Manifestações para além do custo do pão
Sábado, 09 Julho 2011 00:00 Celso Ricardo
Carlos Serra,“Chaves das portas do social
(notas de pesquisa e reflexão)”
“Quanto mais conhecermos as causas da violência social,
mais capazes seremos de a prevenir”. Este é o posicionamento de Carlos Serra,
cujas percepções sobre a vida e o quotidiano do moçambicano são espalhadas
pela blogosfera...
Com “Chaves das portas do social (notas de pesquisa e
reflexão)”, Carlos Serra, um dos mais intervencionistas sociólogos, volta à
ribalta para analisar a sociedade moçambicana com base numa receita de
culinária científica. Serra leva-nos pelos corredores das ciências sociais,
enquanto se prepara para – próximo ano – se estrear no romance. “Afinal, um
poema, um romance, um conto são, rigorosamente, janelas de acesso ao social,
como a sociologia, a linguística, a história ou a antropologia.” Para o
professor, não há dúvidas que “a morte e pesquisa combinaram-se no sentido de
me permitirem reflectir sobre o nosso país, sobre a fantástica complexidade da
nossa pátria, não no sentido do fantástico à Garcia Marques, mas num certo
sentido moçambicano à Émile Zola, num certo tipo de realismo enxertado numa via
descritiva que creio não ter sido ainda usada”. Nesta entrevista, o cientista
social revisita as manifestações de 2008 e 2010, que para ele são merecedoras
de pesquisa aturada. Nesta viagem pelo “político-social”, que incidiu sobre os
“cismos sociais”, passando pelos linchamentos, desafios dos nossos políticos e
intelectuais, assim como pela questão da insegurança e direitos humanos, Serra
esclarece que as suas abordagens não consistem em defender as “massas” acusando
os governantes. “Apenas sou porta-voz das minhas hipóteses e do meu trabalho de
pesquisa”. Além de actuar como professor titular na Universidade Eduardo
Mondlane, no seu endereço mais famoso “Oficina de Sociologia
(www.oficinadesociologia.blogspot.com)”, trata de actualidades, faz análises
sociais, observa a imprensa nacional e, muita das vezes, termina algumas de suas
postagens com ponto de interrogação.
Aquando das manifestações de 1 e 2 de Setembro de 2010, o
povo culpou o Governo pelo custo de vida e, por sua vez, o governo atirou as
culpas ao seu povo. Qual a interpretação que se pode fazer deste fenómeno?
Proponho que se considerem dois tipos de manifestações,
seja em 2008, seja em 2010: as do que chama povo e as dos analistas. Umas e
outras são merecedoras de pesquisa aturada. existe muito material rico, quer
nos arquivos dos jornais, das rádios e das televisões, quer na memória das
pessoas. O que por agora é possível fazer, na minha opinião, é lançar ideias e
hipóteses sobre ambos os tipos manifestacionais. Como sabe, foi regra sustentar
que as pessoas se manifestaram contra o custo de vida. Mas talvez seja possível
ver mais longe do que o perímetro do custo de vida, do custo do “pão”. No
capítulo “O Grande Inquisidor”, do romance “Os Irmãos Karamozov” de
Dostoievsky, o inquisidor diz: “Vês estas pedras neste árido deserto?
Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os teus passos, como um rebanho
dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a tua mão se retire e que o pão se
lhe acabe.” O que quero dizer? Quero dizer que podemos sempre correr o risco de
dotar a comida, o pão, a pobreza material em si, as necessidades biológicas do
dia-a-dia, de um valor causal absoluto, de um valor explicativo total. Então,
defendo que temos de considerar também fenómenos como a incerteza, a busca de
identidade, o respeito, a decência, a liberdade, o direito à palavra, a liberdade
de ser, a pretensão de fazer do futuro, do presente, etc. Os nossos jovens não
são “biológicos”, são pessoas que aspiram ao bem-estar, e bem-estar é uma coisa
que vai muito para além do “estômago”, porque poligonal. Que sabemos nós de
como vivem os nossos compatriotas nos subúrbios? que sabemos nós dos seus
sonhos, das suas tristezas, das suas ambições? Falamos deles e fazemos
projectos para eles sem os contactarmos, sem os ouvirmos. Temos a coragem de
dizer que neles pensamos no preciso momento em que praticamos um autismo sem
fim. Dizem alguns, no cimo da sua arrogância, que os jovens das periferias são
irracionais quando se manifestam. Irracionais? Não há pessoas mais racionais do
que outras, há apenas pessoas com racionalidades diferentes. O nosso grande
problema é darmos curso exclusivo às nossas manifestações discursivas – forma
racional de uma certa irracionalidade -, injectando nos outros, os das
periferias, os nossos prejuízos, a nossa moral de ocasião, a nossa caixa de
ferramentas domesticadoras. Não foram os manifestantes acusados de vandalismo?
