Mohamedou era suspeito de terrorismo, Steve o seu guarda. A história de uma amizade improvável nascida em Guantánamo /premium
Mohamedou Salahi é um dos presos mais conhecidos de Guantánamo, onde esteve detido 14 anos. Steve Wood foi um dos seus guardas — e agora pode ser padrinho do filho do antigo prisioneiro.
- Steve, o guarda que se alistou por causa do 11 de setembro e acabou em Guantánamo
- Mohamedu, o engenheiro fascinado com a Al-Qaeda e primo de um conselheiro de Bin Laden
- “Mano, eles lixaram-me todo”. Os efeitos da tortura em Salahi, o “Forrest Gump da história da Al-Qaeda”
- Amigos e carrascos. O papel dos guardas em Guantánamo
- O reencontro entre prisioneiro e guarda, 14 anos depois
No princípio, o prisioneiro tinha apenas um número — 760. A Steve Wood, membro da Guarda Nacional do Oregon a cumprir serviço militar na prisão de Guantánamo, foi-lhe dito que teria uma missão especial: guardar todas as noites o preso que estava na Echo Special, a câmara onde estava albergado um prisioneiro especial, considerado de grande valor pelas informações que dava sobre o funcionamento da Al-Qaeda.
O primeiro encontro com um alegado terrorista e experiente operacional, contudo, foi muito diferente do que aquele jovem de 23 anos esperava, como revelou um longo artigo da revista New Yorkersobre o misterioso prisioneiro — e a relação que estabeleceu com Wood — publicado esta semana. “Um polícia militar explicou a Wood que a força militar que estava atualmente a guardar o Prisioneiro 760 chamava-lhe ‘Pillow’ [Almofada], porque quando chegaram, vários meses antes, o único objeto que ele tinha era uma almofada. Depois um deles gritou ‘Pillow, podes sair agora!’. Um homem baixo, na casa dos 30, saiu para a zona dos guardas, sem algemas. Trazia consigo um sorriso aberto e um macacão branco, e movia-se com cuidado em direção a Wood. O detido apresentou-se como Mohamedou Salahi, depois estendeu a mão para um aperto de mão e disse ‘Como é que é, mano?’”.
O 760 era afinal Pillow, que era afinal Salahi. O que Wood não sabia é que tinha acabado de conhecer um homem que, afinal, talvez não seja culpado dos crimes pelos quais foi torturado à altura — ainda não tinha sido formalmente acusado, apesar de estar em Guantánamo há três anos. E também não sabia que a relação quer iria acabar por estabelecer com o prisioneiro seria uma que lhe abriria horizontes e alteraria o rumo da sua vida por completo. Quando saiu de Guantánamo, dez meses depois, o guarda Wood chamava a Salahi “amigo”. Nos anos seguintes, o norte-americano abandonou o sonho de ser polícia, influenciado pelas conversas com o prisioneiro, e converteu-se em segredo ao islamismo. Pelo meio, contribuiu para ajudar à libertação de Salahi. E, quase 15 anos depois, os dois voltariam a encontrar-se cara a cara. Esta é a história dessa amizade.
Steve, o guarda que se alistou por causa do 11 de setembro e acabou em Guantánamo
O ano em que Wood e Salahi se conheceram era o de 2004. O guarda tinha 23 anos, o prisioneiro 34. As diferenças físicas entre os dois não podiam ser mais gritantes. Não só a cor da pele separava o norte-americano do prisioneiro da Mauritânia, como também o tamanho: de acordo com o Miami Herald, Wood tem quase 1,90m de altura e pesa quase 100 quilos; Salahi não chega aos 1,70m e, naquela altura, tinha pouco mais de 65 quilos de peso.
Steve Wood chegou a Guantánamo depois de se ter alistado no rescaldo do 11 de setembro. “Tinha passado a manhã do pior ataque terrorista na História americana deitado no sofá da mãe, afetado pelos medicamentos para as dores que tomou depois de uma cirurgia para retirar as amígdalas, mas quando acordou do torpor estava zangado, focado e ansiava por ser mobilizado [com o Exército]. Não tinha nenhum ódio especial contra os muçulmanos, mas tinha absorvido o credo da sua mãe: ‘Se não veio de Jesus, então deve vir do Diabo’”, recorda a New Yorker. Nascido e criado em Molalla (Oregon) pela mãe evangélica (o pai morreu no acidente de avião quando tinha apenas três anos), Steve cresceu num lar altamente religioso. As suas convicções políticas à altura, explicou à revista, eram “o que quer que a Fox News dissesse”.
