27.08.2018 às 22h31
O senador do Arizona morreu no sábado, aos 81 anos, com mais de 60 dedicados ao seu país: primeiro no serviço militar e depois no serviço público. Numa das suas últimas votações, antes de se retirar devido à progressão inclemente do cancro no cérebro com o qual foi diagnosticado em 2017, evitou que Donald Trump anulasse o plano de saúde de Barack Obama. Esta é a carta de amor que escreveu ao que considera ser a excecionalidade do carácter dos seus compatriotas
A Guerra do Vietname não fez dele um pacifista. Não regressou como uma voz crítica das intervenções militares norte-americanas no mundo, não negou o legado nem a importância do Exército, mesmo sendo essa a senda por onde seguiam - e politicamente prosperavam - alguns dos seus companheiros de armas. John McCain, que morreu neste sábado, com 81 anos, vítima de uma forma violenta de cancro no cérebro, abraçou o seu papel de herói de guerra e utilizou essa imagem de bom rapaz, soldado prisioneiro e torturado, que a sua farda branca da Marinha fazia refletir, para se tornar num dos mais respeitados políticos da história da democracia norte-americana.
Depois do 11 de setembro, defendeu a “guerra ao terror de Bush” e a invasão do Iraque depois da alegada descoberta das armas de destruição maciça, mas insurgiu-se contra a tortura a que eram submetidos os prisioneiros dessas guerras e conseguiu criminalizar essas práticas. Perante a fúria dos responsáveis da CIA, Bush apoiou McCain.
Nos anos 1980 esteve envolvido num escândalo financeiro por ter feito parte de um grupo de senadores que tentou salvar um dos maiores financiadores republicanos de uma iminente falência, mas até disso se safou. Eram todos iguais, mas McCain foi menos igual do que os outros, que foram afastados. Ele não. Nos últimos meses tornou-se o mais feroz crítico de Donald Trump, o atual Presidente norte-americano membro do seu partido republicano, chegando a dizer que o encontro de Trump com Vladmir Putin, Presidente da Rússia, tinha sido das prestações mais vergonhosas de sempre por parte de um Presidente.
Foi senador pelo Estado do Arizona durante mais de 30 anos e as suas últimas palavras, escritas, foram entregues a um dos seus mais próximos colaboradores, Rick Davis. Esta segunda-feira, Davis divulgou-as. Aqui ficam, traduzidas e na íntegra:
"Queridos americanos, a quem eu servi, grato, durante 60 anos e em especial aos cidadãos do Estado do Arizona,
Obrigado pelo privilégio que me deram em poder servir-vos e pela vida enriquecedora que os tempos de serviço militar, e depois no serviço público, me permitiram levar. Tentei servir o nosso país honradamente. Cometi erros mas espero que o meu amor pela América os tenha, em alguma medida, mitigado.
Muitas vezes notei que sou a pessoa com mais sorte na Terra. Sinto-me assim agora, mesmo que esteja a preparar-me para o fim da minha vida. Adorei viver, adorei cada pedaço da vida. Tive nela experiências, aventuras e amizades suficientes para dez vidas preenchidas: estou mesmo muito grato.
Tal como na maioria das pessoas, há em mim alguns arrependimentos. Porém, não trocaria um único dia da minha vida, nos bons ou nos maus dias, pelo melhor dia da vida de uma outra pessoa qualquer. É ao amor da minha família que devo este contentamento. Não houve nunca um homem com uma mulher tão amável ou com filhos de quem tivesse tanto orgulho quanto eu tenho dos meus. E devo-o, também, à América.
A ligação que mantive às causas que este país defende - a liberdade, a igualdade perante a lei, o respeito pela dignidade de todas as pessoas - acarreta uma felicidade mais sublime do que aquela contida em todos os prazeres fugazes da vida.
A nossa identidade ou o nosso amor-próprio não são circunscritos, mas sim ampliados, pelas causas justas que servimos.
'Compatriotas' — esta associação teve sempre, entre todas, o maior impacto em mim. Vivi e morri um orgulhoso americano. Somos cidadãos da mais incrível república do mundo, uma nação de valores, não de sangue e solo. Somos abençoados e tornámo-nos uma benção para a Humanidade quando defendemos e fazemos avançar esses ideais, em casa e pelo mundo. Ajudámos a libertar mais pessoas da tirania e da pobreza do que qualquer outro país no mundo em qualquer era da História.
Nesse processo, prosperámos e adquirimos poder. Enfraquecemos o a nossa grandeza quando confundimos patriotismo com contendas tribais que espalham o ódio, o ressentimento e a violência por todas as partes do globo. Enfraquecêmo-lo quando nos protegemos atrás de muros em vez de os fazermos ruir e quando duvidamos dos nossos ideais, em vez de lhes confiarmos a grande força motriz que sempre tiveram na mudança no mundo.
Somos trezentos e vinte e cinco milhões de gente contestatária e ruidosa. Discutimos e competimos e por vezes vilipendiamo-nos uns aos outros nos nossos intempestivos debates públicos. Mas sempre tivemos muito mais em comum do que de diferente. Se apenas conseguíssemos lembrar-nos mais vezes disso e oferecer o benefício da presunção de que todos amamos este país, ultrapassaríamos com mais facilidade estes tempos complicados. Sairemos disto mais fortes do que éramos - foi sempre assim.
Há dez anos eu tive o privilégio de conceder a minha derrota na luta pela presidência. Quero terminar esta carta de despedida falando da fé inabalável que tenho nos americanos e que, naquela noite, senti com tanta força. Ainda a sinto com essa mesma força agora.
Não desesperem perante os desafios que hoje temos e acreditem sempre na promessa do poder da América. Nada há de inevitável. Os americanos não desistiem. Nós nunca nos rendemos. Nós não nos escondemos da História: forjamo-la.
Adeus, compatriotas. Deus vos abençoe e Deus abençoe a América".
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