Alguns canais televisivos e jornais internacionais publicados nas 48 horas que precederam as Eleições Gerais de 15 de Outubro, em Moçambique, manifestavam expectativas que estas eleições fossem as “primeiras” justas e transparentes a serem realizadas no continente africano, desde a introdução do processo de democratização, no início da década Noventa.
As expectativas expressas pela opinião pública internacional encontravam a sua ressonância nas expectativas que nutria a maior parte dos cidadãos moçambicanos. O fundamento destas expectativas residia na existência de premissas suficientes que permitiam deduzir que era chegada a hora em que Moçambique – depois de alguns adiamentos – iria, finalmente, atuar uma efetiva transição democrática. De facto, as eleições de 15 de Outubro iriam ser reguladas por uma nova Lei Eleitoral que – para dissipar a generalizada falta de confiança dos partidos da oposição e dos cidadãos em geral nos órgãos de gestão eleitoral – deliberava uma proporcional associação à Comissão Nacional das Eleições (CNE) e ao Secretariado Técnico de Administração Estatal (STAE) de membros dos partidos políticos com representação parlamentar. Além desta disposição, tinha sido também previsto que os processos de votação e contagem dos votos fossem cobertos pelo Observatório Eleitoral nacional e internacional, e pelos meios de comunicação social. O Governo e o maior partido da oposição, a Renamo, acabavam de assinar um Acordo Geral de Paz (APG-2) – no dia 5 de Setembro – que punha fim a instabilidade político-militar que dominou o cenário do País nos últimos dois anos. O AGP-2 incluía também um protocolo muito detalhado sobre as questões militares e assegurava a dis-partidarização das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), da Força da Intervenção Rápida (FIR) e da Polícia da República de Moçambique (PRM). Os órgãos da CNE e do STAE pareciam estar decididos a lavar a imagem daquelas instituições e incrementar a credibilidade do processo eleitoral. E, por fim, tinha sido ativado um instrumento jurídico dotado de poderes para dirimir, tempestivamente e em todos os níveis, as questões eleitorais.
Chegada a hora da verdade, infelizmente, o momento crucial que se esperava que consagraria Moçambique e as instituições políticas moçambicanas pioneiros da desejada efetiva democratização do continente africano, provou ser uma grande e pomposa celebração da nossa ignorância (isto é, ignorância das regras básicas que caracterizam um sistema político de tipo democrático); provou ser uma pomposa celebração, à vista de todo o mundo, da nossa prepotência e autoritarismo; uma celebração da nossa eficaz capacidade de intimidar e de ser intimidados; uma celebração da nossa infalível capacidade de manipular e de ser manipulados; uma celebração da nossa alta capacidade de organizar e infligir violência com fins políticos; uma celebração da nossa capacidade de neutralizar as consciências dos subalternos e de transformá-los em executores de atos macabros e aberrantes; uma celebração pomposa dos condicionamentos que impedem o País e cada um dos cidadãos de tirar o melhor proveito do que existe nos sistemas políticos de tipo democrático.
Por conseguinte, existem algumas indispensáveis pré-condições que os atores políticos de uma determinada sociedade, nos seus vários níveis e posições, devem satisfazer antes que seja possível tirar o melhor proveito do que o modelo democrático pode oferecer a uma dada sociedade. Não é possível, por exemplo, o crescimento da semente da democracia numa sociedade fundada na intimidação e na chantagem. Para que as populações das aldeias comunais e das povoações rurais possam dar o próprio contributo no progresso da democracia é necessário que estejam livres da intimidação e da pressão política exercitada sobre eles pelos secretários dos bairros e pelos líderes comunitários; como é também necessário que os funcionários públicos estejam livres da chantagem originada pela identificação do Estado com o partido no poder. Não é possível lançar a semente da democratização e esperar que ela se desenvolva numa sociedade em que o poder político e a administração pública são fundamentalmente percebidos como meios seguros para tutelar os próprios interesses económicos, em detrimento do interesse colectivo; como não é possível imaginar como é que a comunidade internacional poderá servir de ajuda na edificação e promoção de instituições e regras democráticas enquanto a sua política externa na África continuar ainda, pesadamente, determinada pelos próprios interesses de natureza económico e, a sua estratégia continuar a ser aquela de proteger qualquer tipo de governo que esteja a tutelar os interesses económicos das grandes potências mundiais.
Uma análise sincrónica da pomposa vergonha que foi exibida no dia 15 de Outubro e do tipo de regime que, de facto, vinha governando o País, sobretudo nos últimos cinco anos, e das dinâmicas que predominaram o cenário político-institucional nos meses/anos que precederam o ato eleitoral, induzir-nos-ia a suspeitar que a forte vontade de reformar as instituições políticas do País tenha cegado e impedido a opinião pública de constatar, objectivamente, que não estavam ainda criadas as pré-condições necessárias para a realização de eleições justas e transparentes.
