sábado, 13 de abril de 2019

Era quinta feira 14 de Março de 2019. Beira e Búzi. Éramos Hiroshima e Nagazagui.

FLASH BACKS
Era quinta feira 14 de Março de 2019. Beira e Búzi. Éramos Hiroshima e Nagazagui.
Como funcionários do Estado, tivemos que ir ao trabalho pela manhã. O Estado não emitiu nenhum comunicado a dispensar os funcionários. Pelo contrário tudo circulava nos privados. Dispensaram os seus quadros três dias antes, logo na segunda-feira.
Os meus amigos das ONGs estavam em casa desde terça feira, com informação depurada, de fontes até estrangeiras. Começaram a reservar água, comprar víveres, candeeiros, água, lanternas, martelos e quites de primeiros socorros.
Os funcionários do Estado estavam a margem de tudo. As informações chegavam com atraso e sem a devida seriedade. Naquela manhã todos eles foram ao serviço.
A imprensa inteira estava a brincar. Enquanto a CNN, BBC, Euronews e outros canais estrangeiros falavam do IDAI de hora em hora, como de algo muito grave, a STV transmitia reportagens de arquivo, Miramar debates desfocados, TVM novelas mexicanas, RM música variada. Isso durante o próprio dia do ciclone. Era uma perda de tempo procurar informação na nossa imprensa.
Um documento escrito as pressas na véspera chegava-nos via WhatsApp. Assinado por Augusta Maita, Directora do INGC. Com antecedência de um dia. Sem coordenação com o Ministério da função pública que até hoje não disse uma palavra. O recado era de que não se marcaria falta a ninguém. Mesmo sem ofício.
Na Vila do Buzi ninguém sabia de nada. Era mais um vendaval, pensava-se. Saí do trabalho por volta das doze, por recomendação dos colegas. Depois do almoço adormeci no sofá a ver televisão. A ventania começou gradualmente as 16h e a seguir ficamos sem corrente eléctrica. Fechei as janelas e as portas, fiz-me ao quarto e entrei nas mantas. Despertei perto das vinte horas depois de um estalido faraónico.
Foi então que apanhei o primeiro choque. Já não enxergava. Estava terrivelmente escuro dentro e fora. Tive a impressão de ouvir ruído da água no quarto. Tentei palpar na borda da cama eis que a mão mergulhou nela. Deu para esboçar um sorriso amarelo "misericórdia!". Lembrei-me do verso de um poema "O sorriso de quem tudo perdeu".
Levantei-me para tomar precauções e reparei que a água aumentava de nível. Vesti-me com calções e camiseta. Levei mochila com alguns pertences (papel higiénico, água, pão, bolachas, e sabão).
Desci o degrau da escada que dava para o quintal traseiro, ao focar com a lanterna pude ver o meu Toyota mergulhado até a metade. Caminhei sob a água em direcção ao edifício próximo mais alto. Era a casa de um comerciante amigo. Subi as escadas para o terraço e lá estava toda a prole, e outros vizinhos. Deram-me uma cadeira. Seguiu-se uma noite repulsiva até o dia seguinte.
Só ao terceiro dia, sábado, tivemos socorro. Fui transportado para cidade da Beira de barco, de onde vos escrevo agora.
Naquele terraço passámos tudo. Chuva e ciclone. Havia ali uma pequena parede tipo balaustrada, que nos defendia do vento, qual para-choque! Ainda assim, não tínhamos esperança de sobreviver a noite.
Sem qualquer privacidade senti pena de mim mesmo e chorei. Três dias sem puder defecar, mesmo sob o aperto dos intestinos, foi terrível. Os meus companheiros tinham menores sob o seu regaço e os levavam a fazer necessidades num plástico que era depois arremessado para as águas correntes do dilúvio. Para urinar de noite era só ficar de pé no limiar to terraço e chichitar para a água.
A noite do dia 14 de Março foi negra e difícil. O barulho e o redemoinho do furacão vinham para matar, roubar e destruír. E mataram. Em primeiro morreu todo o gado. O rei do gado, de nome Salvador, perdeu todas as cabeças. Milhares de vacas. O seu rival da margem idem. Empobreceram num só dia. Há quem tenha visto vultos, mas sobre isso prefiro contar no próximo texto.
Talvez fosse tempo de avacuarmos a cidade Beira e Buzi. Aliás como fazem em Nova Orleães no EUA. Beira e Búzi estão talhadas para conter água. Se não for do Mar será do Rio.
Beira foi contruida sobre água do mar. O cinema São Jorge, na Ponta-gêa foi construida em 1902 (hoje CUCA). Meu pai era motorista da administração, assimilado portanto. Fez parte do grupo que carregou terra nas colinas do interior para betuminar Beira.
Beira e Buzi não precisam voltar a vitimizar pessoas para que sejam avacuados. Sempre foram, são e continuarão sendo zonas de alto risco. Se saíssemos um pouco para o norte da cidade enquanto cedo, Inhamizua e Dondo, estaríamos a construir no lugar certo, aliás para onde, a princípio, Beira tinha sido projectada.
A quest for wisdom.
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