“Tinha passado a manhã do pior ataque terrorista na História americana deitado no sofá da mãe, afetado pelos medicamentos para as dores que tomou depois de uma cirurgia para retirar as amígdalas, mas quando acordou do torpor estava zangado, focado e ansiava por ser mobilizado [com o Exército]. Não tinha nenhum ódio especial contra os muçulmanos, mas tinha absorvido o credo da sua mãe: ‘Se não veio de Jesus, então deve vir do Diabo’.”
O seu percurso não era, por isso, muito diferente do de milhares de jovens norte-americanos que se juntaram às Forças Armadas no período do pós-11 de setembro, galvanizados pela Guerra ao Terror da presidência de George W. Bush. Recém-chegado a Guantánamo, com a mulher grávida, ao ter conhecimento da missão que teria pela frente — guardar o prisioneiro todos os dias, num turno das seis da tarde às seis da manhã —, o jovem Steve absorveu os conselhos do seu sargento: tapar com autocolante a chapa com o seu nome, utilizar apenas alcunhas e ter muito cuidado. “Confiamos nas algemas e tudo isso mas, não interessa o que acontecer, nunca estamos com ele a sós — tem de estar lá sempre o parceiro”, afirma Wood.
Aquilo que aconteceu ao longo daqueles 10 meses, porém, foi em tudo diferente dessa relação distante e desconfiada. Isso mesmo revelou o próprio Salahi no livro que escreveu dentro de Guantánamo (Guantanamo Diary, sem edição em português) e que se tornou um sucesso de vendas, tendo sido inicialmente publicado com várias informações expurgadas e sublinhadas a negro, por razões de segurança invocadas pelo Estado norte-americano. “‘O meu trabalho é ajudar à tua reabilitação’, disse-me um dos guardas no verão de 2004. O Governo percebeu que eu estava gravemente magoado e precisava de reabilitação a sério. Recebi uma equipa de guardas nova que incluía um fuzileiro a quem todos chamavam Marine, um guarda alto e magro a quem chamávamos Strech [Steve Wood] e um guarda com ar atlético a quem eu chamava Big G. Desde o momento em que começou a trabalhar como meu guarda em julho de 2004, o soldado identificou-se comigo; de facto, ele praticamente só falava comigo”, recorda o mauritano no seu livro de memórias.
“Ele costumava colocar o colchão dele mesmo em frente à porta da minha cela e começávamos a falar de todo o tipo de assuntos, como velhos amigos. Falávamos de história, cultura, política, religião, mulheres, tudo menos os assuntos do momento. Aos guardas era dito que um prisioneiro poderia tentar ser mais esperto do que eles e tentar perceber o que se passava através deles.”
No final da sua missão, Steve quebrou o protocolo e mostrou a Mohamedou uma fotografia da sua filha recém-nascida, Summer. “Foi a minha maneira de lhe dizer ‘Eu confio em ti. Esta é a minha filha. Ela é a minha vida. E esta amizade é real’”, recorda o antigo guarda.
Mohamedu, o engenheiro fascinado com a Al-Qaeda e primo de um conselheiro de Bin Laden
Mohamedou Salahi nasceu na instável e pobre Mauritânia, mas, ao contrário de Wood, o percurso que o colocou em Guantánamo é diferente do da maioria dos jovens da sua idade criados nas mesmas circunstâncias. Criança precoce, na adolescência já sabia recitar de cor o Corão e no final do ensino secundário conseguiu uma bolsa para estudar Engenharia na Alemanha, tornando-se a primeira pessoa da família a ir para a Universidade — e logo no estrangeiro.
Mas este percurso de aluno brilhante seguiu em paralelo com uma consciência política aguçada que o enredou numa teia complicada: em adolescente começou a ler os panfletos de Osama bin Laden e sonhava ser um dos mujahideen escondidos nas montanhas do Afeganistão, à altura financiados pela CIA, para ser parte da resistência aos soviéticos em nome do Islão. Em 1990, Salahi apanhou um avião e partiu para o país. Regressaria alguns anos mais tarde, e acabaria por ser treinado pela Al-Qaeda no Afeganistão, aprendendo a usar armamento. Contudo, à medida que a Guerra Fria colapsou e a situação no país se tornou cada vez menos clara politicamente, Salahi diz ter-se afastado. Em 1994 regressou à Alemanha para terminar o seu curso e trabalhar numa loja de reparação de computadores, segundo conta a New Yorker.
