammarksjoeld que conseguiu canalizar as esperanças do mundo para a sua própria influência moral.
Mas o seu prestígio continua com um mistério por desvendar. Nelson Mandela, Desmond Tutu, Aung San Suu Kyi e Václav Havel adquiriram o seu fazendo frente a tiranos. Kofi Annan adquiriu-o falando com eles. O prestígio que é conquistado assim está destinado a ser ambíguo e a deixar um legado complexo.
Em Fevereiro de 1998, voou para Bagdad e convenceu Saddam Hussein a deixar entrar novamente no país os inspectores de armamento da ONU. Quando regressou, foi saudado como um herói e o mundo deixou-se enfeitiçar por ele. Era modesto, mas acreditou na sua própria magia. Há mais do que uma pequena arrogância num comentário passageiro que faz nas suas memórias sobre o facto de as suas acções como secretário-geral terem mais influência do que o Conselho de Segurança [das Nações Unidas]. Na verdade, foi a ameaça iminente dos bombardeamentos aéreos americanos, tanto como as acções de Annan, que ocuparam a mente de Saddam, e a guerra foi apenas adiada e não impedida.
Quando não há qualquer ameaça de força a pairar no ar, como no caso da sua recente missão na Síria, em Agosto deste ano, a diplomacia-relâmpago de Annan apenas dá aos Estados Unidos, tal como à Rússia e à China, um álibi para nada fazerem. Quando abandonou a missão da Síria, comentou que nenhum mediador é bem sucedido se desejar mais a paz do que os protagonistas (3). Mas ele já devia saber disto quando começou. Na sua sede de servir, há um pathos de um político mundial na reforma, temendo que o seu prestígio moral se desvaneça - para acabar por descobrir, tarde de mais, que também se pode perdê-lo quando o usamos.
A autoridade duradoura de Annan gera também perplexidade porque o seu passado não o deixa em paz. Para usar as duras palavras de Samantha Power, "o seu nome vai aparecer nos livros de história ao lado de dois crimes de genocídio definidores do século XX", Ruanda e Srebrenica (4). O seu livro de memórias chama-se Interventions, como que a reconhecer que a sua carreira pública será sempre julgada pelo papel que teve nas operações mais falhadas da ONU.
Confrontado com estes incidentes, ele e o seu co-escritor, Nader Mousavizadeh, decidiram que, quando uma reputação está a ser escrutinada, a candura é a melhor defesa. O resultado é uma revisão resoluta, detalhada e determinada dos seus momentos mais difíceis. Citam na totalidade o famoso fax que o comandante da ONU no Ruanda, Romeo Dallaire, enviou em Janeiro de 1994 para a sede das Nações Unidas pedindo a autorização de Annan para uma acção militar para deter possíveis "genocidiários". Annan recusou, e nem ele nem o então secretário-geral, Boutros Boutros-Ghali, comunicaram o pedido de Dallaire ao Conselho de Segurança.
Dallaire, Power, Philip Gourevitch e outros observadores da catástrofe no Ruanda acreditam que uma acção preventiva da ONU naquela altura poderia ter impedido os acontecimentos terríveis que se desenrolariam em Abril, Maio e Junho, deixando 800 mil pessoas mortas. A resposta de Annan a estas acusações - que não se alterou ao longo da década seguinte - lembra que os americanos tinham acabado de ser expulsos da Somália depois do episódio desastroso do Black Hawk Down [em 1993, quando dois helicópteros dos EUA foram atingidos por milícias somalis e em que morreram 18 elementos de forças de elite] e que a proposta de Dallaire para uma intervenção arriscava-se a um final parecido: "No pedido transmitido por Dallaire para um raide, vimos os ingredientes para um desastre semelhante ao raide falhado a Aidid, em Mogadíscio, três meses antes - mas com uma força que era mil vezes mais fraca em termos de capacidades militares e totalmente isolada de uma possibilidade de reforço."
Numa admissão surpreendente, Annan acrescenta que a força de Dallaire era "uma força de paz deliberadamente fraca e vulnerável para pôr em perigo a confiança de ambos os lados". "Deliberadamente fraca e vulnerável"... Quando o prestígio moral se ilude pensando que não precisa de armas, pode tornar-se num cúmplice do mal.
A mesma fé na força dissuasora das boas intenções moldou fatalmente a política da ONU sobre os abrigos na Bósnia. Annan estava encarregue das operações de paz da ONU nesta altura e observou indefeso às redacções de mandatos no Conselho de Segurança e ao envio de tropas que não conseguiriam proteger os refúgios que fossem alvos de ataques. Tem o crédito de se ter mantido firme. Disse ao Conselho de Segurança que os abrigos não poderiam ser protegidos com menos do que uma força adicional de 32 mil soldados. O CS ignorou o conselho, deixando pela segunda vez os civis a serem protegidos pela "presença" e não por forças autorizadas e dispostas a combater. Oito mil civis de Srebrenica pagaram com a vida esta ilusão fatal sobre o poder do prestígio moral da ONU.
Depois da Bósnia, Annan refez o seu próprio prestígio moral sendo cândido quando os outros o eram menos, incluindo presidentes e primeiros-ministros. Nas suas memórias, admite erros, mostrando como a burocracia das missões de paz da ONU era incapaz de assumir os fardos gigantescos que lhe eram impostos por Governos frívolos no fim da guerra fria. Ele assume agora as responsabilidades, salientando um ponto: "Para um homem, ou para uma criança, para quem a presença de um capacete azul é tudo o que separa a segurança da morte certa, a conversa sobre mandatos limitados, meios inadequados, e missões com poucos recursos - por mais certas que seja - é no mínimo, e na melhor das possibilidades, uma traição."
A única coisa que não fez na altura foi tornar públicas as suas dúvidas. Admitiu numa entrevista recente com Charlie Rose que deveria ter gritado com altifalantes contra a falta de vontade do Conselho de Segurança de proteger os abrigos da Bósnia com meios robustos, mas acrescenta que a ideia que o secretariado das Nações Unidas fazia das relações públicas era "arcaica" (5). E por isso manteve-se silencioso. Como funcionário público internacional, não lhe cabia enxovalhar publicamente os governos nacionais. Isto é culpar a cultura mandarim do secretariado, mas também admitir que ele próprio era um prisioneiro dessa cultura.
O paradoxo fundamental da carreira de Annan é o de que num período em que o prestígio da ONU declinou, na década de 1990, devido ao incumprimento das promessas morais que não conseguiu cumprir, o seu prestígio passou incólume. O seu património político perante os americanos também cresceu. Quando os EUA decidiram finalmente fazer alguma coisa quanto à matança na Bósnia em Agosto de 1995, Annan foi útil para se ultrapassar a resistência da ONU ao bombardeamento de alvos sérvios. Em poucas semanas, a força aérea americana, juntamente com a ajuda aos croatas, inverteu o equilíbrio contra os sérvios e levou-os à mesa das negociações em Dayton.