Não temos a convicção, directa ou indirectamente exposta, de que as pessoas são
pacíficas por natureza e que só uma mão externa as pode desequilibrar? Amamos
dizer que os “vândalos” são violentos. Já realmente estudámos a violência e as
suas causas para além da régua condenatória e do nosso papel de habitantes das
ilhas de bem-estar? Quanto mais conhecermos as causas da violência social, mais
capazes seremos de a prevenir. A violência social não se combate com cruzadas
de falsa moral nem com tiradas de criminalização barata, mas com o conhecimento
rigoroso e honesto das infra-estruturas sociais e mentais que a ela conduzem ou
podem conduzir. De nada serve mostrar em inúmeras instâncias de debate e
persuasão que a violência é desnecessária e nociva se não forem desarmadas as
condições sociais que continuamente armam as mentes. O primeiro vandalismo a
ser posto em causa habita nas manifestações analíticas, nos prejuízos, na
desqualificação, na preponderância cognitiva que concedemos ao “centro”
decisional contra a “periferia” dos deixados-por-sua-conta.
“Sou porta-voz das minhas hipóteses”
Em suas abordagens, nota-se mais a preocupação em
defender as massas e não os governantes. Assume-se como porta-voz das massas?
O problema não consiste em defender as “massas” e em
acusar os governantes. Evidentemente que apenas sou porta-voz das minhas
hipóteses e do meu trabalho de pesquisa. O problema consiste em analisar
fenómenos e em teorizá-los, em nos furtarmos ao que o sociólogo americano
Howard Becker chamou “sentimentalismo”, a operação que, segundo ele, consiste
em introduzir “os nossos julgamentos morais nas definições para as colocar ao
abrigo das verificações empíricas”. O problema começa quando se confunde pesquisa
científica com exercício de moral, com posições casuísticas. Há quem pense que
quando estudamos, quando analisamos seriamente um fenómeno, estamos a
justificá-lo. Infelizmente, são mais moralistas do que estudiosos. Afastar o
espesso monte de ideias-feitas, de clichés e de convicções prontas-a-vestir do
dia-a-dia, ir à cavidade dos fenómenos, enfrentá-los de frente, levando o
imediato do “deve ser” a ceder o lugar ao construído do “é” e do “está a ser”
não é tarefa fácil. “O pensamento científico contemporâneo começa por colocar
entre parêntesis a realidade” – escreveu um dia o filósofo Gaston Bachelard.
Como analisa o facto de a concentração da população
registar-se em Maputo?
Num livro de Hegel há uma nota de rodapé na qual critica
aqueles que entendem que as pessoas afluem às cidades “porque” são atraídas por
elas, como se por um magnetismo especial. É habitual pensarmos com essa
ideia-feita, a ideia da atracção em si, como que por geração espontânea. Ora, a
parte mais rica do nosso país é Maputo, Maputo-cidade mais do que
Maputo-província. é aqui onde se concentram as maiores fontes de riqueza. A
guerra terminada em 1992, por um lado, as dificuldades de sobrevivência rural,
por outro, podem ser dois dos mecanismos geradores da imigração. Talvez se possa
dizer que as pessoas que se fixam em Maputo querem dar realidade aos seus
sonhos de bem-estar social e mental. Para eles, é em Maputo onde habita a
riqueza e moram os seus símbolos. Têm razão.
Nas grandes cidades, nota-se que as residências estão
gradeadas, o que nos remete a uma ideia de insegurança, contrariamente ao
campo. Que leitura se pode fazer, tomando em conta que os linchamentos ocorrem
grandemente na “periferia” e não nos grandes centros urbanos? Será que a
população do subúrbio é perversa?
