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“Caso Carlos Cardoso”
O princípio jurídico da livre apreciação da prova
Recuando para os anos de 2002 e 2003, quando foi do julgamento do “caso Carlos Cardoso”, o juiz Augusto Paulino, tomou como base para a condenação dos réus o princípio da livre Apreciação da prova.
Foi tão somente com base neste princípio que este juiz condenou todos os réus do caso Carlos Cardoso. O Juiz não se baseou em nenhuma prova robusta e inquestionável. Isso só surpreendeu os menos atentos pois todos os outros sabem que este processo foi político, tinha o objectivo de agradar certas elites.
Por isso, nunca me cansarei de discutir e analisar este processo para que as gerações vindouras saibam o que é que se passou.
Mas antes de aprofundar as minhas questões em relação ao uso deste princípio da livre apreciação da prova pelo juiz Augusto Paulino, no “caso Carlos Cardoso”, vou explicar o significado deste princípio para facilitar o trabalho de análise e compreensão do meu pensamento.
O princípio da livre apreciação da prova pressupõe em primeiro lugar que existem provas. O juiz só pode ter a liberdade de apreciar algo que existe. Este é o ponto de partida. Se não há provas no processo não se pode falar da liberdade da sua apreciação.
Existindo prova no processo, o princípio da sua livre apreciação significa que o juiz tem a faculdade de valorar estas provas de forma livre, considerando a sua experiência da vida em sociedade e a sua própria convicção. Mas esta valoração da prova deve ser racional, objectiva e crítica. Deve atender as regras gerais da lógica e da experiência, ou seja, os critérios que devem orientar o juiz na busca da verdade material devem ser objectivos. Devem ser perceptíveis por todos.
Este princípio não significa que o juiz deve julgar os factos como quiser, sem nenhuma prova ou contra as provas produzidas. O juiz deve se orientar em primeiro lugar pelo princípio da busca da verdade material.
O princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido com a apreciação arbitrária da prova.
O Artigo 655 do código de processo civil, ao estabelecer que “O Tribunal Colectivo aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado”, consagra este princípio no nosso ordenamento jurídico. E a interpretação correcta deste principio é de que o juiz tem o poder de apreciar livremente a prova que lhe é apresentada em juízo sem ter que, em princípio-vide no 2 deste artigo-, se submeter a quaisquer regras que ditem o valor probatório de alguns meios de prova.
O poder da liberdade da apreciação da prova conferido ao juiz, apesar de apelar a experiência, implica acima de tudo fundamentação. É esta fundamentação que confere legitimidade democrática às decisões judiciais.
O juiz dos tempos modernos deve ter preparação suficiente para não se deixar influenciar pelo desejo público de condenação em certos processos mediáticos. O juiz só deve condenar com suporte probatório não com base no seu livre arbítrio. A sua liberdade de apreciação da prova deve sempre corresponder a um suporte probatório.
E todos sabemos que no direito penal vigora o princípio de “in dúbio pro réu”, que significa que em face da prova alcançada, na dúvida, deve decidir-se à favor do réu.
Dadas estas explicações sobre o principio da livre apreciação da prova, voltamos para o “caso Carlos Cardoso”.
Como disse acima, este foi um processo político. O juiz Augusto Paulino, recorrendo a este princípio da livre apreciação da prova deu credibilidade ao testemunho do senhor Osvaldo Sérgio Razaque Muianga mais conhecido por Dudu, o homem das sete versões. Os advogados da defesa chamaram atenção ao juiz sobre a falta de idoneidade desta testemunha que, aliás, dizia ter participado das reuniões no Hotel Rovuma. Se o Dudu participou das reuniões não devia também ser arguido?
A gerência do Hotel Rovuma, local que se dizia ter acolhido as reuniões preparatórias do crime, informou sobre a inexistência dos quartos referidos como o epicentro das reuniões.
Recordo-me que na altura do julgamento do “caso do Carlos Cardoso”, eu tinha vinte e poucos anos de idade, não tinha nenhuma experiência sobre as leis moçambicanas mas durante os meus 13 anos e meio de cadeia, a cumprir uma pena de prisão injusta, tive a curiosidade de ler, estudar e interpretar o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Código Civil e o Código de Processo Civil.