Tendo-se tornado útil na Bósnia, Annan era um candidato óbvio quando [a então secretária de Estado norte-americana] Madeleine Albright e [o Presidente] Bill Clinton estavam à procura de alguém que substituísse Boutros Ghali. É um sinal da sua sagacidade ter percebido, ao contrário de Boutros Ghali, que a ONU nunca conseguiria ter êxito sem o investimento da América. Uma vez eleito, em 1996, usou a sua celebridade para amenizar o Congresso, apaziguar os falcões republicanos anti-ONU e descongelar as contribuições americanas para a organização.
Interventions revela o quão difícil foi manter os seus amigos americanos contentes. Madeleine Albright avançou com a sua candidatura para depois o ignorar sem misericórdia, acordando-o a dada altura às 4h30 da manhã para lhe ditar um comunicado de imprensa sobre o Iraque. Ela "nunca compreendeu realmente", diz numa fria declaração, que ele também era responsável pelos outros membros da ONU.
No entanto, foi um político demasiado cauteloso ao não ter percebido que era uma boa política, tanto para a Administração Clinton como para Bush, atingir publicamente a ONU. Apesar disso, as duas administrações viraram-se para ele quando precisaram da sua bênção moral. Mesmo um Governo inclinado para a invasão unilateral do Iraque se sentiu obrigado a enviar Colin Powell a defender a sua posição na ONU. As páginas mais vivas de Interventions descrevem o almoço de ministros dos Negócios Estrangeiros depois da apresentação de Powell, onde enfrentou o descrente Dominique de Villepin, da França, e Igor Ivanov, da Rússia. Depois de lhes assegurar, e a Annan, que pessoalmente detestava a guerra - "perdi amigos na guerra; combati em duas guerras; comandei duas guerras" -, Powell afirmou que não "aceitava a premissa de que a guerra leva sempre a maus resultados". Nesta altura, o alemão Joshka Fischer interveio: "E nós somos o melhor exemplo disso."
A cena capta a política exercida ao mais alto nível como Annan a vivia, mas também reflecte aquilo para que na verdade a ONU serve. É o fórum onde os poderosos adquirem legitimidade convencendo os fracos de que a sua causa é justa. Powell estava ainda à procura dessa legitimidade seis semanas depois da invasão quando entrou no gabinete de Annan com uma equipa para provar que os invasores americanos tinham encontrado armas de destruição maciça. Era um secretário de Estado perturbado ainda à procura da absolvição. "Kofi, eles fizeram de mim um homem honesto", exclamou. Annan e a sua equipa continuavam ferozmente descrentes das provas.
O prestígio chega àqueles que acertam nas grandes questões. Annan acertou no Iraque. Saddam Hussein suspendera todos os programas de fabrico de armas de destruição maciça em 1991. Se as conclusões da Agência Internacional de Energia Atómica e do inspector da ONU Hans Blix tivessem sido escutadas, e se tivesse sido dado mais tempo a Blix para as confirmar, a falta das armas iraquianas teria sido exposta. Mas como admitiria mais tarde o vice-primeiro-ministro iraquiano Tarek Aziz, eles não poderiam permitir que "os judeus e os persas" descobrissem e por isso bloquearam os inspectores, provocando a invasão e a queda do seu regime.
A reputação de Colin Powell nunca mais recuperou do Iraque, e provou ser também um ponto de viragem para Annan. Durante cinco anos, lutara para manter a ONU no centro da dança diplomática com Saddam, ao mesmo tempo que procurava garantir que, se a força fosse usada, seria aprovada no Conselho de Segurança. Mas tinha já criado um precedente para a acção unilateral, ao dar a sua bênção à operação da NATO no Kosovo, lançada sem o acordo do Conselho de Segurança. Agora, com o CS a recusar-se terminantemente a aprovar a invasão do Iraque, concluía que a invasão americana foi "ilegal". A Administração Bush nunca lhe perdoou essa avaliação. Ignorou a ONU, lançou-se na invasão e Annan ficou com o curto conforto de saber que ele e a sua organização se recusaram a legitimar um falhanço: "As Nações Unidas ergueram-se, por si e pelos seus princípios fundadores. Pode ter significado pouco para o mundo - e para o povo do Iraque - nos meses e anos seguintes, mas tinha sido muito pior ter aprovado uma guerra combatida sob falsas premissas."
Em Agosto de 2003, o enviado pessoal de Annan ao Iraque, Sérgio Vieira de Mello, e 22 dos seus colegas foram mortos num ataque terrorista contra a representação da ONU em Bagdad. Foi uma parábola do excesso de confiança. Annan e a ONU tiveram fé na protecção americana e Annan pagou por esta fé perdendo um dos seus amigos e colaboradores próximos mais antigos.
No ano a seguir à invasão, rebentou o escândalo à volta do programa Petróleo por Alimentos, que a ONU desenvolveu para garantir que Saddam não usaria as sanções internacionais ao regime para matar à fome o seu povo. Com o conluio activo de funcionários da ONU, o regime de Saddam amealhou 8,4 mil milhões de dólares em subornos, e alguns responsáveis das Nações Unidas e de contratos estrangeiros fizeram fortunas ilegais num programa que supostamente deveria ajudar os iraquianos mais pobres. Quando Annan nomeou Paul Volcker para descobrir a verdade sobre o programa, Volcker descobriu que a Cotecna, uma das mais de duas mil empresas envolvidas nestes subornos, contratara Kojo Annan, o filho de Kofi, e lhe pagara até 2004, apesar de ele ter deixado de trabalhar lá em 1998.
Tendo sido o querido dos media americanos e do establishment de Washington, Annan assistia agora a pedidos para que se demitisse nas conferências de imprensa. Em Dezembro de 2004, com o seu prestígio estilhaçado, concordou em fazer uma introspecção no apartamento de Richard Holbrooke em Nova Iorque. Ali, Les Gelb, do Council on Foreign Relations [um prestigiado think-tank], disse-lhe que, depois de auscultar as suas fontes em Washington, a perspectiva da Administração Bush sobre Annan era: "Eles não o vão empurrar, mas, se você cair, também não o apanharão."
Annan sobreviveu ao reunir todos os favores políticos que acumulara na sua longa carreira. O seu amigo Bill Clinton foi à Casa Branca dizer a George W. Bush: "Você não quer ter o sangue de Kofi Annan nas suas mãos." Ao que Bush respondeu: "Os meus ultraconservadores querem destruir as Nações Unidas, mas eu não."
Nos seus dois últimos anos como secretário-geral, Annan lutou para salvar a sua reputação. Responsabilizou-se pelos falhanços abjectos de gestão e roubo que caracterizaram o programa Petróleo por Alimentos e procurou recuperar a iniciativa política lançando uma tentativa frenética de reforma da instituição. Quis aumentar o Conselho de Segurança, criar uma comissão de construção de paz e substituir a desacreditada Comissão para os Direitos Humanos pelo Conselho para os Direitos Humanos. O esforço era merecedor, mas o tempo para a reforma já tinha passado. Nessa altura, os EUA já tinham enviado o barulhento John Bolton para a ONU em sinal do seu descontentamento e como compensação à ala direita de Bush. Annan descobriu que o seu prestígio estava demasiado machucado para conseguir reformas significativas. Um secretariado-geral que começara com esperança, em 1996, acabou em frustração, em 2006.