Gradear significa desconfiar e proteger. Maputo contém
elevadas doses de desigualdades sociais e quando mais bem-estar se possui mais
a concepção “gradeal” é forte. Moradias e condomínios – enclaves fortificados
em grande desenvolvimento - estão cada vez mais protegidas por muros altos,
cercas electrificadas, portões especiais de acesso, segurança electrónica,
interfonia, guarda privada, etc. Sabe, no primeiro período da segregação
espacial, que podemos situar entre a segunda metade do século XIX e 1975, a cidade
de Lourenço Marques, hoje Maputo, estava claramente dividida em duas partes: a
parte “branca” dos colonos e a parte “negra” dos colonizados, com uma zona
intermediária destinada aos colonizados amanuenses integrados (“assimilados”,
dizia-se). No seu livro de 1961 intitulado “Os Condenados da Terra”, Frantz
Fanon escreveu o seguinte: “Regidas por uma lógica puramente aristotélica,
obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um
dos dois termos está a mais”. Acho que não seria má ideia pesquisar sobre se o
que Fanon escreveu sobre a exclusão recíproca se mantém ou não. Por outro lado,
pesquisas por mim conduzidas mostraram que existe um clima de insegurança nas
periferias da cidade. Mas os linchamentos não podem ser mecanicamente
associados a isso, no sentido de se dizer que porque há muitos malandros, logo
linchamo-los. Os linchamentos peri-urbanos (há outros tipos de linchamentos,
como os por acusação de feitiçaria e os por morte social) têm uma causalidade
poligonal, como procurei mostrar em dois livros a eles dedicados. Sobre a
perversidade: não, as pessoas das periferias não são perversas, são apenas
pessoas que procuram viver melhor. Tal como no passado colonial, continuam
críticas, combativas, bem mais críticas e combativas do que pensamos quando
unicamente nos baseamos nas manifestações de protesto e em seu peso mediático.
Estas pessoas estão confrontadas com níveis muito elevados de bem-estar, níveis
duplamente gradeados, física e mentalmente. Confrontadas e atentas.
Voltando à questão do nível de gradeamento de casas nas
cidades, o facto não revela em parte a ineficiência da polícia e a privatização
da segurança?
O gradeamento físico e mental tem que ver com duas coisas
básicas: com o nível de propriedade possuído e com o desemprego, ambas as
coisas reenviando para um determinado modo de produção e de reprodução da vida.
A eficiência ou a ineficiência da polícia tem que ver com ambas as coisas e,
potencialmente, com outras mais. A privatização da segurança – fenómeno massivo
hoje no nosso país, especialmente na cidade de Maputo... a segurança privada
tem a dimensão quantitativa de um exército – é, por hipótese, ao mesmo tempo,
uma crítica à polícia e uma sua protecção. Crítica porque faz o que a polícia
não faz (multiplicar-se pelos locais de criminalidade real ou potencial),
protecção porque isenta a polícia de trabalho.
Estado e afirmação da dignidade
Até que ponto a classe política e a massa intelectual
tomam a sério o desafio que nos foi imposto pela nossa própria história de
garantirmos a dignidade humana no país? O que fazem para se alargar os espaços
de afirmação dessa dignidade?
Eduardo Mondlane e Samora Machel, os pais e fundadores do
nosso país, colocaram de frente o seguinte problema: não basta obter a
independência nacional, é preciso também obter a independência social. Mondlane
escreveu mesmo que de nada serviria a independência nacional se, obtida, se
mantivessem os padrões de exploração capitalista. Samora tentou aplicar
Mondlane. Quanto mais uma dada classe política toma isso em conta, mais ela
luta pela dignidade dos governados, mais ela é legítima. A legalidade da gestão
estatal não é a mesma coisa que a legitimidade dessa gestão. Um Estado pode ser
legalmente instituído, mas não ser considerado legítimo. Quando é que um Estado
pode ser considerado legítimo nas percepções populares? Na minha hipótese, um
Estado pode ser considerado legítimo nas percepções populares quando os seus
gestores, em troca da lealdade que exigem aos cidadãos, são capazes de assegurar
pelo menos cinco coisas:
1. Protecção incondicional da vida e da propriedade;
3. Provimento de bens sociais fundamentais: emprego,
ensino, saúde, transporte, justiça e reforma condigna;
4. Liberdade de movimento e de expressão; e
5. Indemnização sempre que os seus cidadãos forem
afectados por actos irresponsáveis e práticas lesivas decorrentes directa ou
indirectamente da governação.
A gestão de um Estado pode ser avaliada através da
composição orgânica da política. Esta depende da relação entre o capital de
dominação (conjunto de procedimentos que concernem à coerção física directa) e
o capital directivo (conjunto de procedimentos destinados a obter a adesão e/ou
o amorfismo político dos cidadãos). Quanto mais os gestores de um Estado
investirem nos aparelhos repressivos e na repressão, mais alta será a
composição orgânica da política e menor, portanto, a taxa de lucro político,
quer dizer, menor a legitimidade de quem domina.