Como sabem o curso de Direito em Moçambique é feito em apenas 4 anos de estudos mas eu com muito orgulho digo que estudei o Direito em 13 anos e meio e por isso, afirmo categoricamente que estou em condições de dar aulas a qualquer magistrado do País.
Muitos dizem que fiquei muito tempo na cadeia. Concordo que sim, de forma injusta cumpri muitos anos de cadeia mas este tempo me deu muita sabedoria e experiência.
Voltando ao “caso Carlos Cardoso”, devo dizer que a única testemunha que serviu de cavalo de batalha para a condenação foi o senhor Osvaldo Sérgio Razaque Muianga, também conhecido por Dudu “Anão”, apelidado pelos médias como o homem das sete versões sobre o mesmo facto.
De recordar que as primeiras declarações de Osvaldo Muianga foram feitas um dia antes da legalização da minha prisão. Isto quer dizer que quando fui preso e a minha prisão legalizada não havia nada, mas absolutamente nada no processo. A Polícia se precipitou na altura a ouvir o Osvaldo Muianga e este disse no seu depoimento que houve reuniões no Hotel Rovuma nos quartos 105 e 106.
Passados 45 dias recordo-me perfeitamente que o Dr. Domingos Arouca, advogado já falecido, teve um encontro comigo e com o meu falecido irmão Ayob Satar, num dos gabinetes da BO, e nessa reunião pedi ao Dr. Arouca para que quando saísse da cadeia fosse ao Hotel Rovuma confirmar da existência dos quartos 105 e 106. No mesmo dia, pelas 17 horas fiz uma chamada telefónica a partir da minha cela para o Dr. Arouca para obter respostas sobre a existência destes quartos e a resposta foi negativa. Não existem no Hotel Rovuma quartos com estes números.
Liguei para o Hotel Rovuma para ter a certeza de que de facto estes quartos não existiam e a resposta confirmou a minha investigação.
Na altura, o jornal Savana era dirigido pelos senhores Salomão Moyane e Lourenço Jossias. Falei com o senhor Miguel Bila, que era um dos receptores de publicidade na altura, e o é até hoje, na Mediacoop e disse que queria ocupar o espaço de publicidade da primeira página, como rodapé, e este me respondeu que o custo era de 7 mil meticais, porque se tratava de uma colocação especial. Recordo até que foi retirada a publicidade da lotaria para se incorporar a minha porque paguei a dobrar.
O senhor Miguel Bila contactou o senhor Salomão Moyane sobre o que é que eu pretendia na primeira página do jornal e eu respondi que queria o título “Caso Carlos Cardoso-Descobertas as Mentiras do Dudu, Quartos 105 e 106 não existem”. Recordo-me que na altura o jornal Savana fechava as 5as feiras e saía nas primeiras horas das 6as feiras e quando o meu texto foi entregue o jornal estava na hora do fecho.
Salomão Moyane perguntou ao Miguel Bila se era só isto o que eu queria e respondi que sim.
Depois da publicação, o Dr. Arouca nos visitou e aconselhou que estes trunfos da defesa não deviam ir para os jornais porque enfraqueceriam a estratégia, que deviam ser reservados para o dia do julgamento, mas eu disse que tinha que lutar desta forma porque sabia que o processo era político e que a todo o custo seria condenado. Expliquei ao Dr. Arouca que a minha estratégia de defesa tinha de consistir no uso da imprensa para deixar claro à opinião pública sobre a verdade dos factos e mostrar o que estava em jogo.
Quando o Dr. Arouca me questionou sobre porque razão entendia que o processo era político disse-lhe que tínhamos sido acusados por coisas sem cabimento. Que tinham tirado o processo das mãos do juiz Nhamtumbo que estava na Décima Secção há muitos anos, com larga experiência em matéria criminal, para entrega-lo ao juiz Paulino, novato nesta área. Aliás, expliquei também que o juiz Nhamtumbo quando foi tirado da secção já tinha aberto a instrução contraditória. A escolha do juiz Paulino tinha sido feita a dedo para com as suas decisões agradar o sistema. Este estava lá só para condenar mesmo não havendo provas.