Quando nos lembramos como o cargo de Annan terminou, começamos a compreender a sua determinação em continuar sob os olhares públicos, em mediar um conflito no Quénia na disputa que se seguiu às eleições de 2008 e finalmente na procura da paz na Síria. Estas procuras da paz são mais do que o desejo de um mediador em manter-se ocupado. No fundo, dado aquilo que viu, viveu e pelo qual se responsabilizou, podem ser interpretadas como a busca de redenção de um homem consciencioso.
A história de Annan é um conto admonitório sobre a fragilidade do prestígio moral num mundo teimosamente liderado pelos interesses estatais. Ele pode ser visto como um empreendedor de padrões morais, promover novas ideias de comportamento colectivo, responsabilidade soberana e responsabilização criminosa internacional num mundo que por breves momentos acreditou que a globalização nos pode aproximar. Pôs o seu próprio prestígio em jogo para levar a paz a zonas de guerra, da Bósnia a Timor-Leste. Dialogaria com tiranos se houvesse uma hipótese de paz. Para atingir estes objectivos, estava preparado - era esta a essência das suas funções - para conviver com o nacionalismo estreito dos interesses estatais que servia e com a cobardia da burocracia da ONU que o tornou naquilo que foi. Nunca alguém esteve tão perto de ser a voz de "nós, os povos" e jamais alguém pagou um preço tão alto por isso. O mundo continua a precisar de uma voz assim, mas quem tentar desempenhar esse papel irá querer reflectir dura e longamente nas lições das suas cândidas, corajosas e abundantes memórias.
Exclusivo PÚBLICO / New York Review of Books
1. Os falhanços - Petróleo por Alimentos, Ruanda, Srebrenica, escândalos sexuais de capacetes azuis - estão vivamente reflectidos num documentário maldoso, implacável e parcial chamado UN Me, de Matthew Groff e Ami Horowitz. 2. Ver Perry Anderson, Our Man, London Review of Books, 10 de Maio de 2007, uma recensão de James Traub intitulada The Best Intentions: Kofi Annan and the UN in the Era of American Power (Bloomsbury 2006). 3. Kofi Annan Statement, Genebra, 2 de Agosto de 2012. 4. Samantha Power, Chasing the Flame: Sérgio Vieira de Mello and the Fight to Save de World (Penguin, 2008), pág. 239. 5.The Charlie Rose Show, 10 de Setembro de 2012
Interventions: A Life in War and Peace
Kofi Annan, com Nader Mousavizadeh
Penguin, 383 págs.Timor-Leste: Os bastidores das negociações
Já poucos acreditavam que Timor conseguisse a independência. Mesmo em Portugal. Algures entre a "feitiçaria africana" de Kofi Annan, a queda de Suharto e a sabedoria da diplomacia portuguesa de propor ideias sem que parecessem suas está o segredo do sucesso desta história improvável
Acabara mais uma ronda de negociações entre Portugal e a Indonésia e os jornalistas queriam saber quais tinham sido os progressos - se algum. E é então que Jaime Gama, sempre misterioso e sisudo, diz sobre Ali Alatas, ministro indonésio dos Negócios Estrangeiros, a mais inesperada das frases: "Alatas parecia um diplomata português a falar de Timor-Leste. Quase o cumprimentei com "Bom dia, Sr. Gama"."
Na sala, diplomatas e jornalistas soltaram uma gargalhada. É conhecido o humor desconcertante do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros português - surge quando não se espera e sem provocar a mínima alteração na sua cara. Mas estava-se a 7 de Fevereiro de 1999 e a reunião à porta fechada fora decisiva.
Mais ou menos adormecida na agenda internacional até Kofi Annan tomar posse como secretário-geral das Nações Unidas em Janeiro de 1997, a "questão de Timor" manteve-se quase imutável durante 20 anos.
Poucos acreditavam numa solução. Mesmo em Portugal. "O José Ramos-Horta fartava-se de pedir para ser recebido, mas ninguém queria. Fui eu o primeiro a recebê-lo, já em 1981", conta André Gonçalves Pereira, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Sucessivos governos "deixaram os anos passar sem terem qualquer iniciativa", diz a eurodeputada socialista Ana Gomes, que, como diplomata, esteve durante anos envolvida no processo. "Toda a gente achava sempre impossível, só um imbecil de um português é que podia acreditar na independência", diz o recém-reformado embaixador Fernando Neves, que liderou, com o ministro Gama, o processo negocial. Não foi uma nem duas vezes que recebeu "advertências" de diplomatas estrangeiros para não falar "outra vez de Timor". "Éramos quase ameaçados por colegas, directores-gerais de países europeus, para não levantarmos a questão de Timor em reuniões internacionais", conta. Ana Gomes arrisca um número e diz que até ao massacre de Santa Cruz, em 1991, que tanto emocionou o mundo, "80% dos diplomatas portugueses davam Timor como perdido".
"[Estava-se em plena Guerra Fria e os EUA] diziam-nos clarissimamente que [o ditador indonésio] Suharto era um aliado americano e que os guerrilheiros da Fretilin eram comunistas", conta Gonçalves Pereira. O embaixador Neves lembra-se de estar em Bruxelas em 1986 quando, durante um episódio crítico relacionado com Timor, Portugal sentiu solidariedade pela primeira e única vez em anos. "Só a Grécia - e a Irlanda mais tarde - foi consistente no apoio a Timor."
E, por isso, quando Kofi Annan nomeia o embaixador paquistanês Jamsheed Marker como representante pessoal do secretário-geral para Timor-Leste, logo nos primeiros dias do seu mandato, o gesto foi interpretado como um sinal de que a ONU ia injectar ambição no assunto.
Havia "muitos e óptimos dossiers na sede da ONU sobre a questão", conta Marker nas suas memórias sobre o processo negocial que começou em 1997 e culminou, dois anos depois, com o acordo que permitiu a Timor escolher, num referendo, que queria a independência. Mas ao lê-los "não era possível ter grande optimismo".
A seguir à invasão de Timor pela Indonésia, em 1975, houve o corte de relações diplomáticas e comerciais entre Lisboa e Jacarta e durante anos o contacto foi inexistente. Em 1983, começou um diálogo formal, mediado pela ONU, mas sem progressos. "Havia uma grande incompreensão, as pessoas diziam que não acontecia nada, "para que servia aquilo?"", diz Fernando Neves. "Sem perceberem que as reuniões tripartidas foram o pé que permitiu que não se fechasse a porta de Timor." Se calhar, diz o embaixador com um sorriso irónico, "os indonésios não compreenderam que, ao aceitarem discutir na ONU, estavam a reconhecer que Timor era um problema internacional - não se discute o Minho com mediação das Nações Unidas".
