Nos últimos dias o ministro da Justiça brasileiro e o ex-primeiro-ministro português trocaram farpas que têm por trás outros casos judiciais, mas também políticos. O Observador explica a picardia.
Na segunda-feira passada, a audiência no auditório da Faculdade de Direito de Lisboa foi muita, com o actual ministro da Justiça brasileiro, o ex-super-juiz Sérgio Moro, como cabeça de cartaz do VII Fórum Jurídico. Esperava-se tudo e houve de tudo, até referências ao processo de José Sócrates pelo homem que mandou prender Lula. O ex-primeiro-ministro não perdoou e respondeu. O ministro de Bolsonaro também não e ripostou. Sócrates voltou a não se ficar e foi ainda mais duro. Mas por trás desta picardia sem fim, há história, várias histórias. De outros processos, outros juízes, outros casos e outros políticos.
O Observador analisou as várias frases entre Sócrates e Moro nos últimos três dias para tentar perceber o que e quem está nas entrelinhas desta troca de galhardetes tensa.
“Temos tido desde o Mensalão e a Lava Jato um sério problema com a grande corrupção. Nesse ponto, Portugal tem uma realidade diferente, pelo menos olhando para o índice de corrupção da Transparência Internacional (…) Não obstante, também Portugal não está imune, basta citar o famoso caso do ex-primeiro-ministro José Sócrates, vendo-se também uma dificuldade institucional em que o processo decorra em prazos razoáveis” (Sérgio Moro no VII Fórum Jurídico em Portugal, segunda-feira, dia 22)
O ponto de partida de Sérgio Moro prende-se com a análise do rankingde perceção de corrupção organizado anualmente pela ONG Transparência Internacional, no qual Portugal está na 30.º posição e o Brasil na 105.º, entre mais de 180 países. A “dificuldade institucional” que o ex-juiz refere tem a ver com os prazos processuais — muito mais rápidos em terras brasileiras do que em Portugal. Mais tarde, em entrevista à TV Record, o ministro da Justiça brasileiro acrescentou: “Em todo o lugar do mundo é difícil lidar com esses crimes de grande corrupção, envolvem pessoas poderosas. O sistema está preparado para [combater] outro tipo de criminalidade, mas todos os países precisam de avançar nessa área e enfrentar a grande corrupção”. Posição esta que é partilhada por muitos procuradores e alguns juízes portugueses sobre o nosso sistema penal.
Para compreendermos melhor as declarações de Sérgio Moro é preciso saber que, no sistema judicial brasileiro, as penas de prisão efetiva podem ser executadas após uma decisão da segunda instância — e independentemente de se verificarem novos recursos. Em Portugal, isso não é possível. Ou seja, os recursos de condenações decididas em primeira instância têm sempre efeito suspensivo, logo a execução da pena só se verifica com o trânsito em julgado dos autos. Por outro lado, o “problema institucional” destacado pelo juiz da Operação Lava Jato também está relacionado não só com mecanismos de justiça premial (nomeadamente, a colaboração premiada que permite atenuar penas em troco de provas documentais e de testemunhos) que permitiram o sucesso nas condenações do processo brasileiro, como também com um equilíbrio entre as obrigações legais da acusação e os direitos dos arguidos.
Em resumo: o processo penal português beneficia muito mais os direitos da defesa do que o processo penal brasileiro.
José Sócrates, por seu lado, sempre criticou desde a sua prisão preventiva a alegada demora na conclusão da investigação da Operação Marquês a cargo do Ministério Público, nomeadamente os sucessivos adiamentos da emissão do despacho final de inquérito. Mas também aqui é preciso ter em conta que o inquérito que teve Sócrates como principal protagonista demorou quatro anos e três meses, mas envolve igualmente, entre mais 27 arguidos, o principal banqueiro privado do país (Ricardo Salgado) e dois ex-líderes da Portugal Telecom (Zeinal Bava e Henrique Granadeiro). Se compararmos com outros casos menos complexos, o tempo já não parece tão dilatado, como por exemplo a investigação a Isaltino Morais, ex-ministro do Ordenamento do Território de Durão Barroso, que demorou pouco mais de quatro anos, ou o processo sobre o Universo Espírito Santo, que está prestes a fazer cinco anos e ainda longe de estar concluído.
“O que o Brasil está a viver é uma desonesta instrumentalização do seu sistema judicial ao serviço de um determinado e concreto interesse político (…) é o que acontece quando um ativista político atua disfarçado de juiz”. (José Sócrates em nota à Lusa, segunda-feira, dia 22)
A resposta de Sócrates nem sequer veio em defesa própria. O ex-primeiro-ministro agarrou-se antes ao elemento comparativo do lado de lá do Atlântico: Lula da Silva, preso no âmbito da operação Lava Jato. José Sócrates sempre teve uma grande cumplicidade política com o ex-presidente brasileiro e com outros líderes sul-americanos, como Hugo Chavéz, ex-presidente da Venezuela.