O Dr. Domingos Arouca era um advogado muito reservado. Disse-me que veríamos no dia do julgamento, mas eu lhe retorqui, explicando que não precisávamos esperar até lá porque tudo estava claro, que a nossa única alternativa era usarmos a imprensa para colocar as peças processuais e mostrar ao povo que no processo Carlos Cardoso não havia nada.
Este trecho sobre as publicidades no jornal Savana e a conversa com o Dr. Arouca na BO, extraio do meu livro que está em preparação para a publicação.
Quando a Polícia e a Procuradoria viram que a mentira do Dudu tinha sido desmascarada articularam com o tribunal e foi dada instrução à Polícia pelo juiz Augusto Paulino para que o Osvaldo Muianga fosse ouvido em declarações, mas como não podia ser no processo do “caso Carlos Cardoso”, exactamente porque neste já tinha sido aberta instrução contraditória, criou-se um outro processo e as declarações prestadas neste foram incorporadas naquele. Só desta forma se podia concretizar o objectivo de, a todo o custo, conseguir-se alguma coisa para viabilizar-se o “caso Carlos Cardoso”, mas debalde porque a testemunha Dudu embrulhava-se sempre em contradições, como continuarei a demonstrar.
Nesta nova audição ele disse que as reuniões tinham sido nos quartos 301 e 302.
Como tinha amigos também na Polícia puseram-me ao corrente destas novas declarações do Dudu.
Voltei a pôr outra publicidade no jornal Savana, como rodapé, com o título “Descoberta mais uma mentira do Dudu. Os quartos 301 e 302 também não existem no Hotel Rovuma”.
Na altura eu escolhi o jornal Savana porque era o único jornal privado e com impacto na sociedade e por isso de leitura obrigatória. Os jornais Notícias e Domingo eram políticos, estando do outro lado.
A Polícia e a Procuradoria foram novamente ouvir o Dudu. Estavam encurraladas com esta sua testemunha-chave mas sem idoneidade e credibilidade. A testemunha mudou novamente de versão. Disse que as reuniões foram em cima do bar. Voltei a escrever para o Savana “Descoberta mais uma mentira do Dudu- Em cima do Bar não existem quartos mas sim escritórios”.
A Polícia e a Procuradoria voltaram a ouvir o Dudu. Eram tão burros que ao invés de reprovar esta testemunha por falta de idoneidade tinham de insistir para mostrar serviço e agradar as elites. Desta vez o Osvaldo Muianga respondeu que não se recordava dos números dos quartos mas estes não tinham cortinas nem televisores, tinham apenas persianas.
Na instrução contraditória do processo o director-geral do Hotel Rovuma desmentiu esta última versão do Dudu tendo esclarecido que todos os quartos do Hotel Rovuma têm cortinas e televisores.
O Dudu em todo o processo apresentou sete versões diferentes sobre os mesmos factos.
Como acima disse o Dudu apresentou sete versões sobre os mesmos factos e o juiz Augusto Paulino, citando um caso de jurisprudência de Portugal, num processo de acidente estradal, de 5 de Junho de 1957, acabou dando credibilidade ao depoimento desta testemunha, o Dudu. O juiz Augusto Paulino seguindo orientações políticas foi ao extremo ridículo de comparar um processo de acidente estradal com um processo de homicídio.
O processo de homicídio é um processo grave que não permite nem pode permitir condenações sem provas robustas ou com provas duvidosas. Nestes processos quando há dúvida os réus são absolvidos.
Nos processos de acidentes estradais a lei permite que em caso de dúvida o juiz reparta a culpa pelos condutores envolvidos no sinistro. Nos processos de homicídio isto seria uma aberração jurídica.
Muitos juízes na sua fundamentação das sentenças, citam acórdãos do Tribunal Supremo para conferir persuasão e credibilidade à sua argumentação e por esta via conferir a força necessária às decisões.
