domingo, 7 de janeiro de 2018

Manifestações para além do custo do pão


Manifestações para além do custo do pão


Sábado, 09 Julho 2011 00:00 Celso Ricardo

Carlos Serra,“Chaves das portas do social (notas de pesquisa e reflexão)”



“Quanto mais conhecermos as causas da violência social, mais capazes seremos de a prevenir”. Este é o posicionamento de Carlos Serra, cujas percepções sobre a vida e o quotidiano do moçambicano são espalhadas pela  blogosfera...

Com “Chaves das portas do social (notas de pesquisa e reflexão)”, Carlos Serra, um dos mais intervencionistas sociólogos, volta à ribalta para analisar a sociedade moçambicana com base numa receita de culinária científica. Serra leva-nos pelos corredores das ciências sociais, enquanto se prepara para – próximo ano – se estrear no romance. “Afinal, um poema, um romance, um conto são, rigorosamente, janelas de acesso ao social, como a sociologia, a linguística, a história ou a antropologia.” Para o professor, não há dúvidas que “a morte e pesquisa combinaram-se no sentido de me permitirem reflectir sobre o nosso país, sobre a fantástica complexidade da nossa pátria, não no sentido do fantástico à Garcia Marques, mas num certo sentido moçambicano à Émile Zola, num certo tipo de realismo enxertado numa via descritiva que creio não ter sido ainda usada”. Nesta entrevista, o cientista social revisita as manifestações de 2008 e 2010, que para ele são merecedoras de pesquisa aturada. Nesta viagem pelo “político-social”, que incidiu sobre os “cismos sociais”, passando pelos linchamentos, desafios dos nossos políticos e intelectuais, assim como pela questão da insegurança e direitos humanos, Serra esclarece que as suas abordagens não consistem em defender as “massas” acusando os governantes. “Apenas sou porta-voz das minhas hipóteses e do meu trabalho de pesquisa”. Além de actuar como professor titular na Universidade Eduardo Mondlane, no seu endereço mais famoso “Oficina de Sociologia (www.oficinadesociologia.blogspot.com)”, trata de actualidades, faz análises sociais, observa a imprensa nacional e, muita das vezes, termina algumas de suas postagens com ponto de interrogação.

Aquando das manifestações de 1 e 2 de Setembro de 2010, o povo culpou o Governo pelo custo de vida e, por sua vez, o governo atirou as culpas ao seu povo. Qual a interpretação que se pode fazer deste fenómeno?

Proponho que se considerem dois tipos de manifestações, seja em 2008, seja em 2010: as do que chama povo e as dos analistas. Umas e outras são merecedoras de pesquisa aturada. existe muito material rico, quer nos arquivos dos jornais, das rádios e das televisões, quer na memória das pessoas. O que por agora é possível fazer, na minha opinião, é lançar ideias e hipóteses sobre ambos os tipos manifestacionais. Como sabe, foi regra sustentar que as pessoas se manifestaram contra o custo de vida. Mas talvez seja possível ver mais longe do que o perímetro do custo de vida, do custo do “pão”. No  capítulo “O Grande Inquisidor”, do romance “Os Irmãos Karamozov” de Dostoievsky, o inquisidor diz: “Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.” O que quero dizer? Quero dizer que podemos sempre correr o risco de dotar a comida, o pão, a pobreza material em si, as necessidades biológicas do dia-a-dia, de um valor causal absoluto, de um valor explicativo total. Então, defendo que temos de considerar também fenómenos como a incerteza, a busca de identidade, o respeito, a decência, a liberdade, o direito à palavra, a liberdade de ser, a pretensão de fazer do futuro, do presente, etc. Os nossos jovens não são “biológicos”, são pessoas que aspiram ao bem-estar, e bem-estar é uma coisa que vai muito para além do “estômago”, porque poligonal. Que sabemos nós de como vivem os nossos compatriotas nos subúrbios? que sabemos nós dos seus sonhos, das suas tristezas, das suas ambições? Falamos deles e fazemos projectos para eles sem os contactarmos, sem os ouvirmos. Temos a coragem de dizer que neles pensamos no preciso momento em que praticamos um autismo sem fim. Dizem alguns, no cimo da sua arrogância, que os jovens das periferias são irracionais quando se manifestam. Irracionais? Não há pessoas mais racionais do que outras, há apenas pessoas com racionalidades diferentes. O nosso grande problema é darmos curso exclusivo às nossas manifestações discursivas – forma racional de uma certa irracionalidade -, injectando nos outros, os das periferias, os nossos prejuízos, a nossa moral de ocasião, a nossa caixa de ferramentas domesticadoras. Não foram os manifestantes acusados de vandalismo? Não temos a convicção, directa ou indirectamente exposta, de que as pessoas são pacíficas por natureza e que só uma mão externa as pode desequilibrar? Amamos dizer que os “vândalos” são violentos. Já realmente estudámos a violência e as suas causas para além da régua condenatória e do nosso papel de habitantes das ilhas de bem-estar? Quanto mais conhecermos as causas da violência social, mais capazes seremos de a prevenir. A violência social não se combate com cruzadas de falsa moral nem com tiradas de criminalização barata, mas com o conhecimento rigoroso e honesto das infra-estruturas sociais e mentais que a ela conduzem ou podem conduzir. De nada serve mostrar em inúmeras instâncias de debate e persuasão que a violência é desnecessária e nociva se não forem desarmadas as condições sociais que continuamente armam as mentes. O primeiro vandalismo a ser posto em causa habita nas manifestações analíticas, nos prejuízos, na desqualificação, na preponderância cognitiva que concedemos ao “centro” decisional contra a “periferia” dos deixados-por-sua-conta.

