terça-feira, 16 de abril de 2019

NÃO SOU ÚNICO! OS CÚMPLICES DE JOAQUIM SEBASTIÃO




“Não sou o único”, a música da famosa banda portuguesa Xutos & Pontapés, cuja letra diz a certa altura “Pensas que eu sou um caso isolado / Não sou o único a olhar o céu”, deve ocupar o espírito de Joaquim Sebastião na sua cela da prisão.
Joaquim Sebastião foi director-geral do Instituto de Estradas de Angola (INEA) entre 2003 e 2010. Neste último ano, várias notas publicadas na imprensa davam nota de que a sua fortuna estava a chegar perto do bilião de dólares. Em 2013, Sebastião sucedeu a Tchizé dos Santos como presidente do Benfica de Luanda.
Desde Fevereiro deste ano, Joaquim Sebastião encontra-se em prisão preventiva, pendendo sobre ele as suspeitas da prática dos crimes de peculato (artigo 313.º do Código Penal), subtracção de papéis e documentos por empregado público (artigo 311.º do Código Penal) e associação de malfeitores (artigo 263.º do Código Penal). Esses crimes terão sido praticados durante o tempo e no exercício das funções de director-geral do INEA, o órgão do Estado que sucedeu à Junta Autónoma de Estradas em 1990 e que tinha como atribuições a promoção e coordenação do desenvolvimento das infra-estruturas rodoviárias da rede nacional, bem como a sua exploração, gestão e conservação. Este organismo recebeu biliões de dólares ao longo dos anos, pois tinha como principal objectivo construir e reparar estradas.
Sobre Sebastião, dizia-se em 2013 que era “a única individualidade angolana com activos  em ‘milhões’   de dólares americanos  que não está ligada ao  gabinete presidencial e que não é do convívio do  presidente José Eduardo dos Santos”.
Talvez por isso, ou não, Joaquim Sebastião é, a par de Augusto Tomás, o único dos grandes “tubarões” do regime que se encontra em prisão preventiva, depois da libertação de Zenú dos Santos e de Jean-Claude Bastos de Morais. A negociação que levou à libertação deste último levantou demasiadas dúvidas sobre o papel das autoridades judiciais na condução da luta contra a corrupção, obrigando qualquer analista a tornar-se céptico em relação aos procedimentos adoptados. Por essa razão, fomos verificar os fundamentos conhecidos do processo contra Joaquim Sebastião (não esquecendo que o caso está em segredo de justiça e que por isso a informação disponível é reduzida).
Os fundamentos públicos do processo contra Joaquim Sebastião suscitam várias perplexidades legais que indiciam que o combate à corrupção está a ser levado a cabo de forma juridicamente descuidada e politicamente determinada, o que, no fim de contas, levará ao seu falhanço.
O caso contra Joaquim Sebastião assenta num relatório da Inspecção-Geral das Actividades do Estado (IGAE), levado a cabo em 2009, com referência a factos ocorridos entre 2007 e 2009. Esses factos são o eventual desvio de um bilião de kwanzas (ao câmbio da altura, dez milhões de dólares) dos cofres do Estado, a sobrefacturação habitual de trabalhos, contratos duplicados para o mesmo fim e o mesmo período com empresas diferentes, contratos de guarnição com empresas de segurança para residências estranhas ao INEA. O relatório apurou estas ocorrências, e assim Joaquim Sebastião e outros foram constituídos arguidos a 25 de Janeiro de 2019.
Há desde logo um facto que causa estranheza nesta cronologia: apenas em 2019 se produz uma investigação relativa a factos ocorridos entre 2007 e 2009. Na realidade, o artigo 125.º do Código Penal permite instaurar procedimentos criminais até 15 anos após a prática do crime, a não ser que fosse necessária queixa para iniciar a investigação criminal, caso em que o prazo diminui para dois anos. Efectivamente, 15 anos ainda não passaram, por isso, poder-se-ia admitir que o processo seja instaurado.
Contudo, adicionalmente, a esta questão da consideração da prescrição há que contemplar a Lei da Amnistia de 2016. Genericamente, esta lei amnistia todos os crimes ocorridos até 2015 puníveis com penas até 12 anos. Face ao elenco dos crimes de que Joaquim Sebastião é suspeito, parece, pela mera consulta dos articulados, que pelo menos dois deles não prevêem pena superior a 12 anos, e consequentemente não se entende qual a razão para se estar a investigar crimes obviamente amnistiados. Haverá que repetir, ainda assim, a ressalva que fizemos. O facto de o processo estar em segredo de justiça impede que se façam afirmações totalmente conclusivas. Nesta fase, é apenas possível levantar dúvidas.
Como primeira conclusão, parece que se está a investigar, em parte, factos acontecidos entre 2007 e 2009 que se referem a crimes já amnistiados em 2016. É uma perda de tempo e de dinheiro.