A sua ligação à Al-Qaeda, contudo, voltaria para o atormentar — agravada pelos contactos do seu primo Mahfouz Ould al-Walid, que leu com ele os panfletos de Bin Laden na juventude e que, ao contrário do primo, se entusiasmou o suficiente com a jihad para chegar a conselheiro do próprio Bin Laden, em 1996. Nessa altura, mudou o nome para Abu Hafs al-Mauritani e elaborou uma fatwa que deixava claro o combate da Al-Qaeda ao Governo norte-americano: “A nossa única intenção é entrar no Paraíso por vos ter matado”, dizia o documento. Salahi passou a ser vigiado pelos serviços secretos mauritanos, com a ajuda das secretas alemãs. De seguida, passou a ser investigado pelos norte-americanos por suspeitas de envolvimento na chamada Millenium Plot, uma tentativa de ataques terroristas islâmicos coordenados em vários países (incluindo os EUA) durante os festejos do novo ano 2000. Acabou libertado.
No outono de 2001, quando os serviços secretos norte-americanos investigavam todas as pistas que pudessem conduzir aos responsáveis do 11 de setembro, Salahi voltou a estar na mira dos Estados Unidos. Seguiram-se várias detenções e libertações até que em novembro o Governo mauritano entregou Salahi definitivamente aos norte-americanos. Foi interrogado na Jordânia e numa base militar no Afeganistão até que, por fim, foi enfiado num avião que o levaria para o seu destino final: a baía de Guantánamo, em Cuba. Quando as portas se abriram, contou à New Yorker, “o quente sol cubano atingiu-me graciosamente. Foi um sentimento tão bom”.
“Mano, eles lixaram-me todo”. Os efeitos da tortura em Salahi, o “Forrest Gump da história da Al-Qaeda”
O que se seguiu foi em tudo semelhante ao tratamento a que praticamente todos os detidos em Guantánamo foram sujeitos. Primeiro, Salahi foi colocado em solitária durante um mês. Depois foi sujeito às chamadas “técnicas de interrogatório avançadas”, aprovadas pelo secretário da Defesa, Donald Rumsfeld: foi espancado, submetido a temperaturas extremas, alvo de humilhação sexual por guardas mulheres, colocado debaixo de luzes intermitentes, forçado a ouvir heavy metal bem alto e a ser-lhe despejada água gelada pelo corpo abaixo, repetidamente. Uma vez, foi levado num barco, de olhos vendados, para pensar que seria executado. Durante a viagem, foi obrigado a engolir água do mar, foram colocadas pedras de gelo na sua roupa e Salahi foi espancado de tal forma que, no final da viagem, tinha várias costelas partidas.
“Salahi pode muito bem ter sido um simpatizante da Al-Qaeda e as provas sugerem que deu algum apoio à Al-Qaeda ou a pessoas que ele sabia serem da Al-Qaeda. Esse apoio foi esporádico, contudo, e à altura da sua detenção era inexistente.”
Depois disso, o mauritano passou a confessar tudo aquilo de que era acusado: o envolvimento na Millenium Plot, a ajuda à Al-Qaeda no 11 de setembro, os contactos com inúmeros jihadistas em mesquitas da Europa e do Canadá, por onde passou. Isso deu-lhe privilégios em Guantánamo e garantiu o fim dos interrogatórios mais agressivos. Anos depois, nas sua memórias, o mauritano afirmaria que aquilo que confessou era mentira e representava apenas os frutos da tortura.
O Estado norte-americano, que nunca o acusou formalmente, viria a dar-lhe parcialmente razão: em 2010, um juiz determinou que o seu pedido de habeas corpus tinha validade e que o mauritano deveria ser libertado. “Salahi pode muito bem ter sido um simpatizante da Al-Qaeda e as provas sugerem que deu algum apoio à Al-Qaeda ou a pessoas que ele sabia serem da Al-Qaeda. Esse apoio foi esporádico, contudo, e à altura da sua detenção era inexistente”, escreveu o juiz Roberston. “De qualquer das formas, o que está definido no [precedente] Al-Bihani abrange apenas ‘aqueles que apoiaram de forma intencional e material essas forças de forma hostil contra os parceiros da coligação norte-americana’. As provas neste caso não podem ser esticadas o suficiente para caber nesse molde.”
