quinta-feira, 16 de agosto de 2018

É possível votar num número dois “a pensar em Lula”?


EVARISTO SA/GETTY

A partir da cela, Lula da Silva entrou de rompante numa eleição presidencial em que se joga “a legitimidade da política institucional e o próprio Estado como promotor da ordem social”. No fim, “quem perde é a justiça”. A jogada de Lula e do seu PT pode ter alguns riscos mas também parece ser a única possível. Lula e Bolsonaro representam “duas ideias de país totalmente opostas”. Resultado: o Brasil está partido ao meio

O registo da candidatura de Lula da Silva à Presidência do Brasil, esta quarta-feira, “volta a pôr a justiça em foco”, avalia ao Expresso o investigador do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do ISCTE Marcelo Moriconi. Considerando ser “muito difícil a candidatura avançar”, o académico defende que o Partido dos Trabalhadores (PT) fez o que se esperava: “é uma medida natural e lógica, que pretende esticar o máximo possível” a popularidade do antigo Presidente, que está preso desde 7 de abril pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Ao ser condenado em segunda instância, Lula encaixa na chamada “lei da ficha limpa”, o que inviabilizará a presença do seu nome no boletim de voto, apesar de continuar a figurar como favorito nas sondagens. Tudo parece um empecilho para a confirmação da candidatura de Lula. A presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, deverá deliberar que o candidato é inelegível para as presidenciais de 7 de outubro. Se não o fizer, além do Ministério Público, qualquer um dos outros 12 candidatos pode avançar com um pedido de impugnação da candidatura.
“Os próximos dois meses serão a continuação desta telenovela brasileira. A campanha eleitoral acontece em paralelo com a decisão sobre a elegibilidade da candidatura de Lula, que se envolve na campanha e cria algum ruído”, diz ao Expresso a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA) Carmen Fonseca. “O PT está a tentar rentabilizar ao máximo o capital político e social de Lula. Ele foi o Presidente mais popular da história do Brasil e é bastante carismático, tendo, apesar da prisão, uma taxa de aprovação admirável”, acrescenta.

VOTAR EM LULA NÃO É O MESMO QUE VOTAR NO PT

A estratégia consiste, pois, em “tentar ganhar tempo”, prossegue Carmen Fonseca. A posição é partilhada pelo investigador do CEI: “O PT tem de colocar nos media a ideia de que Lula pode ser candidato porque é inocente. Se o tribunal eleitoral decidir que Lula não pode avançar, o plano é mudar de candidato para Fernando Haddad, que tem um perfil mais presidenciável mas é muito menos popular”, refere Marcelo Moriconi. Contudo, esta estratégia não é isenta de riscos, alerta a investigadora do IPRI.
“Haddad não é uma figura tão conhecida como Lula. É sobretudo conhecido na região de São Paulo, onde foi presidente da Câmara”, entre 2013 e 2017, tendo sido também Ministro da Educação nos mandatos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, recorda Carmen
Fonseca. “No nordeste, onde Lula tem um grande apoio, Haddad é praticamente desconhecido. Ele disse que seria o porta-voz de Lula mas isso não é totalmente claro no eleitorado. Há pessoas que votam na pessoa do Lula e não propriamente no PT”, explica.

“QUEM PERDE É A JUSTIÇA”

A jogada petista pode até apresentar falhas mas afigura-se como a única possível. Não sendo fácil “transferir a visibilidade de Lula para o número dois do PT”, a ideia será sempre apelar ao voto “a pensar em Lula”, numa lógica de que “ele devia estar aqui mas não está por irregularidades da justiça”, analisa o investigador do CEI. Por outro lado, temos “uma classe política que se aproveita da prisão do líder político mais popular do país”, que foi “condenado numa sentença cuja carga ideológica pode ser questionada”, continua.
Do outro lado da contenda (e do espetro político) encontra-se Jair Bolsonaro, presidente ‘de facto’ do Partido Social Liberal (PSL). “O segundo líder mais popular aproveita-se da elite corrupta e da prisão de Lula”, exemplifica Marcelo Moriconi, que sublinha estar “em jogo a legitimidade da política institucional e da justiça no Brasil – e o próprio Estado como promotor da ordem social”. Em qualquer dos cenários, “quem perde é a justiça”, seja pela contestação popular que a não elegibilidade de Lula provocará, seja porque aceitar a sua candidatura “implicaria uma confirmação de que houve irregularidades na condenação”, sentencia.

“NÃO QUERO FAVOR, QUERO JUSTIÇA”

Lula, ou o seu “candidato-delfim”, e Bolsonaro representam “duas ideias de país totalmente opostas”, com “características extremas” à esquerda e à direita, prossegue o académico. As sondagens marcam “uma forte polarização”, um país dividido ao meio, e qualquer resultado terá “consequências sociais importantes”. Num tom mais grave, Moriconi assume mesmo que há “um risco de desarticulação da legitimidade judicial no Brasil” num contexto eleitoral que “vai afetar não apenas o Brasil, mas toda a América Latina e os blocos regionais” em que o país está inserido.
Escassos minutos depois de o PT formalizar a sua candidatura, Lula da Silva fez publicar uma carta aberta ao povo brasileiro, pedido uma oportunidade para “consertar o país”. Dizendo-se “vítima de uma caçada judicial que já está registada na história”, o ex-Presidente foi perentório ao sublinhar: “não quero favor, quero justiça”. “Não troco a minha dignidade pela minha liberdade”, concluiu, antes de enviar “um forte abraço”. Já na terça-feira, num artigo publicado no jornal “The New York Times”, Lula defendeu que a sua prisão “foi a última fase de um golpe em câmara lenta” para “impedir que o PT seja novamente eleito para a Presidência”.

QUEM É QUE O MUNDO PREFERE?

Quanto à expectativa dos mercados e da comunidade internacional relativamente à votação presidencial no Brasil, os investigadores contactados pelo Expresso divergem.
“O medo que Bolsonaro causa faz com que a candidatura de Lula tenha apoio internacional. Lula é muito mais bem visto no contexto internacional e no quadro em que a América Latina se encontra”, defende Marcelo Moriconi. Já Carmen Fonseca aposta no nome de Geraldo Alckmin, candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), como aquele que “poderá ser o preferido internacionalmente”.
Internamente, “Alckmin é associado ao establishment do Brasil, que a sociedade critica e poderá querer condenar nestas eleições”. Contudo, “ele personifica tempos de estabilidade e consegue ter muito mais tempo de antena porque fez coligações com os partidos do centrão”. Por outro lado, “tem carreira política, ao contrário de Bolsonaro, que apareceu como o salvador da pátria e tenta incutir uma certa nostalgia do período ditatorial”, conclui a investigadora do IPRI.

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