A discussão sobre direitos humanos parece abstracta
demais para ser de alguma utilidade no nosso contexto. Acha que no país já
houve alguma manifestação séria sobre esta temática?
Tanto quanto julgo saber, nunca houve no país algo que se
parecesse com uma identificação plena, o mais pleno socialmente falando, sobre
direitos humanos. Creio que existem em nós fortes coeficientes de aceitação de
certas coisas (direito à liberdade de expressão, por exemplo) e de recusa de
outras (direito ao casamento gay, por exemplo). Certos fenómenos, certas
práticas, certos tipos de educação conservadora do nosso passado plantaram em
nós muitas armas mentais, muita intolerância, muito verniz superficial.
Direitos humanos são, para mim, algo bem mais vasto do que o direito individual
de cada um à liberdade a vários níveis. Direitos humanos são para mim direitos
socialmente considerados e promovidos em permanência, tendo em vista os
desfavorecidos, os privados de bem-estar. Lá onde houver quem morra de fome,
quem viva na rua ao frio e à chuva, lá onde alguém é ostracizado por pensar de
forma diferente, lá não há direitos humanos. Não há história onde não há
questionamento social. Homens doentes não fazem história: sofrem-na. Homens
tristes não vão para a frente, mas para trás. O verdadeiro sentido da história
não está nos museus, mas nos actos que ainda não vieram.
Que percepção se pode ter do fosso entre ricos e pobres,
numa altura em que o Governo cancelou a cesta básica sob alegação de que o país
está no “bom caminho”?
Desenvolvimento é uma palavra abre-latas que é
continuamente empregue aos mais variados níveis e nos mais variados quadrantes.
Quanto mais o país se desenvolve num certo sentido macroeconómico, mais se
procura evitar uma discussão sobre a fractura social, sobre as desigualdades
sociais. mais riscos corremos se quisermos dizer que os pobres são preguiçosos
- interessante uma certa tese oficial sobre a ociosidade popular -, que, se
trabalharem, poderão um dia entrar na estrada da riqueza. Creio que as revoltas
populares de 2008 e 2010 tornaram o nosso Estado bem mais atento aos riscos da
fractura social e não é por acaso que dois fenómenos se sucedem, melhor, se
apoiam, por um lado, a multiplicação de medidas destinadas minimamente a evitar
o encarecimento da vida dos mais pobres e, por outro, o apelo à não realização
de manifestações. Sobre “cesta básica”, preciso ainda de mais tempo para
avaliar o real sentido do cancelamento. Para já, apenas tenho uma ideia
preliminar, muito pobre, de que a cesta básica era uma cesta política destinada
a evitar a reedição das revoltas de 2008 e 2010.
O Governo virou “campeão” em matéria de recuo nas
decisões tomadas. São exemplos a inspecção obrigatória de viaturas, o registo
de cartões SIM e os preços de bilhetes biométricos. Em que situação moral se
encontra o executivo hoje, numa altura em que demonstra falta de coerência nas
decisões tomadas?
Sem dúvida que desde 2008, pelo menos desde 2008, várias
medidas têm sido tomadas com uma velocidade decisória acima do normal; digamos
que a uma velocidade frenética, muito política, muito guebuziana, quando
comparada com a velocidade chissaniana. Acontece que a velocidade reactiva
popular é diferente, é bem mais “antropológica”. Mas tudo isso precisa de ser
pesquisado e analisado. Pequeno detalhe imagético: Guebuza é Samora abraçado a
Chissano. Do primeiro recebe o impulso, do segundo os limites; Samora era o pai
fundador do socialismo moçambicano, Guebuza é o continuador de Chissano no
reforço do capitalismo de Estado que colhe em Samora a tinta que sobrou da casa
socialista; Guebuza é uma bissectriz, é uma antífrase, é, para fazer uso da
física quântica, uma “desordem” samoriana regida pela “ordem” chissaniana.
Historiador que é, de certa forma exilado na sociologia,
como é que analisa o silêncio à volta da revisão da constituição, olhando para
a Frelimo que trouxe a revolução; a Frelimo que trouxe o marxismo; a Frelimo
que trouxe o PRE e a Constituição multipartidária de 90?