Aliás, pouco tempo antes de ser detido no âmbito dos autos da Operação Marquês, o ex-primeiro-ministro estava a mediar a vinda de Lula da Silva ao primeiro congresso de António Costa como secretário-geral do PS. Por isso mesmo, Sócrates sempre acompanhou as críticas de Lula e do Partido dos Trabalhadores à Operação Lava Jato. Classificar Moro um “ativista político que atua disfarçado de juiz”, como Sócrates fez, é uma crítica até mais leve do que os duros ataques que Lula e o PT sempre fizeram ao ex-juiz de Curitiba. Lula da Silva chegou mesmo a dizer que iria processar a Netflix por ter produzido e distribuído a famosa série “O Mecanismo” — que retrata a Operação Lava através do livro do jornalista Vladimir Neto e o retrata de forma bastante dura.
Se Lula sempre acusou o juiz Sérgio Moro de “perseguição política” e sempre explicou as investigações da Operação Lava Jato como uma forma de impedir a sua possível recandidatura a presidente do Brasil — o que foi uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral –, José Sócrates também fez o mesmo tipo de crítica ao Ministério Público. Em julho de 2016, Sócrates chegou mesmo a dizer: “Quiseram impedir-me de ser candidato a Presidente da República e de ter uma voz pública.”
Por outro lado, o nome de Lula da Silva é várias vezes referenciado na Operação Marquês, precisamente por via da proximidade que Sócrates sempre teve com o ex-líder do PT. Em primeiro lugar, a compra da empresa brasileira Oi por parte da Portugal Telecom está na origem da alegada corrupção de José Sócrates, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro por parte de Ricardo Salgado — negócio que terá tido intervenção de Lula, segundo a acusação do MP.
E existe ainda um relatório da Autoridade Tributária, que assumiu naquele inquérito a função de polícia de investigação criminal, que aborda com grande pormenor a forma como o ex-primeiro-ministro português terá tentado utilizar a influência de Lula no Governo de Dilma Roussef e no PT para alegadamente intermediar um negócio relacionado com plasma sanguíneo e a produção de hemoderivados a favor do Grupo Octapharma — para o qual Sócrates trabalhava a troco de 12.500 euros mensais na altura.
José Sócrates fez questão de enfatizar esta terça-feira “a relação especial que [Sérgio Moro] manteve enquanto juiz com o Ministério Público português”. Mas a única relação conhecida prende-se com os pedidos de cooperação internacional que a Operação Lava Jato tem solicitado a Portugal, nomeadamente para a extradição de suspeitos a residir em território nacional e para a apreensão de património adquirido com fundos alegadamente ilícitos.
“O juiz decide, ilegalmente, entregar a gravação à rede de televisão Globo, que a divulga nesse mesmo dia, o juiz condena o antigo presidente [Lula da Silva] por corrupção em atos indeterminados, o juiz prende o ex-presidente antes de a sentença transitar em julgado, violando frontalmente a constituição brasileira. O juiz, em gozo de férias e sem jurisdição no caso, age ilegalmente para impedir que a decisão de um desembargador que decidiu pela libertação de Lula seja cumprida” (Sócrates, em entrevista à TVI24, terça-feira, dia 23)
José Sócrates refere-se várias fases do processo Lava Jato, reproduzindo, ao fim e ao cabo, as grandes críticas que Lula da Silva e o PT fizeram ao juiz Sérgio Moro quando este era o titular dos autos na 13.ª Vara Criminal de Curitiba, no Estado do Paraná. A primeira crítica (“condenação em atos indeterminados”) está relacionada com o fato de o processo penal brasileiro permitir a condenação com uso de prova indireta — o que também acontece na Operação Marquês. Por exemplo, a imputação do Ministério Público de que as contas bancárias que estão em nome de Carlos Santos Silva pertencerão, afinal, a José Sócrates baseia-se num conjunto de prova indiciária indireta que é ‘lida’ pelo MP em conjunto, não existindo uma prova direta (um documento ou uma confissão de Santos Silva ou de Sócrates) sobre essa matéria. Neste ponto, a estrutura dos processos penais dos dois países é semelhante.
Isto é, também em Portugal é possível, por exemplo, a condenação com uso exclusivo de prova indireta. É relativamente comum no processo penal português a condenação por homicídio sem que tenha sido encontrado o corpo da vítima e sem que exista prova direta que relacione os réus condenados ao crime propriamente dito.
Já a segunda crítica (prisão antes da sentença transitada em julgado) é uma prática admitida pela lei brasileira. A jurisprudência do sistema judicial daquele país permite que a pena de prisão seja executada após uma decisão nesse sentido a segunda instância. Em Portugal, só é possível a prisão após o trânsito em julgado dos autos — isto é, após serem esgotadas todos os recursos ou após o arguido desistir de recorrer.