“Sou porta-voz das minhas hipóteses”

Em suas abordagens, nota-se mais a preocupação em defender as massas e não os governantes. Assume-se como porta-voz das massas?

O problema não consiste em defender as “massas” e em acusar os governantes. Evidentemente que apenas sou porta-voz das minhas hipóteses e do meu trabalho de pesquisa. O problema consiste em analisar fenómenos e em teorizá-los, em nos furtarmos ao que o sociólogo americano Howard Becker chamou “sentimentalismo”, a operação que, segundo ele, consiste em introduzir “os nossos julgamentos morais nas definições para as colocar ao abrigo das verificações empíricas”. O problema começa quando se confunde pesquisa científica com exercício de moral, com posições casuísticas. Há quem pense que quando estudamos, quando analisamos seriamente um fenómeno, estamos a justificá-lo. Infelizmente, são mais moralistas do que estudiosos. Afastar o espesso monte de ideias-feitas, de clichés e de convicções prontas-a-vestir do dia-a-dia, ir à cavidade dos fenómenos, enfrentá-los de frente, levando o imediato do “deve ser” a ceder o lugar ao construído do “é” e do “está a ser” não é tarefa fácil. “O pensamento científico contemporâneo começa por colocar entre parêntesis a realidade” – escreveu um dia o filósofo Gaston Bachelard.

Como analisa o facto de a concentração da população registar-se em Maputo?

Num livro de Hegel há uma nota de rodapé na qual critica aqueles que entendem que as pessoas afluem às cidades “porque” são atraídas por elas, como se por um magnetismo especial. É habitual pensarmos com essa ideia-feita, a ideia da atracção em si, como que por geração espontânea. Ora, a parte mais rica do nosso país é Maputo, Maputo-cidade mais do que Maputo-província. é aqui onde se concentram as maiores fontes de riqueza. A guerra terminada em 1992, por um lado, as dificuldades de sobrevivência rural, por outro, podem ser dois dos mecanismos geradores da imigração. Talvez se possa dizer que as pessoas que se fixam em Maputo querem dar realidade aos seus sonhos de bem-estar social e mental. Para eles, é em Maputo onde habita a riqueza e moram os seus símbolos. Têm razão.

Nas grandes cidades, nota-se que as residências estão gradeadas, o que nos remete a uma ideia de insegurança, contrariamente ao campo. Que leitura se pode fazer, tomando em conta que os linchamentos ocorrem grandemente na “periferia” e não nos grandes centros urbanos? Será que a população do subúrbio é perversa?