Como acima disse, o juiz Paulino na sua sentença recorreu ao exemplo de um acórdão respeitante a um processo de Polícia Correccional de acidente estradal. Na altura como eu era leigo em matéria de direito, não tive a percepção que tenho hoje. Mas por isto culpo muito aos advogados da defesa até hoje porque cabia a estes estudarem o acórdão citado. Na verdade, os advogados quando recorrem das decisões judiciais deviam estudar devidamente os acórdãos, a jurisprudência no geral e a doutrina citada pelos juízes nas suas sentenças com vista a fundamentarem devidamente as suas alegações de recurso. Não faz sentido que o juiz Paulino tenha seguido um processo de Polícia Correccional para me condenar. Todos sabem, desde os meus seguidores, fãs, advogados, procuradores, que para haver condenação num processo de homicídio qualificado deve haver provas robustas. Um juiz não pode condenar nenhum cidadão baseando-se apenas em depoimentos de pessoas sem credibilidade nenhuma.
A nova geração tem uma imagem ligeira do processo Carlos Cardoso. Lembra-se vagamente de ver réus com roupa preta a serem julgados e condenados. Mas a geração um pouco antiga, que esteve mais atenta ao julgamento, sabe perfeitamente que aquele foi um julgamento político:
1o- O juiz Paulino nunca devia ter aceite julgamento com transmissão em directo pela televisão. Em nenhum Estado de direito se faz isto. Isto viola o Princípio Constitucional de Presunção de Inocência e adultera a produção da prova testemunhal porque a testemunha que ainda não foi ouvida fica a saber o que as outras, que já foram ouvidas, disseram.
Um juiz nunca pode ceder a pressão da imprensa por mais forte que seja para transmissões em directo de julgamentos.
Nos países onde a justiça funciona os réus nunca são fotografados. As televisões quando difundem informações sobre os réus usam caricaturas.
Mas o juiz Paulino escolheu violar o Princípio de Presunção da Inocência.
2o O juiz Paulino obrigou os réus a se apresentarem na sala de julgamentos com o uniforme prisional, num claro acto de convencer a opinião pública de que os réus, mesmo antes da sentença condenatória, eram criminosos.
3o O julgamento foi feito no recinto prisional e das celas até o local do julgamento eram cerca de 50 metros, mas o juiz Paulino obrigou que os réus saíssem das celas algemados e entrassem na tenda do julgamento ainda algemados, com a imprensa a fazer filmagens.
Algemar um réu dentro do recinto prisional só para mostrar que é um criminoso? O objectivo do juiz era claro: preparar a opinião pública para não se surpreender com a condenação. As imagens difundidas aterrorizaram qualquer cidadão. Por isso, chamar nomes feios a este juiz é pouco. Se eu fosse assassino como ele decretou na sua sentença já me teria vingado mas como não sou deixo isto nas mãos de Deus. Aprendi desde criança que mesmo que perdoemos a justiça divina será feita.
A testemunha Dudu dada a sua falta de idoneidade não devia sequer ter sido admitida a depor como testemunha.
O mais engraçado de todo este triste processo, com o cenário das sete versões do Dudu, é que este disse claramente que as tais reuniões do Hotel Rovuma eram sobre o assunto de Albano Silva mas como havia interesse de agradar a Noruega, pátria amada da viúva de Carlos Cardoso, e porque este país havia cortado ajuda financeira a Moçambique, e também porque interessava se pôr de lado o verdadeiro mandante, Nyimpine Chissano havia necessidade de a todo o custo condenar pessoas inocentes.
Repare-se que ao longo de todo o julgamento do processo Carlos Cardoso nenhum réu, declarante, ou quem quer que seja, apontou a mim Nini Satar, como mandante da execução deste crime.