Mas na prática, os dois países "não se ouviam", queixou-se o bispo Ximenes Belo, quando o enviado da ONU visitou Díli pela primeira vez em 1997. Porque tinham posições diferentes, mas também porque havia "um choque entre a mentalidade oriental de "conversas nas sombras" e a mentalidade cartesiana da discussão aberta dos portugueses", escreve Marker em Timor-Leste - Relato das Negociações para a Independência (Ed. MNE/ID, 2009). "Lisboa não conhecia o seu interlocutor", confirma António Pinto da França, que foi embaixador de Portugal em Jacarta nos anos 1960. "Os diplomatas javaneses são muito subtis e sofisticados, muito ingleses. E os javaneses querem sempre resolver tudo com o tempo - tempo tidak apa, dizem eles, o tempo não importa. Não gostam de confronto e seguem o alus, a suavidade."
Uma palavra esquisita para quem estava em Nova Iorque à mesa das negociações. "Era um bocado difícil estar a negociar com os indonésios e não ter presente a crueldade do que se passava em Timor", diz Fernando Neves.
Com mais ou menos alus, a verdade é que em 1997, quando Annan agarrou no dossier, Lisboa e Jacarta diziam exactamente o mesmo há 15 anos. "A Indonésia defendia que a integração de Timor-Leste era completa e final e Portugal defendia que ainda faltava um acto de autodeterminação", escreve Marker. "E nestas duas rochas de intransigência haviam soçobrado todas as negociações até então."
A 7 de Fevereiro de 1999, quando Gama elogia o velho inimigo indonésio à frente de toda a imprensa internacional, na conferência de imprensa em Nova Iorque, já estavam para trás dois anos intensos de rondas, dezenas de reuniões e viagens entre Nova Iorque, Lisboa, Jacarta e Díli, muitos pequenos avanços e ainda mais recuos, desconfiança, azedume e exaltações. Chegava-se a um desbloqueio crucial. Gama tinha boas razões para estar contente e deixar abrir a sua couraça: se os timorenses quisessem, as duas partes - timorenses e indonésios - seguiriam "caminhos separados".
Três meses depois desta reunião, Lisboa e Jacarta assinavam naquela mesma sala de imprensa da sede da ONU, em Nova Iorque, o célebre Acordo de 5 de Maio que deu lugar ao referendo em Timor-Leste, cujo resultado inequívoco levou à independência do país, faz este domingo dez anos.
É no seu livro de memórias que Jamsheed Marker conta os bastidores desta reunião: "Para os indonésios, era anátema utilizar a palavra "referendo", ao passo que para os portugueses tudo o que não parecesse um referendo era nevrálgico."
Agarrado ao seu lema - "A nossa paciência dar-nos-á mais do que a nossa força" -, Marker propusera uma solução: porque não chamar "consulta popular" ao referendo que não se podia chamar referendo? Este problema semântico, que poderá parecer ridículo todos estes anos depois, demonstra a importância que a diplomacia teve para revolver o longo impasse de Timor-Leste, concordam diplomatas e políticos ouvidos pelo PÚBLICO.
Mais decisivo ainda, defende Ana Gomes, foi Portugal ter feito uma proposta para uma autonomia alargada para Timor e "ter tido a habilidade de fazer crer que não tínhamos sido nós a pôr a ideia em cima da mesa". Neves conta: "Fui ter com Gama com uma folha A4 com um novo quadro de autonomia." A Indonésia continuaria responsável pela diplomacia, defesa, moeda e finanças, e a autonomia regional teria poder legislativo, executivo e judicial, além de autonomia total cultural, incluído a educação, língua e promoção da cultura. No fim dizia que para a Indonésia autonomia implicava integração e para a comunidade internacional era um processo incompleto. Gama diz: "Isto é o tipo de coisas que a ONU gosta."
Mais tarde, quando levou a proposta a Marker e aos seus assistentes no processo, o catalão Francesc Vendrell e o eritreu Tamrat Samuel, todos disseram em coro: "Oh, isso é impossível. Os indonésios nunca vão aceitar!" À tarde, porém, Samuel pede a Neves para subir e explicar melhor a ideia. E então Neves diz: "Nenhuma destas propostas pode ser apresentada como sendo portuguesa. Tem que ser da ONU." Todos conheciam o peso do reflexo pavloviano nas negociações.
E assim foi. De tal modo, diz Ana Gomes, que mais tarde a Indonésia faz uma proposta que apresenta como "nova" mas que é quase igual à que, meses antes, Portugal apresentara. A arte de não querer ficar sempre com os louros, poder-se-ia dizer. Ou simplesmente "a arte da diplomacia", diz Neves, que "é fazer o impossível".
"Nenhuma solução aparece caída do nada", diz Zacarias da Costa, actual ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor. "O referendo não foi o resultado de um longo processo negocial e não foi o resultado das mudanças do regime indonésio: foi o resultado de ambos", diz.
O que nos leva ao Verão de 1997. Os EUA continuavam ambivalentes e Nelson Mandela, já livre e Presidente da África do Sul, começou a pedir publicamente a libertação de Xanana Gusmão, o líder da guerrilha timorense. Quando foi a Jacarta, Mandela pediu a Suharto para se encontrar com Xanana, mas o ditador respondeu com uma pergunta: "Porque quer falar com ele? Não passa de um criminoso comum." Quando Mandela lhe disse: "Foi precisamente isso que disseram de mim durante 25 anos", o ditador autorizou Xanana a sair para jantar com Mandela. "Não posso atestar a veracidade desta história, mas tem um ar autêntico", diz Marker. Sabe-se, pelo menos, que o jantar aconteceu e que dele "nasceu um enorme respeito mútuo".
No Natal, apareceram as "primeiras rachas na gigantesca e monolítica pirâmide financeira da Indonésia", lembra Marker. Dias depois, Suharto assinou um acordo de ajuda financeira com o FMI e a fotografia correu mundo: o velho Presidente indonésio está sentado a assinar e ao lado, de pé e com os braços cruzados, o director-geral do FMI, o francês Michel Camdessus, com um sorriso contido. Pecado mortal. Numa cultura onde salvar a face é muito valorizado, a fotografia foi uma humilhação. "Começou a inquietação", diz Marker. Logo a seguir, começaram os rumores sobre o estado de saúde do Presidente.
A doença de Suharto era interpretada de forma oposta. Alatas insistia que era "agora ou nunca", pois os sucessores de Suharto, mais novos e sem conhecimento do dossier, teriam ainda mais dificuldade em aceitar a ideia de que Timor não era parte da Indonésia. Alatas chegou a dizer a Marker que, se Suharto caísse, a pasta da diplomacia seria entregue a outra pessoa. Portugal, pelo contrário, achava que a questão não se poderia resolver enquanto Suharto estivesse no poder.