“O Processo Marquês ao fim de cinco anos finalmente tem um juiz. É este juiz que respeito e esta fase de instrução que quero respeitar. Pela primeira vez há um juiz independente, coisa que não houve antes” (Sócrates, na mesma entrevista à TVI24)
Ivo Rosa foi o juiz sorteado (num sorteio eletrónico) para ser o responsável pela instrução da Operação Marquês — ou seja, será ele a decidir se o caso que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates segue ou não para julgamento. A frase deixada na entrevista desta terça-feira serve ao ex-primeiro-ministro para fazer contra-ponto com o juiz Carlos Alexandre, que chegou mesmo a acusar de lhe ter “ódio pessoal” e, por várias vezes, de abusar do seu poder.
O juiz que é agora elogiado por José Sócrates é conhecido pela sua visão conservadora dos meios de prova que admite durante as suas instruções e julgamentos. Defensor acérrimo da prova direta, Ivo Rosa tem no seu curriculum judiciário várias decisões de não pronúncia (na fase de instrução) e de absolvição (em julgamentos) por rejeitar a utilização dessas provas indiretas. É muito elogiado pelos advogados de defesa e igualmente criticado na mesma proporção pelos magistrados do Ministério Público.
Desde praticamente o início da investigação da Operação Marquês que José Sócrates e os seus advogados têm o juiz Carlos Alexandre na mira — à semelhança do que acontece com Lula da Silva/PT e Sérgio Moro. O ataque a Carlos Alexandre iniciou-se pouco depois de o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal ter ordenado a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro. A defesa de Sócrates interpôs uma bateria de recursos nos tribunais superiores contra o juiz e, com a exceção de um recurso relativo ao segredo de justiça que foi decidido pelo desembargador Rui Rangel (hoje também ele arguido num inquérito relacionado com Luís Filipe Veira e José Veiga), só teve derrotas. Nestas incluem-se dois incidentes de recusa que foram interpostos contra Carlos Alexandre.
O ponto alto da guerra com o juiz de instrução criminal — que, recorde-se, tem como principal função escrutinar o trabalho do Ministério Público durante fase de inquérito e de liderar a fase de instrução criminal se os arguidos contestarem, como contestaram, a acusação produzida — acabou por verificar-se após uma entrevista de Carlos Alexandre à SIC em setembro de 2016. A frase mais polémica (“não tenho dinheiro ou contas bancárias em nome de amigos”) foi vista por José Sócrates e pela sua defesa como uma indireta às suspeitas que existem na Operação Marquês contra José Sócrates e Carlos Santos Silva.
O Conselho Superior da Magistratura, o órgão disciplinar dos juízes, abriu um inquérito disciplinar a Carlos Alexandre por queixa de José Sócrates mas arquivou-o por falta de matéria depois da apresentaçãofeita pela sua defesa
Agora, José Sócrates atacou Moro com Carlos Alexandre no pensamento e ainda atirou, na mesma entrevista à TVI24, que “parece que há uma escola internacional que pensa que é possível instrumentalizar juízes.”
“Em relação à pessoa em particular, eu não debato com criminosos pela televisão. Então, não vou fazer mais comentários” (Sérgio Moro, em entrevista à TVI Record, terça-feira, dia 23)
“Não, nunca cometi nenhum crime nem fui condenado por nenhum crime. Não posso aceitar ser condenado sem julgamento, muito menos por autoridades brasileiras (…) Há, no entanto, em todo este episódio um mérito: as palavras produzidas confirmam o que já se sabia do personagem — como juiz, indigno: como político, medíocre; como pessoal lamentável” (José Sócrates, numa nota enviada ao Observador, quarta-feira, dia 24)
É um facto judicial irrefutável que José Sócrates nunca foi condenado por nenhum crime no sistema judicial português. Alvo de várias investigações criminais ao longo da sua carreira política, daos quais se destacam o caso da Cova da Beira, Freeport, Face Oculta e o caso da licenciatura, Sócrates só foi constituído arguido em novembro de 2014, tendo estado preso preventivamente durante 10 meses. Foi formalmente acusado de 31 crimes (três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, dezasseis de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada) em outubro de 2017, sendo o primeiro chefe de Governo da democracia portuguesa a ser formalmente acusado de crimes no exercício do seu cargo político.
José Sócrates contestou a acusação do Ministério Público e requereu a abertura de instrução, estando esta a decorrer sob a liderança do juiz Ivo Rosa. Caso seja pronunciado, Sócrates será julgado, tendo a hipótese de, em caso de condenação, de recorrer da mesma. De acordo com a lei portuguesa, um cidadão só tem cadastro criminal com o trânsito em julgado da respetiva condenação.