Muitas pessoas perguntam por que razão me escolheram a mim Nini Satar para ser condenado. Explico-me: para haver um crime deve haver um móbil. O Paulino foi buscar o “caso BCM” que se deu em 1996 para criar o tal móbil com vista a implicar-me no assassinato do jornalista Carlos Cardoso. Repare-se que o crime contra este jornalista foi em Novembro de 2000. Numa situação em que o “caso BCM” já tinha sido investigado e acusado provisoriamente. Este caso foi acusado em 1999 tanto pelo MP como pelo assistente particular e toda a imprensa já tinha esgotado os comentários sobre o mesmo caso. Por isso nada de novo podia ser investigado ou dito. Na verdade o “caso BCM” nada, mas absolutamente nada, tem a ver com o “caso Carlos Cardoso”.
De recordar que Nyimpine Chissano quando foi ouvido como declarante no “caso Carlos Cardoso”, disse alto e em bom som que os artigos deste jornalista afectavam e incomodavam a ele e a toda a sua família. Carlos Cardoso escreveu dezenas de artigos associando o nome do Nyimpine Chissano ao caso Banco Austral. Foi na verdade o primeiro jornalista a publicar artigos no seu jornal sobre o “caso Banco Austral”, no qual Nyimpine Chissano era consultor económico do PCA.
O rombo do Banco Austral despoletou em Junho de 2000 e eu Nini Satar nunca tive nada a ver com este banco. Só que os meus conterrâneos moçambicanos têm preguiça, infelizmente, de ler e compreender um artigo do princípio ao fim. Param na introdução, caindo no ridículo de confundir o “caso Banco Austral” com o “caso BCM”.
Carlos Cardoso , juntamente com Marcelo Mosse, entre Maio a Junho de 2000, tinham plano de produzir artigos citando nomes de várias pessoas da elite política que se beneficiaram dos valores do Banco Austral. Carlos Cardoso foi a primeira pessoa a alertar Adriano Maleiane de que havia rombo no Banco Austral.
O plano de assassinato de Carlos Cardoso foi desenhado em Junho de 2000, conforme depoimento do atirador confesso. Mas neste mês Carlos Cardoso tinha viajado para o exterior, provavelmente para a Noruega, e quando regressou, meses depois foi assassinado.
O problema que referi acima de os moçambicanos pararem as suas leituras nas primeiras linhas dos artigos levam a conclusões erradas e precipitadas de se associar o “caso Carlos Cardoso” com o BCM já que quando se fala do móbil do assassinato menciona-se um banco mas esse banco é o Austral e não o BCM.
Mas como havia necessidade de condenar a todo o custo, o juiz Augusto Paulino recorreu ao princípio da livre Apreciação da prova para deturpa-lo e conseguir a condenação. E esta injustiça lhe valeu subida rápida na profissão. Logo depois foi promovido a juiz-presidente do Tribunal Judicial da Província de Maputo e de seguida a juiz-presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo e por fim ascendeu a Procurador-Geral da República, dentro daquela linguagem dos camaradas “este é um dos nossos, podemos confiar nele”.
Um abraço...
Nini Satar
O princípio jurídico da livre apreciação da prova
Recuando para os anos de 2002 e 2003, quando foi do julgamento do “caso Carlos Cardoso”, o juiz Augusto Paulino, tomou como base para a condenação dos réus o princípio da livre Apreciação da prova.
Foi tão somente com base neste princípio que este juiz condenou todos os réus do caso Carlos Cardoso. O Juiz não se baseou em nenhuma prova robusta e inquestionável. Isso só surpreendeu os menos atentos pois todos os outros sabem que este processo foi político, tinha o objectivo de agradar certas elites.
Por isso, nunca me cansarei de discutir e analisar este processo para que as gerações vindouras saibam o que é que se passou.
Mas antes de aprofundar as minhas questões em relação ao uso deste princípio da livre apreciação da prova pelo juiz Augusto Paulino, no “caso Carlos Cardoso”, vou explicar o significado deste princípio para facilitar o trabalho de análise e compreensão do meu pensamento.
O princípio da livre apreciação da prova pressupõe em primeiro lugar que existem provas. O juiz só pode ter a liberdade de apreciar algo que existe. Este é o ponto de partida. Se não há provas no processo não se pode falar da liberdade da sua apreciação.