A 3 de Abril de 1998, quando B.J. Habibie, vice-presidente de Suharto, se encontra pela primeira vez com Kofi Annan, a Indonésia age e fala como se o regime estivesse de pedra e cal. Não foi um encontro agradável. Habibie disse ao secretário-geral da ONU que "tinha tão pouca confiança nos portugueses que nem valia a pena reunir-se com o primeiro-ministro" António Guterres, uma proposta portuguesa. Teve "várias exclamações efervescentes e surpreendentes", escreve Marker, e defendeu que a Indonésia melhorara muito a vida dos timorenses.
A argumentação não era nova. Um ano antes, quando o enviado da ONU falou com Suharto, o Presidente indonésio disse-lhe que "ao fim de 400 anos de ocupação colonial, os portugueses [tinham deixado] Timor-Leste com 20km de estrada e um médico", e que "aceitar a integração" da meia ilha em 1975 fora um "fardo pesado" que obrigara a Indonésia a "sacrificar o desenvolvimento nas outras 26 províncias".
Annan ouviu Habibie e falou no fim. De forma "delicada mas firme", disse-lhe que o "investimento económico em nada alterara a atmosfera política em Timor-Leste, que Jacarta não conquistara o coração e a opinião dos timorenses e que subsistia um enorme problema político". A reacção? "Habibie não ficou satisfeito, mas aceitou o comentário com elegância."
Um mês depois, o velho ditador Suharto foi forçado a demitir-se. Trinta e dois anos depois de um regime brutal, a gota de água foi a morte de seis estudantes universitários durante uma manifestação contra as medidas de austeridade impostas pelo FMI. Habibie sobe a Presidente. Em Portugal e em Timor, a pergunta é uma: a mudança ajuda ou complica as negociações diplomáticas em curso?
Ana Gomes não tem dúvidas: "Sabíamos que era a nossa janela de oportunidade." Um dos segredos do sucesso, diz Neves, foi "Portugal saber aproveitar as mudanças".
A situação está cada vez mais volátil. Num desabafo, Marker diz a Kofi Annan que trabalhar na questão de Timor naquele momento "era como arear as pratas no Titanic". Annan, que "não tem "desencorajamento" no seu vocabulário", escreve o diplomata paquistanês, ri-se e responde: "Mas vamos continuar a fazê-lo."
Todos sabiam como Jacarta e Lisboa podiam passar anos a fio a discutir coisas aparentemente simples sem chegar a lado nenhum. Nas suas memórias sobre as negociações (The Pebble in the Shoe - The Diplomatic Struggle for East Timor, Ed. Aksara Karunia, 2006) Ali Alatas, que afinal manteve o seu lugar à frente da diplomacia, conta com pormenor como Portugal e a Indonésia passaram quatro anos e meio a discutir a visita de uma delegação de deputados portugueses a Timor, que nunca chegou a acontecer.
Nesta nova fase, já nos anos 1990, se houve coisa que evoluiu foi o vocabulário. As posições de ambos eram imutáveis, mas iam-se encontrando novas palavras para que o diálogo continuasse. Marker, cuja escolha levantara inicialmente alguns sobrolhos em Portugal - era amigo próximo de Ali Alatas, a quem tratava por "Alex" -, rapidamente tomou partido. Basta ver como descreve os timorenses integracionistas a primeira vez que visita Díli. "O seu ar elegante, arrogante e confiante era um contraste brutal com o dos grupos pró-independência, andrajosos, esqueléticos e com expressões desesperadamente esperançadas nos olhos."
Um primeiro grande passo nas negociações foi aceitar discutir a autonomia sem decidir, a priori, se essa autonomia seria uma solução definitiva ou provisória. Em Junho de 1998, Alatas telefona a Marker e diz que tem "uma proposta importante" a fazer. Os EUA começavam a mudar, Stanley Roth, númerodois para a Ásia da diplomacia americana, tinha conhecido Xanana na prisão e dissera a Marker que lhe vira uma "atitude extremamente objectiva e de estadista". Marker, por seu lado, viu no líder guerrilheiro "uma versão mais jovem de Mandela".
E veio a proposta. Habibie atirava para a mesa de negociações uma proposta de "autonomia especial, alargada" para Timor. Insistia que um referendo "viria apenas reabrir feridas antigas, reacender confrontos e conflitos" e que poderia "conduzir a uma nova guerra civil". Portugal achou o "documento útil", conta Marker. O Presidente Jorge Sampaio ficou "especialmente impressionado" e Jaime Gama disse que eram "desenvolvimentos muito, muito positivos". Havia, claro, reservas: Gama perguntou se os indonésios estariam prontos a permitir a formação de partidos políticos timorenses e Sampaio insistiu que "não faria sentido" aceitar a proposta de autonomia como solução final e continuar a negociar. Hoje, Ana Gomes ri-se: "Era a nossa proposta!"
Era preciso "conceber" modalidades para uma "abordagem gradual", como, por exemplo, um período de transição, em que a questão do estatuto da autonomia ficasse em suspenso. Numa reunião pouco depois, em Jacarta, Habibie voltou a dizer à ONU que a autonomia era o "limiar máximo" e que um referendo em Timor levaria à desintegração da Indonésia. Exaltado, disse "categoricamente que não libertaria Xanana".
Em dois anos, falou-se em "autonomia especial", em "autonomia alargada", em "região autónoma especial" e até numa "autonomia regional mais". Mas sempre que se dava um passo, batia-se no mesmo obstáculo: seria a autonomia de uma parte da Indonésia ou a autonomia de um "território sem governo próprio" ainda à espera de um processo de descolonização?
É por isso que ainda hoje se discute o que motivou uma inversão tão radical de B.J. Habibie. A 27 de Janeiro de 1999, o novo Presidente anuncia que o conselho de ministros indonésio decidira que Timor iria receber uma "autonomia regional mais". A bomba veio na frase seguinte: "Se a maioria dos timorenses não a quiser, [o Governo vai sugerir ao Parlamento que] Timor seja libertado da Indonésia." Em Lisboa, o embaixador Fernando Neves estava a fazer a barba quando ouviu a notícia na rádio. "Senti-me perdido. Era uma boa notícia, mas senti o tapete a fugir-me dos pés." Os que seguiam o tema tiveram ainda mais uma surpresa: Xanana passaria a regime de prisão domiciliária.
Marker defende que o volte-face "partiu exclusivamente de Habibie", que "abraçou o projecto" e "lançou esta jangada na tumultuosa corrente de liberdade que atravessava a Indonésia", escreve o mediador da ONU. Habibie queria ganhar capital político para se reposicionar na nova Indonésia, seguiu "genuínos sentimentos de humanitarismo" ou foi simplesmente calculista, consciente de que o custo de não mudar seria maior?
"Habibie é um engenheiro, uma pessoa prática", diz o chefe da diplomacia timorense, Zacarias da Costa. "Queria livrar-se de um grande peso para poder desenhar essa nova Indonésia." E estava bem rodeado, defende. "A sua conselheira Dewi Fortuna Anwar, uma mulher especial de uma nova geração, foi decisiva na mudança." Muitos defendem - incluindo Alatas - que a única razão que levou Habibie a aceitar a hipótese da independência foi não acreditar, nem por um segundo, que os timorenses não preferissem a integração na Indonésia. Em pouco meses, a "pequena fatia da humanidade" que há anos "pedia ajuda", nas palavras enfáticas de Marker, "espécie de florzinha de estufa", estava à beira de escolher o seu futuro.