De facto, além da nebulosidade que marcou o processo da apresentação, da parte da Sociedade Civil e, depois, a eleição pela Assembleia da República (AR), do presidente da CNE – Abdul Carimo -, também a “epopeia” do candidato presidencial do partido “vencedor” das eleições de 15 de Outubro, Filipe Jacinto Nyusi, foi sintomática: o homem cuja apresentação, da parte da Comissão Política (CP) do partido, e a sua subsequente nomeação pelo Comité central (CC), tinham provocado feridas profundas e acusações recíprocas de traição entre os “camaradas”, em menos de seis meses tinha conseguido sanar as feridas e operar uma convergência das agendas políticas que até então pareciam irreconciliáveis. Uma leitura post-factum (posterior aos acontecimentos) induz a suspeitar que o preço da reconciliação dos “camaradas” tenha sido pago pelo sacrifício do ideal de Estado de direito. As correntes contrapostas das classes dirigentes do partido encontraram um modo – sacrificando todas as exigências da ética política - para estabelecer compensações adequadas entre quem saiu a perder e quem saiu a ganhar na questão da luta pela nomeação do sucessor de Armando Guebuza e, para garantir que tudo dê certo foi, com certeza, necessário ativar uma complexa máquina de fraude designada a conduzir todo o processo eleitoral para um fim preestabelecido. Esta hipótese ajuda a explicar porquê é que figuras como Luísa Diogo, Graça Machel e Joaquim Chissano apareceram, no período da campanha eleitoral, a “puxar o saco” de Nyusi que tinham, publicamente, desqualificado e impugnado o processo em si da sua apresentação, da parte da CP.
O mesmo poder-se-ia também dizer do exibicionismo do poder económico esmagador que dominou a campanha do partido Frelimo. O mais provável é que a maior parte dos financiamentos daquela robusta campanha tenha vindo da sempre denunciada venda das isenções, do contrabando da madeira e das angariações de fundos pouco transparentes, como foi o caso daquela que culminou com o ilegal e ilícito Mercedes Benz oferecido ao presidente Armando Guebusa, pela Confederação das Associações Económicas de Moçambique (CTA). Uma campanha que teve este tipo de financiamento não podia nunca permitir que o resultado das eleições fosse abandonado ao acaso, ou à vontade expressa pelos eleitores: a garantia da vitória devia, não só compensar a todos aqueles que investiram com os próprios recursos económicos, como também devia encobrir os ilícitos e os crimes cometidos contra o património público.
Portanto:
- a violência exercitada pela PRM e pela FIR nos círculos eleitorais de Zambézia, Nampula, Sofala e Tete;
- os vários episódios de tentativas de enchimento de urnas;
- o aparecimento de inteiros cadernos com votos já assinados a favor do candidato da Frelimo;
- a existência de urnas e os respectivos boletins de voto na posse de pessoas estranhas ao STAE;
- as detenções ou assassinatos dos denunciadores das tentativas de materialização de agendas de fraude;
- os cortes programados da corrente eléctrica, precisamente no intervalo entre o encerramento das urnas e o início da contagem de votos;
- o atraso propositado de conceição de credenciais aos observadores eleitorais da Organização da Sociedade Civil (OSC), da parte dos órgãos competentes;
- o atraso propositado da abertura das mesas ou assembleias de voto;
- as inexplicáveis ausências dos cadernos eleitorais nas correspondentes assembleias ou mesas de voto;
- a existência de mesas de voto cujos editais e atas aparecem diferentes;
- o aparecimento de dezenas a mais de mesas de voto durante a contagem;
- o aparecimento de números de votos superiores ao número dos potenciais eleitores de uma determinada assembleia de voto ou círculo eleitoral;
- as tentativas de substituir editais autênticos pelos falsificados;
todas estas e muitas outras irregularidades que caracterizaram as Eleições Gerais de 15 de Outubro, encontram a sua lógica interna se analisadas a partir de uma visão conjunta do modo como Moçambique foi governado, sobretudo nos últimos cinco anos, e nas atitudes e dinâmicas internas que caracterizaram os partidos políticos, durantes os meses/anos que precederam o ato eleitoral de 15 de Outubro.