Gradear significa desconfiar e proteger. Maputo contém elevadas doses de desigualdades sociais e quando mais bem-estar se possui mais a concepção “gradeal” é forte. Moradias e condomínios – enclaves fortificados em grande desenvolvimento - estão cada vez mais protegidas por muros altos, cercas electrificadas, portões especiais de acesso, segurança electrónica, interfonia, guarda privada, etc. Sabe, no primeiro período da segregação espacial, que podemos situar entre a segunda metade do século XIX e 1975, a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, estava claramente dividida em duas partes: a parte “branca” dos colonos e a parte “negra” dos colonizados, com uma zona intermediária destinada aos colonizados amanuenses integrados (“assimilados”, dizia-se). No seu livro de 1961 intitulado “Os Condenados da Terra”, Frantz Fanon escreveu o seguinte: “Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos dois termos está a mais”. Acho que não seria má ideia pesquisar sobre se o que Fanon escreveu sobre a exclusão recíproca se mantém ou não. Por outro lado, pesquisas por mim conduzidas mostraram que existe um clima de insegurança nas periferias da cidade. Mas os linchamentos não podem ser mecanicamente associados a isso, no sentido de se dizer que porque há muitos malandros, logo linchamo-los. Os linchamentos peri-urbanos (há outros tipos de linchamentos, como os por acusação de feitiçaria e os por morte social) têm uma causalidade poligonal, como procurei mostrar em dois livros a eles dedicados. Sobre a perversidade: não, as pessoas das periferias não são perversas, são apenas pessoas que procuram viver melhor. Tal como no passado colonial, continuam críticas, combativas, bem mais críticas e combativas do que pensamos quando unicamente nos baseamos nas manifestações de protesto e em seu peso mediático. Estas pessoas estão confrontadas com níveis muito elevados de bem-estar, níveis duplamente gradeados, física e mentalmente. Confrontadas e atentas.

Voltando à questão do nível de gradeamento de casas nas cidades, o facto não revela em parte a ineficiência da polícia e a privatização da segurança?

O gradeamento físico e mental tem que ver com duas coisas básicas: com o nível de propriedade possuído e com o desemprego, ambas as coisas reenviando para um determinado modo de produção e de reprodução da vida. A eficiência ou a ineficiência da polícia tem que ver com ambas as coisas e, potencialmente, com outras mais. A privatização da segurança – fenómeno massivo hoje no nosso país, especialmente na cidade de Maputo... a segurança privada tem a dimensão quantitativa de um exército – é, por hipótese, ao mesmo tempo, uma crítica à polícia e uma sua protecção. Crítica porque faz o que a polícia não faz (multiplicar-se pelos locais de criminalidade real ou potencial), protecção porque isenta a polícia de trabalho.

Estado e afirmação da dignidade

Até que ponto a classe política e a massa intelectual tomam a sério o desafio que nos foi imposto pela nossa própria história de garantirmos a dignidade humana no país? O que fazem para se alargar os espaços de afirmação dessa dignidade?

Eduardo Mondlane e Samora Machel, os pais e fundadores do nosso país, colocaram de frente o seguinte problema: não basta obter a independência nacional, é preciso também obter a independência social. Mondlane escreveu mesmo que de nada serviria a independência nacional se, obtida, se mantivessem os padrões de exploração capitalista. Samora tentou aplicar Mondlane. Quanto mais uma dada classe política toma isso em conta, mais ela luta pela dignidade dos governados, mais ela é legítima. A legalidade da gestão estatal não é a mesma coisa que a legitimidade dessa gestão. Um Estado pode ser legalmente instituído, mas não ser considerado legítimo. Quando é que um Estado pode ser considerado legítimo nas percepções populares? Na minha hipótese, um Estado pode ser considerado legítimo nas percepções populares quando os seus gestores, em troca da lealdade que exigem aos cidadãos, são capazes de assegurar pelo menos cinco coisas:

1. Protecção incondicional da vida e da propriedade;

3. Provimento de bens sociais fundamentais: emprego, ensino, saúde, transporte, justiça e reforma condigna;

4. Liberdade de movimento e de expressão; e

5. Indemnização sempre que os seus cidadãos forem afectados por actos irresponsáveis e práticas lesivas decorrentes directa ou indirectamente da governação.

A gestão de um Estado pode ser avaliada através da composição orgânica da política. Esta depende da relação entre o capital de dominação (conjunto de procedimentos que concernem à coerção física directa) e o capital directivo (conjunto de procedimentos destinados a obter a adesão e/ou o amorfismo político dos cidadãos). Quanto mais os gestores de um Estado investirem nos aparelhos repressivos e na repressão, mais alta será a composição orgânica da política e menor, portanto, a taxa de lucro político, quer dizer, menor a legitimidade de quem domina.