Existindo prova no processo, o princípio da sua livre apreciação significa que o juiz tem a faculdade de valorar estas provas de forma livre, considerando a sua experiência da vida em sociedade e a sua própria convicção. Mas esta valoração da prova deve ser racional, objectiva e crítica. Deve atender as regras gerais da lógica e da experiência, ou seja, os critérios que devem orientar o juiz na busca da verdade material devem ser objectivos. Devem ser perceptíveis por todos.
Este princípio não significa que o juiz deve julgar os factos como quiser, sem nenhuma prova ou contra as provas produzidas. O juiz deve se orientar em primeiro lugar pelo princípio da busca da verdade material.
O princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido com a apreciação arbitrária da prova.
O Artigo 655 do código de processo civil, ao estabelecer que “O Tribunal Colectivo aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado”, consagra este princípio no nosso ordenamento jurídico. E a interpretação correcta deste principio é de que o juiz tem o poder de apreciar livremente a prova que lhe é apresentada em juízo sem ter que, em princípio-vide no 2 deste artigo-, se submeter a quaisquer regras que ditem o valor probatório de alguns meios de prova.
O poder da liberdade da apreciação da prova conferido ao juiz, apesar de apelar a experiência, implica acima de tudo fundamentação. É esta fundamentação que confere legitimidade democrática às decisões judiciais.
O juiz dos tempos modernos deve ter preparação suficiente para não se deixar influenciar pelo desejo público de condenação em certos processos mediáticos. O juiz só deve condenar com suporte probatório não com base no seu livre arbítrio. A sua liberdade de apreciação da prova deve sempre corresponder a um suporte probatório.
E todos sabemos que no direito penal vigora o princípio de “in dúbio pro réu”, que significa que em face da prova alcançada, na dúvida, deve decidir-se à favor do réu.
Dadas estas explicações sobre o principio da livre apreciação da prova, voltamos para o “caso Carlos Cardoso”.
Como disse acima, este foi um processo político. O juiz Augusto Paulino, recorrendo a este princípio da livre apreciação da prova deu credibilidade ao testemunho do senhor Osvaldo Sérgio Razaque Muianga mais conhecido por Dudu, o homem das sete versões. Os advogados da defesa chamaram atenção ao juiz sobre a falta de idoneidade desta testemunha que, aliás, dizia ter participado das reuniões no Hotel Rovuma. Se o Dudu participou das reuniões não devia também ser arguido?
A gerência do Hotel Rovuma, local que se dizia ter acolhido as reuniões preparatórias do crime, informou sobre a inexistência dos quartos referidos como o epicentro das reuniões.
Recordo-me que na altura do julgamento do “caso do Carlos Cardoso”, eu tinha vinte e poucos anos de idade, não tinha nenhuma experiência sobre as leis moçambicanas mas durante os meus 13 anos e meio de cadeia, a cumprir uma pena de prisão injusta, tive a curiosidade de ler, estudar e interpretar o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Código Civil e o Código de Processo Civil.
Como sabem o curso de Direito em Moçambique é feito em apenas 4 anos de estudos mas eu com muito orgulho digo que estudei o Direito em 13 anos e meio e por isso, afirmo categoricamente que estou em condições de dar aulas a qualquer magistrado do País.
Muitos dizem que fiquei muito tempo na cadeia. Concordo que sim, de forma injusta cumpri muitos anos de cadeia mas este tempo me deu muita sabedoria e experiência.
Voltando ao “caso Carlos Cardoso”, devo dizer que a única testemunha que serviu de cavalo de batalha para a condenação foi o senhor Osvaldo Sérgio Razaque Muianga, também conhecido por Dudu “Anão”, apelidado pelos médias como o homem das sete versões sobre o mesmo facto.
De recordar que as primeiras declarações de Osvaldo Muianga foram feitas um dia antes da legalização da minha prisão. Isto quer dizer que quando fui preso e a minha prisão legalizada não havia nada, mas absolutamente nada no processo. A Polícia se precipitou na altura a ouvir o Osvaldo Muianga e este disse no seu depoimento que houve reuniões no Hotel Rovuma nos quartos 105 e 106.
