ANÁLISE
A Rússia é uma potência do século XX que ainda não se adaptou ao século XXI
O que quer e o que pode Vladimir Putin? A resposta, difícil, provoca algumas insónias aos europeus. Donald Trump não ajudou.
1. À primeira vista, dir-se-ia que a vida tem corrido bem a Vladimir Putin. Conseguiu transformar a Rússia de potência decadente em potência “emergente”, com direito a figurar nos BRICS. Há dez anos, pelo menos, que desafia o Ocidente, infringido as leis internacionais, ignorando fronteiras e ocupando parte de dois países independentes: primeiro a Geórgia, depois a Ucrânia. Não esconde a sua política “revisionista” da ordem internacional para reconquistar as “zonas de influência” da União Soviética, perdidas depois da derrota na Guerra Fria.
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Encontrou recentemente no líder da única superpotência que resta uma “alma gémea”, cujo objectivo é entender-se com ele, apesar das crescentes resistências internas nos EUA. A cimeira de Helsínquia, há um mês, correu-lhe de feição,apresentando-se ao lado de um homólogo americano desejoso de agradar-lhe, ao ponto de o desresponsabilizar pela interferência, mais do que provada, nas presidenciais americanas de 2016. Fez-lhe o favor não mencionar a Ucrânia ou a Crimeia. O seu objectivo é um entendimento com o Presidente americano por cima da “cabeça” da Europa que tenta, constantemente, dividir, para recuperar a influência sobre a sua parte Leste, da qual ainda não desistiu.
Conseguiu colocar um pé firme no Médio Oriente e no Mediterrâneo, graças à guerra na Síria, salvando o regime assassino de Damasco e preparando-se para ficar. Apresentou ao mundo, no Mundial de futebol, um país organizado, capaz de levar a cabo sem problemas (visíveis) nem incidentes um campeonato desta envergadura, aproveitando uma plateia de milhares de milhões de espectadores.
Mas a cerimónia final do Mundial, no pódio instalado no centro do relvado, onde Putin, Emmanuel Macron e Kolinda Grabar-Kitarovic recebiam os jogadores e distribuíam as medalhas, revelou uma anomalia. De um lado, um Putin rígido, apesar do sucesso; do outro, dois Presidentes eufóricos, alegres, descontraídos, capazes de tirar todo o partido da vitória da França e do honroso segundo lugar da Croácia. De repente, uma bátega de água ameaçou estragar a festa. Os guarda-costas de Putin abriram imediatamente um chapéu-de-chuva para protegê-lo, sem a mínima intenção de fazer o mesmo aos outros dois Presidentes, indiferentes à chuva e sem guarda-costas, mantendo a euforia. A imagem era forte: dois mundos muito distantes habitaram por um momento o grandioso estádio de Moscovo.
2. A vida corre bem a Vladimir Putin? E com que consequências para o Ocidente, até agora incapaz de evitar duas invasões a países independentes na sua fronteira Leste? Um deles, a Geórgia, queria afastar-se da influência de Moscovo e aproximar-se da União Europeia e da NATO. Foi invadida em Agosto de 2008 pelas tropas russas, alegadamente para defender as minorias russas que viviam na Abkhazia e na Ossétia do Sul. Na altura, ninguém queria imaginar o cenário com que a Aliança se depararia no caso de a Geórgia ser membro da NATO. O cenário contrário também podia ser verdadeiro: se fosse, Putin teria invadido? Era este o dilema ocidental.
O Presidente ucraniano fugiu para Moscovo. O pretexto para a intervenção russa teve semelhanças com a Geórgia. A população de língua russa que vivia na parte Leste da Ucrânia, a velha região industrial, mais longe do sonho europeu, precisava de protecção. Seguiu-se a anexação da Crimeia, violando todos os acordos estabelecidos depois da Guerra Fria.A Ucrânia já foi outro caso, embora com o mesmo objectivo: expandir a influência russa e testar a reacção europeia e americana. Em 2008, Putin ainda via a NATO como o verdadeiro inimigo. Em 2014, já tinha percebido que a União Europeia, apesar de desarmada, tinha um efeito de atracção praticamente irresistível. Quando, em Dezembro de 2013, o governo pró-russo de Kiev se preparava para assinar um Tratado de Associação com a União Europeia, Putin pura e simplesmente proibiu-o. Não tardaram as manifestações na Praça central de Kiev e, depois, nas outras praças e nas outras cidades do país, contra a interferência de Moscovo.