A discussão sobre direitos humanos parece abstracta demais para ser de alguma utilidade no nosso contexto. Acha que no país já houve alguma manifestação séria sobre esta temática?

Tanto quanto julgo saber, nunca houve no país algo que se parecesse com uma identificação plena, o mais pleno socialmente falando, sobre direitos humanos. Creio que existem em nós fortes coeficientes de aceitação de certas coisas (direito à liberdade de expressão, por exemplo) e de recusa de outras (direito ao casamento gay, por exemplo). Certos fenómenos, certas práticas, certos tipos de educação conservadora do nosso passado plantaram em nós muitas armas mentais, muita intolerância, muito verniz superficial. Direitos humanos são, para mim, algo bem mais vasto do que o direito individual de cada um à liberdade a vários níveis. Direitos humanos são para mim direitos socialmente considerados e promovidos em permanência, tendo em vista os desfavorecidos, os privados de bem-estar. Lá onde houver quem morra de fome, quem viva na rua ao frio e à chuva, lá onde alguém é ostracizado por pensar de forma diferente, lá não há direitos humanos. Não há história onde não há questionamento social. Homens doentes não fazem história: sofrem-na. Homens tristes não vão para a frente, mas para trás. O verdadeiro sentido da história não está nos museus, mas nos actos que ainda não vieram.

Que percepção se pode ter do fosso entre ricos e pobres, numa altura em que o Governo cancelou a cesta básica sob alegação de que o país está no “bom caminho”?

Desenvolvimento é uma palavra abre-latas que é continuamente empregue aos mais variados níveis e nos mais variados quadrantes. Quanto mais o país se desenvolve num certo sentido macroeconómico, mais se procura evitar uma discussão sobre a fractura social, sobre as desigualdades sociais. mais riscos corremos se quisermos dizer que os pobres são preguiçosos - interessante uma certa tese oficial sobre a ociosidade popular -, que, se trabalharem, poderão um dia entrar na estrada da riqueza. Creio que as revoltas populares de 2008 e 2010 tornaram o nosso Estado bem mais atento aos riscos da fractura social e não é por acaso que dois fenómenos se sucedem, melhor, se apoiam, por um lado, a multiplicação de medidas destinadas minimamente a evitar o encarecimento da vida dos mais pobres e, por outro, o apelo à não realização de manifestações. Sobre “cesta básica”, preciso ainda de mais tempo para avaliar o real sentido do cancelamento. Para já, apenas tenho uma ideia preliminar, muito pobre, de que a cesta básica era uma cesta política destinada a evitar a reedição das revoltas de 2008 e 2010.

O Governo virou “campeão” em matéria de recuo nas decisões tomadas. São exemplos a inspecção obrigatória de viaturas, o registo de cartões SIM e os preços de bilhetes biométricos. Em que situação moral se encontra o executivo hoje, numa altura em que demonstra falta de coerência nas decisões tomadas?

Sem dúvida que desde 2008, pelo menos desde 2008, várias medidas têm sido tomadas com uma velocidade decisória acima do normal; digamos que a uma velocidade frenética, muito política, muito guebuziana, quando comparada com a velocidade chissaniana. Acontece que a velocidade reactiva popular é diferente, é bem mais “antropológica”. Mas tudo isso precisa de ser pesquisado e analisado. Pequeno detalhe imagético: Guebuza é Samora abraçado a Chissano. Do primeiro recebe o impulso, do segundo os limites; Samora era o pai fundador do socialismo moçambicano, Guebuza é o continuador de Chissano no reforço do capitalismo de Estado que colhe em Samora a tinta que sobrou da casa socialista; Guebuza é uma bissectriz, é uma antífrase, é, para fazer uso da física quântica, uma “desordem” samoriana regida pela “ordem” chissaniana.

Historiador que é, de certa forma exilado na sociologia, como é que analisa o silêncio à volta da revisão da constituição, olhando para a Frelimo que trouxe a revolução; a Frelimo que trouxe o marxismo; a Frelimo que trouxe o PRE e a Constituição multipartidária de 90?