A Constituição será certamente alterada, mas hoje ainda
não sabemos o que vai ser alterado. Dispondo do voto maioritário na Assembleia
da República, gerindo o Estado, a Frelimo tudo fará para que o que tiver de ser
alterado esteja em consonância com o seu papel histórico de guia. Por outras
palavras, abdicando da leitura ética: a Constituição é um recurso de poder e a
Frelimo tudo fará para manter o seu papel de guia, de partido gestor do Estado,
fechando as portas ao assédio político contrário.
Sob que prisma se pode olhar para o papel da nossa
oposição e da sociedade civil na discussão sobre a alteração da constituição?
Creio que se nota apreensão ao nível de certos círculos
produtores de opinião pública. Mas oposição e sociedade civil são termos muito
genéricos, a todo-o-terreno. Tenho para mim que existem quatro tipos de
partidos no país: o partido dominante no poder, os partidos da oposição estrito
senso, os partidos cavalos de tróia e os partidos gelatinosos-hibernadores.
Como vê, não é fácil ter uma ideia unitária. Por outro lado, são múltiplas as
instâncias das organizações da chamada sociedade civil, umas reais, outras
fictícias, muitas confinadas aos fundos e ao está-tudo-bem, etc.
Severino Ngoenha diz que ser intelectual não é ser
enciclopédia ambulante. Será que os intelectuais estão a fazer o seu papel?
O Professor Severino Ngoenha é um intelectual que tem
para mim uma grande virtude: a de conjugar a reflexão científica e filosófica
com o engajamento público, fugindo em permanência ao conforto académico, às
bizantinices, aos sofismas enganadores e às neutralidades politicamente úteis.
Em todos os seus livros, mas também nas suas mais recentes intervenções,
Severino é um sólido pensador engajado, que, afinal, em meu entender, recupera
e amplia a questão matricial de Mondlane e Samora: como obter a independência
social. Como escreveu um dia o escritor congolês Henri Lopès, “nenhuma sociedade
progrediu sem fazer a sua própria crítica, sem que os seus criadores e
pensadores se metessem contra a corrente dos bem-pensantes”.
Precisamos de mais Severinos, de pensadores fortes de
suco gástrico capazes de, pela crítica frontal, pela evacuação do seguidismo
oportunista, ajudarem a criar problemas analíticos para que melhor os problemas
físicos sejam analisados e eventualmente resolvidos. O falecido sociólogo
Pierre Bourdieu tem duas frases que muito amo reproduzir: “politizar as coisas
cientificando-as” e “pensar a política sem pensar politicamente”.
Os próximos voos de Carlos Serra
Para breve sai mais um livro seu, no âmbito das suas
reflexões científicas. Pode dar-nos alguns detalhes sobre esta obra?
“Chaves das portas do social (notas de pesquisa e reflexão)”
– esse é o título. Existem múltiplas maneiras de analisar a sociedade, não há
uma maneira única, uma maneira baseada numa receita de culinária científica. E
ainda bem que assim é. Eu irei apresentar as minhas, baseadas em anos de
pesquisa, reflexão e pesquisa. Quero acreditar que o livro poderá ser
especialmente útil aos estudantes de ciências sociais, não por lhes apresentar
as minhas ideias, mas por acreditar que eles podem criar ideias bem melhores.
E por falar em novas obras, sabemos que está em vista a
sua estreia no campo do romance, com uma obra que ficará pronta nos primeiros
meses do próximo ano. O que o leva a explorar esse novo campo literário?
Sim, esforço-me por sair dos carris das ciências sociais
e entrar nos carris do romance. Sabe, passei alguns anos da minha vida a
estudar documentos antigos, borolentos, amarelecidos. Sempre me interroguei
sobre a morte daqueles que os escreveram, sobre a maneira como escreveram,
sobre o que assinaram, etc. Sempre tive a ânsia de vencer a morte através das
palavras. Esse é um aspecto. O outro é que eu tenho tido muitas experiências de
pesquisa e penso que elas podem ser úteis para eu criar um mundo embutido
naquele que é o meu habitual trabalho. Afinal, um poema, um romance, um conto
são, rigorosamente, janelas de acesso ao social, como a sociologia, a
linguística, a história ou a antropologia. Então, morte e pesquisa
combinaram-se no sentido de me permitirem reflectir sobre o nosso país, sobre a
fantástica complexidade da nossa pátria, não no sentido do fantástico à Garcia
Marques, mas num certo sentido moçambicano à Émile Zola, num certo tipo de
realismo enxertado numa via descritiva que creio não ter sido ainda usada. Em
tempo devido, procurarei mostrar tudo isso, próximo ano.
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