A base naval russa de Sebastopol, em águas quentes do Mar Negro, continuava a ser fundamental para a estratégia expansionista do Kremlin. O facto consumado desencadeou uma reacção que não estava nos cálculos do Presidente russo. Foi a única coisa que lhe correu mal. A Europa decretou sanções logo em Março de 2014, que foram sempre em crescendo.
A queda do voo MH17, com 300 passageiro a bordo, saído de Amesterdão, derrubado por um míssil de proveniência russa disparado da Ucrânia foi a gota de água que pôs fim a quaisquer hesitações europeias. Uma linha vermelha tinha sido ultrapassada. Berlim e Paris conseguiram reunir à sua volta a maioria dos parceiros europeus para organizar a reacção.
Seguiram-se as negociações dos acordos de Minsk que Putin, até hoje, não cumpriu. Os europeus mantiveram-se unidos. As sanções têm vindo a ser sistematicamente renovadas. Os “amigos” de Putin que, entretanto, ganharam terreno na Europa, não fizeram ondas. O Presidente russo não contava com a união da Europa, como não contava com uma coordenação sem falhas entre Berlim e Washington. Obama liderou a resposta. A Rússia ficou isolada internacionalmente. As sanções doem na economia. Mas têm, como sempre, um duplo efeito: alimentam o discurso nacionalista conta a agressão ocidental, ao qual os russos são ainda sensíveis.
A eleição de Donald Trump acabou por ser uma inesperada prenda para Vladimir Putin. Mas realidade ainda não traduz o seu efeito. O Congresso americano decidiu há dias aplicar novas sanções no domínio da tecnologia militar, em resposta ao “caso Skripal”, do envenenamento de um ex-espião russo com o recurso a um agente químico considerado uma “arma”, em território britânico. Washington vendeu armas a Kiev. O Pentágono aumentou o financiamento da presença militar dos EUA nos Bálticos e na Polónia, em conjunto com as forças da NATO, para prevenir qualquer tentação de Moscovo.
3. O Guardian publicava recentemente uma opinião da reputada especialista francesa da Rússia, Marie Mendras. Vale a pena olhar para o que escreveu. “A narrativa do Kremlin assenta na noção de uma Rússia ‘patriótica’ superando constantemente uma oposição minúscula, desprezada como uma “quinta coluna” criada e manipulada por forças externas”, diz a académica francesa. Para avisar: “É tentador para os observadores externos adoptar esta visão a preto e branco, na qual o líder é dominador e admirado, enquanto os que duvidam dele são uma excepção.”
Na realidade, continua Mendras, “há três Rússias”. A primeira é a de Putin, “construída sobre uma estrutura de poder oligárquica e uma massiva máquina de propaganda.” A televisão é totalmente controlada. A segunda “são os cidadãos normais, com as suas muitas facetas mas também os seus problemas comuns”. A terceira, finalmente, “são as elites profissionais e a classe média alta, que beneficiaram do boom económico dos anos 2000 e que agora têm muito a perder”.
É uma boa descrição. A esmagadora maioria dos 140 milhões de russos preocupa-se com a queda do nível de vida, a quebra de qualidade da saúde e da educação, a insegurança e a corrupção. Os protestos, diz Mendras, são frequentes. “A situação de Putin é, de facto, o problema clássico que muitos líderes autoritários enfrentam”, conclui a académica. “Precisa de exibir legitimidade popular para convencer o seu próprio círculo próximo, bem como rivais potenciais, de que é invencível e insubstituível”.
Outro dado interessante é a imigração crescente das classes profissionais, sobretudo para a Europa, ainda que sempre com vontade de regressar. Se as coisas se complicarem internamente, a tentação será de “aumentar a repressão” interna, o que apenas alimentar a resistência. “Em última análise, a demanda do poder mundial pode não ser suficiente para unificar uma sociedade fragmentada e as suas várias elites à volta de um homem forte.” É difícil de acreditar que Putin venha a optar pela outra vida possível: a liberalização do regime.