A retórica dos observadores eleitorais da comunidade internacional, segundo a qual os incidentes acima mencionados não afetaram o resultado final das eleições pode, até certo ponto, ser sustentável se se pensa que o partido no poder determina a orientação do voto dos funcionários públicos e dos homens de negócio através do instrumento da partidarização do sector público e do controlo das oportunidades económicas nacionais e, através dos instrumentos da intimidação e politização exercitadas pelos secretários dos bairros e pelos líderes comunitários determina a orientação de voto de muitos potenciais eleitores dos bairros da periferia e das regiões rurais. Todavia, o facto que a direção do partido no poder tenha recorrido às ações vergonhosas que mancharam a inteira nação, mostra que tais dirigentes aperceberam-se que os instrumentos de controlo acima indicados estavam escapando-lhes das mãos. E por tanto, não é evidente que as irregularidades acima indicadas não tenham influenciado o resultado final.
Uma nota particular que sugere uma reflecção ulterior em torno da vergonha do dia 15 de Outubro é o facto que todas as irregularidades e incidentes tenham sido cometidos em favor de um único partido – a Frente de Libertação de Moçambique – e, nenhum dos incidentes ou irregularidades tenha causado prejuízo ao partido no poder. Isto, sim, é preocupante! É uma indicação clara que não estamos diante de um caso de uma sociedade que, ou por causa do seu passado histórico, ou pela razão do nível da sua alfabetização, precisa ainda de evoluir-se para poder observar “rigorosamente” as exigências do modelo democrático. Estamos, sim, diante de um cenário caracterizado pela existência de uma específica elite política que está progressivamente substituindo os princípios que fundam o Estado de direito, pela implementação de um autoritarismo, de facto.
A vergonha que o nosso País e seus cidadãos celebraram pomposamente no dia 15 de Outubro, diante do olhar de todo o mundo, revelou também – mais uma vez – a inaptidão política dos partidos de oposição para fazer frente às cruciais questões do jogo político nacional. De facto, quase todas as irregularidades e incidentes que mancharam as Eleições Gerais de 15 de Outubro não constituem nenhuma novidade para os partidos de oposição. Não obstante sabido que a força do partido no poder reside na manipulação da questão política, quer nas cidades como nas regiões rurais, a oposição não foi capaz de realizar um trabalho de base que visasse transformar os principais problemas vividos na experiência quotidiana do cidadão comum em programa político que fosse, depois, restituído à base para criar uma consciência de mudança. Falou-se muito da necessidade de mudança, por exemplo, durante a campanha eleitoral, mas os resultados mostram que não existia (na base) a consciência de mudança.
Durante o período da campanha eleitoral, a Renamo “pôs todos os próprios ovos num único cesto”, concentrando toda a sua campanha na pessoa do seu líder, Afonso Dhlakama. Embora a figura de Dhlakama tenha arrastado muitas multidões, muitas das cidades, distritos e povoações que não tiveram os “showmícios “ de Dhlakama ficaram também privados de qualquer visita dos vértices da Renamo e, em certos casos, mesmo de um pedido de voto expressamente dirigido a eles, da parte de qualquer representante da Renamo.
Além do que até aqui foi dito, a oposição cometeu um outro erro grave, esquecendo-se que o seu adversário era um partido cujo líderes são pessoas desonestas e sem escrúpulos. Quando a Renamo conseguiu obter da Frelimo a aprovação e a promulgação da nova Lei Eleitoral e da Lei do Acordo de Cessação das Hostilidade (Lei 29/2014) – o qual incluía também um Memorando de Entendimento sobre a dis-partidarização do Exército, da Polícia e das Forças da Intervenção Rápida -, começou a celebrar a vitória, convencida que, graças ao dispositivo legal, tinha conseguido fechar todas as brechas por onde se introduzia a fraude eleitoral. Esqueceu-se que a força do adversário residiu sempre na sua possibilidade de transgredir as leis, sustentada pela certeza de impunidade. De facto, segundo a Lei 29/2014, a PRM e a FIR não deviam estar ao serviço de nenhum partido político e, se se provasse que a violência por eles exercitada no dia 15 de Outubro visava defender os interesses da Frelimo, então incorreriam na violação deste dispositivo legal. A não observação do princípio de “Igualdade de Tratamento” – típico dos sistemas democráticos -, somada ao facto que existia um dispositivo legal que vinculava todos os concorrentes, seria suficiente para justificar a desqualificação das eleições de 15 de Outubro.
A insistência na sua qualificação como justas estaria só a confirmar o dito que circulou muito nas redes sociais durante o tempo da campanha: “Quem não é da Frelimo o problema é seu”. Que decepção ouvir os meus compatriotas a trocar o País por um partido! Eu, de facto, não sou da Frelimo. Mas não sou também da Renamo, nem do MDM. Sou moçambicano e a minha luta é pelo Moçambique.
Alfredo Manhiça
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