O Governo, à altura liderado por Barack Obama, recorreu da decisão e o caso do mauritano ficou esquecido, a saltar de tribunal para tribunal. Em 2016, 14 anos depois de ter entrado em Guantánamo, os norte-americanos decidiram libertar Salahi e autorizá-lo a regressar à Mauritânia.
O coronel Morris Davis, antigo procurador em Guantánamo, explicou assim o interesse das autoridades norte-americanas em Salahi à Slate, em 2013: “Quando o Salahi chegou, acho que eles suspeitavam que tinham apanhado peixe graúdo. Ele lembra-me o Forrest Gump, no sentido em que nos vários eventos de relevo na história da Al-Qaeda e do terrorismo ele ali estava, no pano de fundo. Ele tinha estado na Alemanha, no Canadá, em diferentes sítios que pareciam suspeitos e isso levou-os a acreditar que ele era peixe graúdo, mas quando se deram ao trabalho de investigar, não foi a essa conclusão que chegaram”, declarou. “A conclusão final foi ‘isto parece estranho, aquilo parece estranho e… no final de contas aquilo que podemos mostrar é que… bem, parece estranho’. Nunca conseguiram ligá-lo diretamente a nenhuma tentativa de causar danos reais.”
O procurador militar recordou ainda como a personalidade de Salahi se manteve sempre vivaça em Guantánamo, apesar dos interrogatórios. “Ele é naturalmente cafeínado. É muito enérgico, muito extrovertido, amigável”, recordou em 2013. “O difícil não era fazê-lo falar, era calá-lo. Ele era como um brinquedo de corda: quando o ligavam era difícil fazê-lo parar para respirar. Muito sociável, muito amigável.”
Essa personalidade animada terá ajudado a cativar o soldado Steve Wood. E os dois chegaram a tornar-se íntimos o suficiente para Wood ver Salahi no seu pior: uma noite, deu com o mauritano a tremer e chorar, na posição fetal, enquanto dormia. “Está tudo bem”, disse-lhe o soldado, acudindo ao terror noturno do prisioneiro, resultado da tortura reconhecida mais tarde pelo próprio Senado norte-americano. No dia seguinte, Salahi disse apenas uma frase ao guarda: “Mano, eles lixaram-me todo”.
Amigos e carrascos. O papel dos guardas em Guantánamo
No seu livro de memórias, Guantanamo Diary, Salahi interroga-se várias vezes sobre o papel dos interrogadores e dos guardas na prisão e sobre as relações que estabeleceu com eles. Quanto aos primeiros, não tinha dúvidas no seu desprezo, embora tentasse racionalizar a sua conduta: “À medida que fui conhecendo mais o Mr. X e o ouvia falar, interrogava-me: ‘Como pode um homem tão esperto aceitar um trabalho tão degradante, que certamente o vai atormentar para o resto da vida?’”, escreve sobre um dos interrogadores.
Mas, ao mesmo tempo, reforça em várias passagens os laços criados com os guardas — Wood incluído, identificado pela alcunha de Stretch, nome que o norte-americano trouxe dos tempos em que trabalhou numa serração. “A certa altura odiei-me e confundi-me como o caraças. Comecei a perguntar-me sobre as emoções humanas que sentia em relação aos meus inimigos. Como podia eu chorar por alguém quando essa pessoa provocou tanta dor e destruiu a minha vida? Como podia eu gostar de alguém que odiava ignorantemente a minha religião? Como podia eu aturar estas pessoas malvadas que continuavam a magoar os meus irmãos? Como podia eu gostar de alguém que trabalhava dia e noite para me acusar de merdas?”, escreveu Salahi.
Apesar dos conflitos internos, certo é que Salahi passava tempo com Wood e outros guardas e isso aproximava-os. Jogavam jogos de tabuleiro como Monopólio e Risco. Viam filmes, como O Grande Lebowski ou Cercados. E conversavam: sobre as respetivas religiões, sobre as suas vidas, sobre mulheres, sobre os seus países.
Isso não era, apesar de tudo, incomum entre guardas e prisioneiros, como contou um antigo preso, Ahmed Errachidi, à Newsweek. “Os detidos costumavam ter conversas com os guardas que demonstravam respeito comum entre eles”, contou. “Falávamos de tudo, de coisas normais, de coisas que tínhamos em comum.” Errachidi protagonizou também uma amizade invulgar com um guarda, Terry Holdbrooks: a influência de Errachidi foi tanta que Holdbrooks se tornou um muçulmano praticante.