Faltava ainda um último grande duelo. O da segurança no dia do referendo, em relação ao qual a ONU e Portugal aceitaram condições insatisfatórioas correndo riscos - com o aval de Xanana. E todas as partes práticas da "consulta popular". Havia que decidir quem votava, como era o boletim e como seria feita a consulta. "E foi então que vi a mais brilhante intervenção numa ronda negocial", conta Neves. Kofi Annan está a presidir e em frente, do outro lado da mesa, Gama e Alatas. O secretário-geral pergunta como acham as partes que se deve fazer a votação. Alatas começa e, como é seu estilo, "fala 12, 14 minutos, uma imensidão, e propõe que a ONU podia ir de carro, de aldeia em aldeia, ao longo de três dias, recolher os votos dos timorenses, e continua por ali cheio de pormenores", conta Neves. Quando se cala, todos esperam que Gama pegue na palavra e exponha a ideia portuguesa. Mas nada. Gama, que está em frente a Annan, olha serenamente algures para um ponto perdido, talvez a parede, talvez o tecto. Os segundos passam, o que nestas situações parecem horas. Até que Kofi Annan diz: "Ministro Gama, não quer dizer alguma coisa?" Gama explica então a teoria geral do escrutínio - algo como "primeiro as pessoas são recenseadas, depois as pessoas votam, depois os votos são contados" - e a seguir diz que a Indonésia vai em breve ter umas eleições em todo o país num só dia. "Não vejo porque a consulta em Timor não seja feita num só dia também." Alatas não disse mais nada.
Na sala, diplomatas e jornalistas soltaram uma gargalhada. É conhecido o humor desconcertante do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros português - surge quando não se espera e sem provocar a mínima alteração na sua cara. Mas estava-se a 7 de Fevereiro de 1999 e a reunião à porta fechada fora decisiva.
Mais ou menos adormecida na agenda internacional até Kofi Annan tomar posse como secretário-geral das Nações Unidas em Janeiro de 1997, a "questão de Timor" manteve-se quase imutável durante 20 anos.
Poucos acreditavam numa solução. Mesmo em Portugal. "O José Ramos-Horta fartava-se de pedir para ser recebido, mas ninguém queria. Fui eu o primeiro a recebê-lo, já em 1981", conta André Gonçalves Pereira, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Sucessivos governos "deixaram os anos passar sem terem qualquer iniciativa", diz a eurodeputada socialista Ana Gomes, que, como diplomata, esteve durante anos envolvida no processo. "Toda a gente achava sempre impossível, só um imbecil de um português é que podia acreditar na independência", diz o recém-reformado embaixador Fernando Neves, que liderou, com o ministro Gama, o processo negocial. Não foi uma nem duas vezes que recebeu "advertências" de diplomatas estrangeiros para não falar "outra vez de Timor". "Éramos quase ameaçados por colegas, directores-gerais de países europeus, para não levantarmos a questão de Timor em reuniões internacionais", conta. Ana Gomes arrisca um número e diz que até ao massacre de Santa Cruz, em 1991, que tanto emocionou o mundo, "80% dos diplomatas portugueses davam Timor como perdido".
"[Estava-se em plena Guerra Fria e os EUA] diziam-nos clarissimamente que [o ditador indonésio] Suharto era um aliado americano e que os guerrilheiros da Fretilin eram comunistas", conta Gonçalves Pereira. O embaixador Neves lembra-se de estar em Bruxelas em 1986 quando, durante um episódio crítico relacionado com Timor, Portugal sentiu solidariedade pela primeira e única vez em anos. "Só a Grécia - e a Irlanda mais tarde - foi consistente no apoio a Timor."
E, por isso, quando Kofi Annan nomeia o embaixador paquistanês Jamsheed Marker como representante pessoal do secretário-geral para Timor-Leste, logo nos primeiros dias do seu mandato, o gesto foi interpretado como um sinal de que a ONU ia injectar ambição no assunto.
Havia "muitos e óptimos dossiers na sede da ONU sobre a questão", conta Marker nas suas memórias sobre o processo negocial que começou em 1997 e culminou, dois anos depois, com o acordo que permitiu a Timor escolher, num referendo, que queria a independência. Mas ao lê-los "não era possível ter grande optimismo".
A seguir à invasão de Timor pela Indonésia, em 1975, houve o corte de relações diplomáticas e comerciais entre Lisboa e Jacarta e durante anos o contacto foi inexistente. Em 1983, começou um diálogo formal, mediado pela ONU, mas sem progressos. "Havia uma grande incompreensão, as pessoas diziam que não acontecia nada, "para que servia aquilo?"", diz Fernando Neves. "Sem perceberem que as reuniões tripartidas foram o pé que permitiu que não se fechasse a porta de Timor." Se calhar, diz o embaixador com um sorriso irónico, "os indonésios não compreenderam que, ao aceitarem discutir na ONU, estavam a reconhecer que Timor era um problema internacional - não se discute o Minho com mediação das Nações Unidas".
Mas na prática, os dois países "não se ouviam", queixou-se o bispo Ximenes Belo, quando o enviado da ONU visitou Díli pela primeira vez em 1997. Porque tinham posições diferentes, mas também porque havia "um choque entre a mentalidade oriental de "conversas nas sombras" e a mentalidade cartesiana da discussão aberta dos portugueses", escreve Marker em Timor-Leste - Relato das Negociações para a Independência (Ed. MNE/ID, 2009). "Lisboa não conhecia o seu interlocutor", confirma António Pinto da França, que foi embaixador de Portugal em Jacarta nos anos 1960. "Os diplomatas javaneses são muito subtis e sofisticados, muito ingleses. E os javaneses querem sempre resolver tudo com o tempo - tempo tidak apa, dizem eles, o tempo não importa. Não gostam de confronto e seguem o alus, a suavidade."
Uma palavra esquisita para quem estava em Nova Iorque à mesa das negociações. "Era um bocado difícil estar a negociar com os indonésios e não ter presente a crueldade do que se passava em Timor", diz Fernando Neves.
Com mais ou menos alus, a verdade é que em 1997, quando Annan agarrou no dossier, Lisboa e Jacarta diziam exactamente o mesmo há 15 anos. "A Indonésia defendia que a integração de Timor-Leste era completa e final e Portugal defendia que ainda faltava um acto de autodeterminação", escreve Marker. "E nestas duas rochas de intransigência haviam soçobrado todas as negociações até então."
A 7 de Fevereiro de 1999, quando Gama elogia o velho inimigo indonésio à frente de toda a imprensa internacional, na conferência de imprensa em Nova Iorque, já estavam para trás dois anos intensos de rondas, dezenas de reuniões e viagens entre Nova Iorque, Lisboa, Jacarta e Díli, muitos pequenos avanços e ainda mais recuos, desconfiança, azedume e exaltações. Chegava-se a um desbloqueio crucial. Gama tinha boas razões para estar contente e deixar abrir a sua couraça: se os timorenses quisessem, as duas partes - timorenses e indonésios - seguiriam "caminhos separados".