Passados 45 dias recordo-me perfeitamente que o Dr. Domingos Arouca, advogado já falecido, teve um encontro comigo e com o meu falecido irmão Ayob Satar, num dos gabinetes da BO, e nessa reunião pedi ao Dr. Arouca para que quando saísse da cadeia fosse ao Hotel Rovuma confirmar da existência dos quartos 105 e 106. No mesmo dia, pelas 17 horas fiz uma chamada telefónica a partir da minha cela para o Dr. Arouca para obter respostas sobre a existência destes quartos e a resposta foi negativa. Não existem no Hotel Rovuma quartos com estes números.
Liguei para o Hotel Rovuma para ter a certeza de que de facto estes quartos não existiam e a resposta confirmou a minha investigação.
Na altura, o jornal Savana era dirigido pelos senhores Salomão Moyane e Lourenço Jossias. Falei com o senhor Miguel Bila, que era um dos receptores de publicidade na altura, e o é até hoje, na Mediacoop e disse que queria ocupar o espaço de publicidade da primeira página, como rodapé, e este me respondeu que o custo era de 7 mil meticais, porque se tratava de uma colocação especial. Recordo até que foi retirada a publicidade da lotaria para se incorporar a minha porque paguei a dobrar.
O senhor Miguel Bila contactou o senhor Salomão Moyane sobre o que é que eu pretendia na primeira página do jornal e eu respondi que queria o título “Caso Carlos Cardoso-Descobertas as Mentiras do Dudu, Quartos 105 e 106 não existem”. Recordo-me que na altura o jornal Savana fechava as 5as feiras e saía nas primeiras horas das 6as feiras e quando o meu texto foi entregue o jornal estava na hora do fecho.
Salomão Moyane perguntou ao Miguel Bila se era só isto o que eu queria e respondi que sim.
Depois da publicação, o Dr. Arouca nos visitou e aconselhou que estes trunfos da defesa não deviam ir para os jornais porque enfraqueceriam a estratégia, que deviam ser reservados para o dia do julgamento, mas eu disse que tinha que lutar desta forma porque sabia que o processo era político e que a todo o custo seria condenado. Expliquei ao Dr. Arouca que a minha estratégia de defesa tinha de consistir no uso da imprensa para deixar claro à opinião pública sobre a verdade dos factos e mostrar o que estava em jogo.
Quando o Dr. Arouca me questionou sobre porque razão entendia que o processo era político disse-lhe que tínhamos sido acusados por coisas sem cabimento. Que tinham tirado o processo das mãos do juiz Nhamtumbo que estava na Décima Secção há muitos anos, com larga experiência em matéria criminal, para entrega-lo ao juiz Paulino, novato nesta área. Aliás, expliquei também que o juiz Nhamtumbo quando foi tirado da secção já tinha aberto a instrução contraditória. A escolha do juiz Paulino tinha sido feita a dedo para com as suas decisões agradar o sistema. Este estava lá só para condenar mesmo não havendo provas.
O Dr. Domingos Arouca era um advogado muito reservado. Disse-me que veríamos no dia do julgamento, mas eu lhe retorqui, explicando que não precisávamos esperar até lá porque tudo estava claro, que a nossa única alternativa era usarmos a imprensa para colocar as peças processuais e mostrar ao povo que no processo Carlos Cardoso não havia nada.
Este trecho sobre as publicidades no jornal Savana e a conversa com o Dr. Arouca na BO, extraio do meu livro que está em preparação para a publicação.
Quando a Polícia e a Procuradoria viram que a mentira do Dudu tinha sido desmascarada articularam com o tribunal e foi dada instrução à Polícia pelo juiz Augusto Paulino para que o Osvaldo Muianga fosse ouvido em declarações, mas como não podia ser no processo do “caso Carlos Cardoso”, exactamente porque neste já tinha sido aberta instrução contraditória, criou-se um outro processo e as declarações prestadas neste foram incorporadas naquele. Só desta forma se podia concretizar o objectivo de, a todo o custo, conseguir-se alguma coisa para viabilizar-se o “caso Carlos Cardoso”, mas debalde porque a testemunha Dudu embrulhava-se sempre em contradições, como continuarei a demonstrar.