Há outra versão da história recente da Rússia e da culpa ocidental. George Friedman, reputado geopolítico que já dirigiu a Stratfor, dava recentemente outra visão muito mais crítica da “incompreensão” dos “liberais ocidentais” da história e da geografia do grande país de Leste. É uma visão bastante em moda em alguns meios intelectuais europeus, que vêem em Putin um notável estratego e tendem a não considerar relevante a questão da democracia.
Friedman acusa o Ocidente de um erro de raiz: “O problema é que os reformadores liberais vêem a Rússia e outros países como nações desejosas de serem como eles. É uma forma de narcisismo ocidental que conduz a uma incompreensão do mundo”. A sua frase mais reveladora: “Se Putin tivesse sido atropelado por um carro em 2000, teria sido substituído por outro Putin, com outro nome”. Tudo teria sido igual.
Os limites da tese são óbvios. Basta um exemplo dos cem que vêem ao espírito. Se Winston Churchill tivesse sido atropelado em 1940 em Picadilly Circus, a História não teria sido igual. A União Europeia foi, ela própria, a vitória dos valores políticos contra a geografia e a história. O raciocínio ocidental era mais elaborado: a ideia de que todos os povos do mundo tinham direito a viver em democracia. A polémica dura até hoje, embora cada vez mais a desfavor dos que continuam a considerar os valores ocidentais como universais. A crescente “desuniversalização dos valores e das normas das democracias ocidentais” é uma realidade, escreve Bobo Lo, do Institut Français des Relations Internationales (IFRI), de Paris. Trump deu uma forte contribuição, deixando as potências ocidentais sem um instrumento que foi estruturante da sua política externa.
4. Também para Putin o caminho não é fácil. Alguns dados económicos ajudam a relativizar a sua força. O PIB da Rússia é inferior ao italiano, embora já tenha sido igual ao holandês. O país continua a depender de uma só fonte de riqueza: o petróleo e o gás natural. A modernização da sua economia depende do investimento estrangeiro ocidental, posto em reserva pelas sanções e pelas incertezas internacionais. Há já alguns anos, Chris Patten, último governador de Hong-Kong e actual reitor de Oxford, numa entrevista ao PÚBLICO, respondia com outra pergunta à pergunta sobre a economia russa: “Tem em casa alguma coisa a dizer made in Russia?”.
O caminho da China é oposto. E o petróleo é, cada vez menos, uma “arma”. Putin teve a vida facilitada quando o crude esteve acima dos 100 dólares por barril. Tentou a arma energética, em 2006, quando fechou a torneira do gasoduto que abastece a Ucrânia, para mostrar à Europa (sobretudo à Alemanha) o que lhe poderia acontecer num Inverno rigoroso. Desde então, os europeus trataram de diversificar as suas fontes de abastecimento. Os especialistas lembram que, sobretudo nos países do Sul, foram construídos portos para receber o gás liquefeito importado da América. Hoje, a própria Alemanha está a construir um. Trump está muito interessado no negócio.
Amy Myers Jaffe, do Council on Foreign Relations, refere que, em Helsínquia, “Putin lembrou ao Presidente americano que ‘nenhum dos dois está interessado na queda dos preços do petróleo.’” Os EUA são hoje praticamente auto-suficientes em matéria de energia. Querem aumentar as exportações. Os gigantes russos, como a Rosneft e a Lukoil ou a Gazprom vêem-se obrigados a investir em países de grande instabilidade política como o Irão, Venezuela, Líbia ou o Iraque, correndo um risco elevado, chama à atenção a mesma analista. A realidade e sempre mais complicado do que parece.
O que pode afinal Vladimir Putin? “Em muitos aspectos, a Rússia é uma potência do século XX a lutar por adaptar-se às realidades do século XXI”, escreve Bobo Lo. Mantém um gigantesco arsenal nuclear. Não consegue intimidar os EUA, nem sequer a China. O seu futuro não está determinado.
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