Três meses depois desta reunião, Lisboa e Jacarta assinavam naquela mesma sala de imprensa da sede da ONU, em Nova Iorque, o célebre Acordo de 5 de Maio que deu lugar ao referendo em Timor-Leste, cujo resultado inequívoco levou à independência do país, faz este domingo dez anos.
É no seu livro de memórias que Jamsheed Marker conta os bastidores desta reunião: "Para os indonésios, era anátema utilizar a palavra "referendo", ao passo que para os portugueses tudo o que não parecesse um referendo era nevrálgico."
Agarrado ao seu lema - "A nossa paciência dar-nos-á mais do que a nossa força" -, Marker propusera uma solução: porque não chamar "consulta popular" ao referendo que não se podia chamar referendo? Este problema semântico, que poderá parecer ridículo todos estes anos depois, demonstra a importância que a diplomacia teve para revolver o longo impasse de Timor-Leste, concordam diplomatas e políticos ouvidos pelo PÚBLICO.
Mais decisivo ainda, defende Ana Gomes, foi Portugal ter feito uma proposta para uma autonomia alargada para Timor e "ter tido a habilidade de fazer crer que não tínhamos sido nós a pôr a ideia em cima da mesa". Neves conta: "Fui ter com Gama com uma folha A4 com um novo quadro de autonomia." A Indonésia continuaria responsável pela diplomacia, defesa, moeda e finanças, e a autonomia regional teria poder legislativo, executivo e judicial, além de autonomia total cultural, incluído a educação, língua e promoção da cultura. No fim dizia que para a Indonésia autonomia implicava integração e para a comunidade internacional era um processo incompleto. Gama diz: "Isto é o tipo de coisas que a ONU gosta."
Mais tarde, quando levou a proposta a Marker e aos seus assistentes no processo, o catalão Francesc Vendrell e o eritreu Tamrat Samuel, todos disseram em coro: "Oh, isso é impossível. Os indonésios nunca vão aceitar!" À tarde, porém, Samuel pede a Neves para subir e explicar melhor a ideia. E então Neves diz: "Nenhuma destas propostas pode ser apresentada como sendo portuguesa. Tem que ser da ONU." Todos conheciam o peso do reflexo pavloviano nas negociações.
E assim foi. De tal modo, diz Ana Gomes, que mais tarde a Indonésia faz uma proposta que apresenta como "nova" mas que é quase igual à que, meses antes, Portugal apresentara. A arte de não querer ficar sempre com os louros, poder-se-ia dizer. Ou simplesmente "a arte da diplomacia", diz Neves, que "é fazer o impossível".
"Nenhuma solução aparece caída do nada", diz Zacarias da Costa, actual ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor. "O referendo não foi o resultado de um longo processo negocial e não foi o resultado das mudanças do regime indonésio: foi o resultado de ambos", diz.
O que nos leva ao Verão de 1997. Os EUA continuavam ambivalentes e Nelson Mandela, já livre e Presidente da África do Sul, começou a pedir publicamente a libertação de Xanana Gusmão, o líder da guerrilha timorense. Quando foi a Jacarta, Mandela pediu a Suharto para se encontrar com Xanana, mas o ditador respondeu com uma pergunta: "Porque quer falar com ele? Não passa de um criminoso comum." Quando Mandela lhe disse: "Foi precisamente isso que disseram de mim durante 25 anos", o ditador autorizou Xanana a sair para jantar com Mandela. "Não posso atestar a veracidade desta história, mas tem um ar autêntico", diz Marker. Sabe-se, pelo menos, que o jantar aconteceu e que dele "nasceu um enorme respeito mútuo".
No Natal, apareceram as "primeiras rachas na gigantesca e monolítica pirâmide financeira da Indonésia", lembra Marker. Dias depois, Suharto assinou um acordo de ajuda financeira com o FMI e a fotografia correu mundo: o velho Presidente indonésio está sentado a assinar e ao lado, de pé e com os braços cruzados, o director-geral do FMI, o francês Michel Camdessus, com um sorriso contido. Pecado mortal. Numa cultura onde salvar a face é muito valorizado, a fotografia foi uma humilhação. "Começou a inquietação", diz Marker. Logo a seguir, começaram os rumores sobre o estado de saúde do Presidente.
A doença de Suharto era interpretada de forma oposta. Alatas insistia que era "agora ou nunca", pois os sucessores de Suharto, mais novos e sem conhecimento do dossier, teriam ainda mais dificuldade em aceitar a ideia de que Timor não era parte da Indonésia. Alatas chegou a dizer a Marker que, se Suharto caísse, a pasta da diplomacia seria entregue a outra pessoa. Portugal, pelo contrário, achava que a questão não se poderia resolver enquanto Suharto estivesse no poder.
A 3 de Abril de 1998, quando B.J. Habibie, vice-presidente de Suharto, se encontra pela primeira vez com Kofi Annan, a Indonésia age e fala como se o regime estivesse de pedra e cal. Não foi um encontro agradável. Habibie disse ao secretário-geral da ONU que "tinha tão pouca confiança nos portugueses que nem valia a pena reunir-se com o primeiro-ministro" António Guterres, uma proposta portuguesa. Teve "várias exclamações efervescentes e surpreendentes", escreve Marker, e defendeu que a Indonésia melhorara muito a vida dos timorenses.
A argumentação não era nova. Um ano antes, quando o enviado da ONU falou com Suharto, o Presidente indonésio disse-lhe que "ao fim de 400 anos de ocupação colonial, os portugueses [tinham deixado] Timor-Leste com 20km de estrada e um médico", e que "aceitar a integração" da meia ilha em 1975 fora um "fardo pesado" que obrigara a Indonésia a "sacrificar o desenvolvimento nas outras 26 províncias".
Annan ouviu Habibie e falou no fim. De forma "delicada mas firme", disse-lhe que o "investimento económico em nada alterara a atmosfera política em Timor-Leste, que Jacarta não conquistara o coração e a opinião dos timorenses e que subsistia um enorme problema político". A reacção? "Habibie não ficou satisfeito, mas aceitou o comentário com elegância."
Um mês depois, o velho ditador Suharto foi forçado a demitir-se. Trinta e dois anos depois de um regime brutal, a gota de água foi a morte de seis estudantes universitários durante uma manifestação contra as medidas de austeridade impostas pelo FMI. Habibie sobe a Presidente. Em Portugal e em Timor, a pergunta é uma: a mudança ajuda ou complica as negociações diplomáticas em curso?
Ana Gomes não tem dúvidas: "Sabíamos que era a nossa janela de oportunidade." Um dos segredos do sucesso, diz Neves, foi "Portugal saber aproveitar as mudanças".