E se os prisioneiros se debatiam com os efeitos dessa proximidade, também muitos dos guardas o faziam. “Só porque muitos de nós éramos guardas em Guantánamo, isso não faz de nós automaticamente más pessoas”, confessou Brandon Neely, soldado que hoje em dia faz campanha pelo encerramento da prisão em Cuba. “Sei de algumas pessoas, incluindo eu, que sentiam pena destas pessoas e se sentiam muito envergonhadas por fazer parte daquilo. Mas o que podíamos dizer? Se questionássemos algo ou contrariássemos alguém, teríamos sido ridicularizados. E quem sabe o que teríamos enfrentado mais”, confessou.
Embora os efeitos da tortura sobre os prisioneiros sejam tão profundos que se tornam quase impossíveis de descrever, também os guardas sentiam, numa escala menor, a violência do que se fazia em Guantánamo. Um estudo do Instituto de Saúde Pública do Exército de 2010 concluiu que 565 dos 1.422 militares que estiveram na prisão e que foram avaliados tinham sintomas de Stress Pós-Traumático. Um em cada cinco tinha um “risco [de saúde comportamental] elevado”, ou seja, tinham ansiedade, depressão ou pensamentos suicidas.
Steve Wood não desenvolveu esses sintomas, mas a vida depois de Guantánamo nunca mais foi a mesma. Na cabeça ficou-lhe a despedida de Salahi, que o próprio mauritano conta no seu livro: “Antes de o Stretch ir embora, comprou-me uns quantos souvenirs e, juntamente com o Marine e o Big G, deram-me uma cópia do livro The Pleasure of My Company de Steve Martin, com uma dedicatória (…) O Stretch escreveu: ‘Pillow, boa sorte com a tua situação. Lembra-te que Alá tem sempre um plano. Espero que penses em nós como mais do que apenas guardas. Acho que nos tornámos todos amigos’”. O livro com a dedicatória seria retirado a Salahi, juntamente com outros bens pessoais, antes da publicação do seu livro de memórias.
“Antes de o Stretch ir embora, comprou-me uns quantos souvenirs e, juntamente com o Marine e o Big G, deram-me uma cópia do livro The Pleasure of My Company de Steve Martin, com uma dedicatória (...) O Stretch escreveu: ‘Pillow, boa sorte com a tua situação. Lembra-te que Alá tem sempre um plano. Espero que penses em nós como mais do que apenas guardas. Acho que nos tornámos todos amigos’.”
Para além da preocupação com o futuro de Salahi, as conversas entre os dois tinham-lhe deixado outro legado a Steve Wood: uma curiosidade tremenda pelo Islão, que o norte-americano colmatou aprendendo mais sobre a religião, depois de Guantánamo. Decidiu abandonar a Guarda Nacional e o desejo de se tornar polícia, ao ter percebido que não gosta “do poder”. Dedicou-se a uma empresa de construção e, nos tempos livres, passou a ir à mesquita Masjid As-Saber, em Portland. “Um branco mais velho, também convertido, disse-lhe para evitar uns quantos brancos convertidos, que se vestiam de forma mais religiosa e falavam de querer participar na jihad. Quando Wood disse ao homem que tinha trabalhado na Baía de Guantánamo, o homem sugeriu-lhe que não partilhasse essa informação. Pouco depois, descobriu que o imã, um imigrante somali que praticava uma corrente conservadora do Islão conhecida como Salafismo, tinha sido investigado pelo FBI e estava numa no fly list, e que muitos homens que iam à Masjid As-Saber tinham sido condenados por terrorismo. ‘Isso assustou-me’, disse. Deixou de rezar em público. ‘Queria que isto fosse apenas entre mim e Deus’”, recordou Wood à New Yorker.
O reencontro entre prisioneiro e guarda, 14 anos depois
O efeito de Mohamdou na vida de Steve revelou ser tão profundo que influenciou a sua espiritualidade. Wood, contudo, continuava dividido e escondia a sua devoção ao islamismo da mulher e da família. Passou a concentrar os seus esforços no próprio Salahi: contactou as advogadas do prisioneiro e disse que queria ajudá-lo. Ao saber que o caso do mauritano iria ser revisto, escreveu uma carta para o ajudar. Nela,Steve deixava claro que considera Salahi “educado, amigável e respeitoso”, ao contrário do que seria de esperar de alguém “que sofreu tantos abusos durante os interrogatórios nos primeiros meses do seu cativeiro”.
