O Decreto 40/2008, de 26 de Novembro, definiu, pela primeira vez, no nosso ordenamento jurídico, um regime específico regulamentador do contrato de serviço doméstico.
Tratando-se da primeira tentativa de regular, global e coerentemente, a prestação de trabalho doméstico e tendo surgido numa época de profundas mutações na concepção dos regimes disciplinadores da relação de trabalho, o referido diploma não poderia deixar de ser, naturalmente, objecto de nossos modestos comentários.
A circunstância de o trabalho doméstico ser prestado a agregados familiares, e, por isso, gerar relações profissionais com acentuado carácter pessoal que postulam um permanente clima de confiança, exige, a nosso ver, que o seu regime se continue a configurar como especial em certas matérias.
No que concerne às inovações, cabe anotar, em especial, a determinação da possibilidade de o contrato de trabalho doméstico ser reduzido a escrito (no 2 do artigo 6), a previsão de direitos e deveres dos empregados domésticos, inter alias. Por isso, interessa-nos no presente artigo perorar sobre o dever de urbanidade e de sigilo dos empregados domésticos. Os laços que unem o patrão residencial e seus auxiliares sempre geram uma afeição que, de regra, aproximam as partes e leva o empregador a abrir sua caixa de bondades, providenciando os mais diversos favores, notadamente quando os trabalhos são desenvolvidos a contento.
O caldo entorna quando se faz necessário o desligamento quando então, uma das partes decide que inadvertidamente esteve cega, surda e muda para seus "direitos". Aqui a afeição e todos os préstimos desaparecem como se num passe de mágica.
Proveniente do latim domesticus, a palavra "doméstico" se compreende por casa, da família, de domus, lar. Lar é a parte da cozinha onde se ascende o fogo, mas em sentido amplo compreende qualquer habitação. O trabalhador doméstico será, portanto, a pessoa que trabalha para a família, na habitação desta.
Contrato de serviço doméstico é, nos termos do artigo 3 do Decreto acima citado, aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a outrem, com carácter regular, sob a sua direcção e autoridade, actividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respectivos membros, nomeadamente: (i) Confecção de refeições, (ii) Lavagem e tratamento de roupas, (iii) Limpeza e arrumo de casa, (iv) Vigi- lância e assistência a crianças, pessoas idosas e doentes, (v) Tratamento de animais domésticos, (vi) Realização de serviços de jardinagem (vii) Execução de tarefas externas relacionadas com as anteriores e (viii) Outras tarefas acordadas.
Deste modo podemos entender que se empregador doméstico tiver actividade lucrativa, deixa o contrato entre as partes de ser doméstico, para ser regido pela Lei de Trabalho. Não há, por exemplo, a possibilidade de contratar um empregado doméstico para preparar salgados que serão vendidos. Da mesma forma, a lavadeira que trabalha para terceiros em sua própria casa, não poderá contratar uma ajudante como empregada doméstica, uma vez que o resultado dos serviços prestados pela contratada terá finalidade lucrativa.
Um exemplo que mostra com clareza seu entendimento é o do dentista que tem o seu consultório numa das dependências de sua residência. A faxineira que faz a limpeza deste, enquanto a fizer, não estará desenvolvendo um trabalho doméstico. Quanto à pessoalidade, o contrato de trabalho é feito com certa pessoa, daí se dizer que é intuito personae. Assim, o empregador conta com certa pessoa específica para lhe prestar servi- ços. Se o empregado doméstico faz-se substituir constantemente por outra pessoa, como por um parente, inexiste o ele- mento pessoalidade na referida relação.
Devemos entender, portanto, que dado o carácter pessoal, ao firmar um contrato de trabalho com alguém, o empregador doméstico deposita total confiança no trabalhador, cabendo a este a observância dos deveres previstos no artigo 11 do Decreto 40/2008, de 26 de Novembro e dos de urbanidade e sigilo. Por que razão afirmamos isso?
É que a referência ao domicílio do agregado familiar prevista no nr 1 do artigo 3, deve ser interpretada num sentido amplo, pois, de contrário, somente o empregado que prestasse serviços dentro da residência seria considerado doméstico.
O serviço prestado pelo doméstico não é apenas no interior da residência, mas pode ser feito externamente, desde que, evidentemente, o seja para pessoa ou família. Este serviço abran- ge não somente a específica moradia do empregador, como, também, unidades estritamente familiares que estejam distantes da residência principal da pessoa ou família que toma o serviço doméstico. É o que ocorre, por exemplo, com a casa de campo, a casa de praia, além de outras extensões residenciais. O que se considera essencial é que o espaço de trabalho se refira ao interesse pessoal ou familiar, apresentando-se aos sujeitos da relação de emprego em função da dinâmica estritamente pessoal ou familiar do empregador.
Assim, quer esteja ou não na residência do empregador, o empregado doméstico é obrigado a cumprir com as obrigações previstas no artigo citado 11. Porém, da enumeração prevista nesse artigo não figura, de modo expresso, o dever de urbanidade e de sigilo.
Na verdade, quer se faça uma interpretação extensiva ou não, temos para nós que ao trabalhador doméstico também se exige que actue com urbanidade e sigilo relativamente ao seu empregador.
A urbanidade vem do Latim urbanitate, que significa delicadeza, civilidade, cortesia e afabilidade e o sigilo vem do Latim sigillu, que quer dizer segredo.
Temos pois que entender que o empregador espera do seu empregado que o trate com urbanidade e assim proceda com seus hóspedes e visitantes.
Não é menos verdade que se impõe ao empregado doméstico o dever de guardar segredo sobre factos que digam respeito ao seu patrão e outras pessoas que integrem o seu agregado familiar.
Assim é porque, em primeiro lugar, pela fidúcia depositada pelo patrão se estabeleceu uma relação de trabalho, na expectativa de que os assuntos estritamente pessoais do empregador e seu agregado familiar não pudessem transpor o âmbito familiar, mas não necessariamente da residência do empregador (como atrás nos referimos). Qualquer desvio nesse sentido confere ao empregador o direito de fazer cessar a relação de trabalho, apesar de não vir expressamente previsto no artigo 15 do Decreto 40/2008, de 26 de Novembro.
É também pela confiança depositada que se impõe ao empregado doméstico o dever de urbanidade, mesmo porque é esse nosso entendimento da interpretação extensiva da alínea c) do no 1 do artigo 11.
Alexandre Chivale
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