A situação está cada vez mais volátil. Num desabafo, Marker diz a Kofi Annan que trabalhar na questão de Timor naquele momento "era como arear as pratas no Titanic". Annan, que "não tem "desencorajamento" no seu vocabulário", escreve o diplomata paquistanês, ri-se e responde: "Mas vamos continuar a fazê-lo."
Todos sabiam como Jacarta e Lisboa podiam passar anos a fio a discutir coisas aparentemente simples sem chegar a lado nenhum. Nas suas memórias sobre as negociações (The Pebble in the Shoe - The Diplomatic Struggle for East Timor, Ed. Aksara Karunia, 2006) Ali Alatas, que afinal manteve o seu lugar à frente da diplomacia, conta com pormenor como Portugal e a Indonésia passaram quatro anos e meio a discutir a visita de uma delegação de deputados portugueses a Timor, que nunca chegou a acontecer.
Nesta nova fase, já nos anos 1990, se houve coisa que evoluiu foi o vocabulário. As posições de ambos eram imutáveis, mas iam-se encontrando novas palavras para que o diálogo continuasse. Marker, cuja escolha levantara inicialmente alguns sobrolhos em Portugal - era amigo próximo de Ali Alatas, a quem tratava por "Alex" -, rapidamente tomou partido. Basta ver como descreve os timorenses integracionistas a primeira vez que visita Díli. "O seu ar elegante, arrogante e confiante era um contraste brutal com o dos grupos pró-independência, andrajosos, esqueléticos e com expressões desesperadamente esperançadas nos olhos."
Um primeiro grande passo nas negociações foi aceitar discutir a autonomia sem decidir, a priori, se essa autonomia seria uma solução definitiva ou provisória. Em Junho de 1998, Alatas telefona a Marker e diz que tem "uma proposta importante" a fazer. Os EUA começavam a mudar, Stanley Roth, númerodois para a Ásia da diplomacia americana, tinha conhecido Xanana na prisão e dissera a Marker que lhe vira uma "atitude extremamente objectiva e de estadista". Marker, por seu lado, viu no líder guerrilheiro "uma versão mais jovem de Mandela".
E veio a proposta. Habibie atirava para a mesa de negociações uma proposta de "autonomia especial, alargada" para Timor. Insistia que um referendo "viria apenas reabrir feridas antigas, reacender confrontos e conflitos" e que poderia "conduzir a uma nova guerra civil". Portugal achou o "documento útil", conta Marker. O Presidente Jorge Sampaio ficou "especialmente impressionado" e Jaime Gama disse que eram "desenvolvimentos muito, muito positivos". Havia, claro, reservas: Gama perguntou se os indonésios estariam prontos a permitir a formação de partidos políticos timorenses e Sampaio insistiu que "não faria sentido" aceitar a proposta de autonomia como solução final e continuar a negociar. Hoje, Ana Gomes ri-se: "Era a nossa proposta!"
Era preciso "conceber" modalidades para uma "abordagem gradual", como, por exemplo, um período de transição, em que a questão do estatuto da autonomia ficasse em suspenso. Numa reunião pouco depois, em Jacarta, Habibie voltou a dizer à ONU que a autonomia era o "limiar máximo" e que um referendo em Timor levaria à desintegração da Indonésia. Exaltado, disse "categoricamente que não libertaria Xanana".
Em dois anos, falou-se em "autonomia especial", em "autonomia alargada", em "região autónoma especial" e até numa "autonomia regional mais". Mas sempre que se dava um passo, batia-se no mesmo obstáculo: seria a autonomia de uma parte da Indonésia ou a autonomia de um "território sem governo próprio" ainda à espera de um processo de descolonização?
É por isso que ainda hoje se discute o que motivou uma inversão tão radical de B.J. Habibie. A 27 de Janeiro de 1999, o novo Presidente anuncia que o conselho de ministros indonésio decidira que Timor iria receber uma "autonomia regional mais". A bomba veio na frase seguinte: "Se a maioria dos timorenses não a quiser, [o Governo vai sugerir ao Parlamento que] Timor seja libertado da Indonésia." Em Lisboa, o embaixador Fernando Neves estava a fazer a barba quando ouviu a notícia na rádio. "Senti-me perdido. Era uma boa notícia, mas senti o tapete a fugir-me dos pés." Os que seguiam o tema tiveram ainda mais uma surpresa: Xanana passaria a regime de prisão domiciliária.
Marker defende que o volte-face "partiu exclusivamente de Habibie", que "abraçou o projecto" e "lançou esta jangada na tumultuosa corrente de liberdade que atravessava a Indonésia", escreve o mediador da ONU. Habibie queria ganhar capital político para se reposicionar na nova Indonésia, seguiu "genuínos sentimentos de humanitarismo" ou foi simplesmente calculista, consciente de que o custo de não mudar seria maior?
"Habibie é um engenheiro, uma pessoa prática", diz o chefe da diplomacia timorense, Zacarias da Costa. "Queria livrar-se de um grande peso para poder desenhar essa nova Indonésia." E estava bem rodeado, defende. "A sua conselheira Dewi Fortuna Anwar, uma mulher especial de uma nova geração, foi decisiva na mudança." Muitos defendem - incluindo Alatas - que a única razão que levou Habibie a aceitar a hipótese da independência foi não acreditar, nem por um segundo, que os timorenses não preferissem a integração na Indonésia. Em pouco meses, a "pequena fatia da humanidade" que há anos "pedia ajuda", nas palavras enfáticas de Marker, "espécie de florzinha de estufa", estava à beira de escolher o seu futuro.
Faltava ainda um último grande duelo. O da segurança no dia do referendo, em relação ao qual a ONU e Portugal aceitaram condições insatisfatórioas correndo riscos - com o aval de Xanana. E todas as partes práticas da "consulta popular". Havia que decidir quem votava, como era o boletim e como seria feita a consulta. "E foi então que vi a mais brilhante intervenção numa ronda negocial", conta Neves. Kofi Annan está a presidir e em frente, do outro lado da mesa, Gama e Alatas. O secretário-geral pergunta como acham as partes que se deve fazer a votação. Alatas começa e, como é seu estilo, "fala 12, 14 minutos, uma imensidão, e propõe que a ONU podia ir de carro, de aldeia em aldeia, ao longo de três dias, recolher os votos dos timorenses, e continua por ali cheio de pormenores", conta Neves. Quando se cala, todos esperam que Gama pegue na palavra e exponha a ideia portuguesa. Mas nada. Gama, que está em frente a Annan, olha serenamente algures para um ponto perdido, talvez a parede, talvez o tecto. Os segundos passam, o que nestas situações parecem horas. Até que Kofi Annan diz: "Ministro Gama, não quer dizer alguma coisa?" Gama explica então a teoria geral do escrutínio - algo como "primeiro as pessoas são recenseadas, depois as pessoas votam, depois os votos são contados" - e a seguir diz que a Indonésia vai em breve ter umas eleições em todo o país num só dia. "Não vejo porque a consulta em Timor não seja feita num só dia também." Alatas não disse mais nada.
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