Na carta, recordava ainda como partilhou com ele a felicidade pelo nascimento da sua filha. E deixava uma mensagem final: “Com base nas minhas interações com o senhor Salahi em Guantánamo, teria gosto em recebê-lo em minha casa. Com base nas minhas interações, não teria preocupações de segurança se o fizesse. Gostaria de ter a oportunidade de o voltar a ver.”
Em outubro de 2016, Salahi telefonou a Wood. Era um homem livre. Os dois restabeleceram o contacto, falando ao telefone com regularidade. O tempo foi passando e Salahi foi recompondo a sua vida: passou a ganhar dinheiro como coach emocional, dando conselhos com base na sua experiência na prisão, e marcou casamento com uma norte-americana, Amanda, que conheceu entretanto. Com o dinheiro do livro, paga os estudos a alguns sobrinhos. Lamentava apenas não ter podido voltar a ver a mãe e o irmão, que morreram enquanto estava encarcerado a quilómetros dali.
“Com base nas minhas interações com o senhor Salahi em Guantánamo, teria gosto em recebê-lo em minha casa. Com base nas minhas interações, não teria preocupações de segurança se o fizesse. Gostaria de ter a oportunidade de o voltar a ver.”
E eis que, em junho de 2018, o desejo declarado por Wood naquela carta se tornou realidade: com a ajuda de um realizador que estava a filmar um documentário, o norte-americano apanhou um voo para a Mauritânia, a fim de celebrar o Ramadão com Mohamedou Salahi, em sua casa. “Assim que ele chegou ao aeroporto tornou-se minha responsabilidade”, confessou o mauritano ao Miami Herald depois da viagem. “Da mesma maneira que eu tinha sido responsabilidade dele, de certa forma, na Baía de Guantánamo.”
Os dois passaram quatro dias juntos, rezando, quebrando o jejum ao final do dia, conversando. Os dois assistiram novamente ao Grande Lebowski e partilharam gargalhadas. “Ficámos ali a beber chá e a assistir ao Grande Lebowski com a mesma atitude de chico-espertos, a provocar-nos. Foi como se eu tivesse saído de Guantánamo há uns poucos meses e estivesse agora a revê-lo. Foi muito fixe”, confessou Wood a Carol Rosenberg, a jornalista especialista na cobertura de Guantánamo responsável pela peça sobre a viagem do ex-guarda à Mauritânia.
À New Yorker, contudo, confessou algum desconforto. Salahi, que está impedido de sair da Mauritânia devido a um acordo do país com os Estados Unidos, tem feito campanha mediática para poder ser tratado à coluna numa clínica alemã que lhe ofereceu tratamento. Para isso, aproveitou todos os momentos com Wood no país para aparecer em jornais, televisões, documentários e o norte-americano foi repetidamente exposto às mesmas perguntas intrusivas. Mas, por outro lado, o antigo guarda sentiu que aquilo era o mínimo que podia fazer para ajudar Salahi e aceitou tudo. “Ele é um tipo que perdoa, com um coração grande. Senti-me feliz por poder tê-lo ajudado. Sinto que fui uma pequena parte da sua aventura gigante”, confessou Wood ao Herald, dias depois.
Assim pode parecer para quem ler o livro do mauritano, que menciona Stretch de passagem, um nome entre muitos outros, um rosto simpático entre vários, que deixaram o mauritano despedaçado com sentimentos contraditórios, ao mesmo tempo que lidava com a perspetiva de nunca voltar a ver a família nem de regressar ao seu país. Pelo meio, tentava proclamar a sua inocência. Mas a visita de Steve Wood à Mauritânia deixou Mohamedou Salahi abalado. “Agora que o Steve foi embora isto parece tudo tão vazio”, confessou à New Yorker. A revista revelou a história de dois homens vindos de mundos tão diferentes que se encontraram e ligaram num dos lugares mais desumanos do planeta.
E foi também à New Yorker que Salahi contou um último pormenor, que revela como Wood pode ser uma parte bem maior do que pensa na aventura do mauritano: no início de abril, a sua mulher Amanda deu à luz uma criança; Mohamedou pediu a Steve, o homem que em tempos esteve do outro lado da grade, para ser o padrinho o seu filho.
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