No entanto, esta não é a questão essencial que pretendemos debater. A questão essencial prende-se com a responsabilização ou desresponsabilização alargada.
O relatório da IGAE datado de 27 de Julho de 2009, assinado e efectuado pela dr.ª Beatriz Alberto Quitambe Fernandes, do IGAE, e pelo arquitecto Euclides Manuel de Carvalho, do Ministério das Obras Públicas (MINOP) é exaustivo e está bem elaborado, com cuidado e factos devidamente comprovados. Indubitavelmente, é arrasador para a gestão de Joaquim Sebastião no Instituto de Estradas. Todavia, nas suas Conclusões e Recomendações em lugar algum se propõe o envio do mesmo para o Ministério Público com vista ao apuramento de responsabilidades criminais. Possivelmente, a Comissão de Inspecção terá entendido que não lhe competiria fazer essa sugestão. Mas competiria a alguém, posteriormente.
A questão surge a jusante. O relatório foi remetido ao primeiro-ministro de então, António Paulo Kassoma, que a 12 de Outubro de 2009 despachou, remetendo-o ao ministro das Obras Públicas Higino Carneiro. Esse despacho do primeiro-ministro é a peça-chave deste imbróglio. Aí, Kassoma escreve o seguinte:
“1 – Aprovado o Relatório e suas Conclusões e Recomendações.
  2 – Remeter à atenção do sr. Ministro das Obras Públicas, para:
Em coordenação com o Ministério da Economia, cuidar da adequação da estrutura e do Estatuto Orgânico do Instituto, Regulamento de Funcionamento e da aprovação do seu quadro de pessoal;
Actuar, com rigor, na superação e correcção das insuficiências e irregularidades constatadas;
Primar pela transparência na realização dos investimentos públicos, promovendo concursos públicos (limitados ou abertos), na adjudicação de obras.”
Quer isto dizer que o primeiro-ministro e o ministro das Obras Públicas tomaram conhecimento do relatório e em momento algum decidiram enviá-lo para o Ministério Público como participação criminal. Nem sequer lhes ocorreu demitir o director-geral. O que o primeiro-ministro decide é mandar alterar o Estatuto Orgânico, ultrapassar as deficiências e passar a fazer concursos públicos no futuro. Em relação às irregularidades e ilicitudes detectadas no passado, nada.
A verdade é que esta actuação do primeiro-ministro António Paulo Kassoma tem consequências jurídicas importantes. Duas, pelo menos.
Em primeiro lugar, ao não determinar a invalidade de actos pretéritos e não remeter o relatório para o Ministério Público, o primeiro-ministro terá realizado aquilo que em direito se chama a juridificação dos actos. Isto é, transforma actos potencialmente inválidos em actos válidos na ordem jurídica. Tal corresponde ao estabelecido no artigo 77.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro (Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa). Esta norma determina que em determinados casos existe a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do Direito. A interpretação desta norma sai reforçada pela entrada em vigor da Constituição de 2010, que consagra com força plena vários princípios fundamentais do ordenamento jurídico, como a protecção da confiança e a proporcionalidade. Quer isto dizer que a omissão do primeiro-ministro em tomar medidas face ao relatório fez perdurar no ordenamento jurídico uma série de actos que à partida seriam nulos, mas que, pelo decurso do tempo, passam a ter efeitos reconhecidos. Repetindo, existe a denominada juridificação de factos possivelmente inválidos. Embora tais efeitos operem na área do direito administrativo, sabe-se que é uma condição básica do direito penal que aquilo que é legal na ordem jurídica como um todo não possa ser crime.
Este trecho é um pouco técnico, mas é importante sublinhar que, pela sua inacção, o primeiro-ministro pode ter tornado válidos determinados actos, o que tem como consequência que a responsabilidade criminal de Joaquim Sebastião fique diminuída. Não quer isto dizer que o primeiro-ministro possa transformar crimes em actos lícitos, mas pode transformar determinados elementos necessários para preencher um tipo criminal em actos lícitos, e assim esvazia o crime.
Além da juridificação realizada pelo primeiro-ministro António Paulo Kassoma, a omissão de envio do documento para o Ministério Público constitui ela própria um crime que este e o ministro das Obras Públicas cometeram. Tornaram-se cúmplices ou encobridores dos eventuais crimes de Joaquim Sebastião, porque tomaram conhecimento deles e não os denunciaram. E no mesmo sentido, como tinham esse dever de denúncia enquanto funcionários públicos, praticaram um crime por omissão de denúncia.
Nestes termos, face ao Despacho de 12 de Outubro de 2009 do primeiro-ministro António Paulo Kassoma, ele próprio e Higino Carneiro, ao não enviarem o relatório do IGAE para o MP, passaram a ser comparticipantes na actividade criminal que é imputada a Joaquim Sebastião. Pelo menos neste aspecto, Sebastião “não é o único”…
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