A Constituição será certamente alterada, mas hoje ainda não sabemos o que vai ser alterado. Dispondo do voto maioritário na Assembleia da República, gerindo o Estado, a Frelimo tudo fará para que o que tiver de ser alterado esteja em consonância com o seu papel histórico de guia. Por outras palavras, abdicando da leitura ética: a Constituição é um recurso de poder e a Frelimo tudo fará para manter o seu papel de guia, de partido gestor do Estado, fechando as portas ao assédio político contrário.

Sob que prisma se pode olhar para o papel da nossa oposição e da sociedade civil na discussão sobre a alteração da constituição?

Creio que se nota apreensão ao nível de certos círculos produtores de opinião pública. Mas oposição e sociedade civil são termos muito genéricos, a todo-o-terreno. Tenho para mim que existem quatro tipos de partidos no país: o partido dominante no poder, os partidos da oposição estrito senso, os partidos cavalos de tróia e os partidos gelatinosos-hibernadores. Como vê, não é fácil ter uma ideia unitária. Por outro lado, são múltiplas as instâncias das organizações da chamada sociedade civil, umas reais, outras fictícias, muitas confinadas aos fundos e ao está-tudo-bem, etc.

Severino Ngoenha diz que ser intelectual não é ser enciclopédia ambulante. Será que os intelectuais estão a fazer o seu papel?

O Professor Severino Ngoenha é um intelectual que tem para mim uma grande virtude: a de conjugar a reflexão científica e filosófica com o engajamento público, fugindo em permanência ao conforto académico, às bizantinices, aos sofismas enganadores e às neutralidades politicamente úteis. Em todos os seus livros, mas também nas suas mais recentes intervenções, Severino é um sólido pensador engajado, que, afinal, em meu entender, recupera e amplia a questão matricial de Mondlane e Samora: como obter a independência social. Como escreveu um dia o escritor congolês Henri Lopès, “nenhuma sociedade progrediu sem fazer a sua própria crítica, sem que os seus criadores e pensadores se metessem contra a corrente dos bem-pensantes”.

Precisamos de mais Severinos, de pensadores fortes de suco gástrico capazes de, pela crítica frontal, pela evacuação do seguidismo oportunista, ajudarem a criar problemas analíticos para que melhor os problemas físicos sejam analisados e eventualmente resolvidos. O falecido sociólogo Pierre Bourdieu tem duas frases que muito amo reproduzir: “politizar as coisas cientificando-as” e “pensar a política sem pensar politicamente”.

Os próximos voos de Carlos Serra

Para breve sai mais um livro seu, no âmbito das suas reflexões científicas. Pode dar-nos alguns detalhes sobre esta obra?

“Chaves das portas do social (notas de pesquisa e reflexão)” – esse é o título. Existem múltiplas maneiras de analisar a sociedade, não há uma maneira única, uma maneira baseada numa receita de culinária científica. E ainda bem que assim é. Eu irei apresentar as minhas, baseadas em anos de pesquisa, reflexão e pesquisa. Quero acreditar que o livro poderá ser especialmente útil aos estudantes de ciências sociais, não por lhes apresentar as minhas ideias, mas por acreditar que eles podem criar ideias bem melhores.

E por falar em novas obras, sabemos que está em vista a sua estreia no campo do romance, com uma obra que ficará pronta nos primeiros meses do próximo ano. O que o leva a explorar esse novo campo literário?

Sim, esforço-me por sair dos carris das ciências sociais e entrar nos carris do romance. Sabe, passei alguns anos da minha vida a estudar documentos antigos, borolentos, amarelecidos. Sempre me interroguei sobre a morte daqueles que os escreveram, sobre a maneira como escreveram, sobre o que assinaram, etc. Sempre tive a ânsia de vencer a morte através das palavras. Esse é um aspecto. O outro é que eu tenho tido muitas experiências de pesquisa e penso que elas podem ser úteis para eu criar um mundo embutido naquele que é o meu habitual trabalho. Afinal, um poema, um romance, um conto são, rigorosamente, janelas de acesso ao social, como a sociologia, a linguística, a história ou a antropologia. Então, morte e pesquisa combinaram-se no sentido de me permitirem reflectir sobre o nosso país, sobre a fantástica complexidade da nossa pátria, não no sentido do fantástico à Garcia Marques, mas num certo sentido moçambicano à Émile Zola, num certo tipo de realismo enxertado numa via descritiva que creio não ter sido ainda usada. Em tempo devido, procurarei mostrar tudo isso, próximo ano.

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