Nesta nova audição ele disse que as reuniões tinham sido nos quartos 301 e 302.
Como tinha amigos também na Polícia puseram-me ao corrente destas novas declarações do Dudu.
Voltei a pôr outra publicidade no jornal Savana, como rodapé, com o título “Descoberta mais uma mentira do Dudu. Os quartos 301 e 302 também não existem no Hotel Rovuma”.
Na altura eu escolhi o jornal Savana porque era o único jornal privado e com impacto na sociedade e por isso de leitura obrigatória. Os jornais Notícias e Domingo eram políticos, estando do outro lado.
A Polícia e a Procuradoria foram novamente ouvir o Dudu. Estavam encurraladas com esta sua testemunha-chave mas sem idoneidade e credibilidade. A testemunha mudou novamente de versão. Disse que as reuniões foram em cima do bar. Voltei a escrever para o Savana “Descoberta mais uma mentira do Dudu- Em cima do Bar não existem quartos mas sim escritórios”.
A Polícia e a Procuradoria voltaram a ouvir o Dudu. Eram tão burros que ao invés de reprovar esta testemunha por falta de idoneidade tinham de insistir para mostrar serviço e agradar as elites. Desta vez o Osvaldo Muianga respondeu que não se recordava dos números dos quartos mas estes não tinham cortinas nem televisores, tinham apenas persianas.
Na instrução contraditória do processo o director-geral do Hotel Rovuma desmentiu esta última versão do Dudu tendo esclarecido que todos os quartos do Hotel Rovuma têm cortinas e televisores.
O Dudu em todo o processo apresentou sete versões diferentes sobre os mesmos factos.
Como acima disse o Dudu apresentou sete versões sobre os mesmos factos e o juiz Augusto Paulino, citando um caso de jurisprudência de Portugal, num processo de acidente estradal, de 5 de Junho de 1957, acabou dando credibilidade ao depoimento desta testemunha, o Dudu. O juiz Augusto Paulino seguindo orientações políticas foi ao extremo ridículo de comparar um processo de acidente estradal com um processo de homicídio.
O processo de homicídio é um processo grave que não permite nem pode permitir condenações sem provas robustas ou com provas duvidosas. Nestes processos quando há dúvida os réus são absolvidos.
Nos processos de acidentes estradais a lei permite que em caso de dúvida o juiz reparta a culpa pelos condutores envolvidos no sinistro. Nos processos de homicídio isto seria uma aberração jurídica.
Muitos juízes na sua fundamentação das sentenças, citam acórdãos do Tribunal Supremo para conferir persuasão e credibilidade à sua argumentação e por esta via conferir a força necessária às decisões.
Como acima disse, o juiz Paulino na sua sentença recorreu ao exemplo de um acórdão respeitante a um processo de Polícia Correccional de acidente estradal. Na altura como eu era leigo em matéria de direito, não tive a percepção que tenho hoje. Mas por isto culpo muito aos advogados da defesa até hoje porque cabia a estes estudarem o acórdão citado. Na verdade, os advogados quando recorrem das decisões judiciais deviam estudar devidamente os acórdãos, a jurisprudência no geral e a doutrina citada pelos juízes nas suas sentenças com vista a fundamentarem devidamente as suas alegações de recurso. Não faz sentido que o juiz Paulino tenha seguido um processo de Polícia Correccional para me condenar. Todos sabem, desde os meus seguidores, fãs, advogados, procuradores, que para haver condenação num processo de homicídio qualificado deve haver provas robustas. Um juiz não pode condenar nenhum cidadão baseando-se apenas em depoimentos de pessoas sem credibilidade nenhuma.
A nova geração tem uma imagem ligeira do processo Carlos Cardoso. Lembra-se vagamente de ver réus com roupa preta a serem julgados e condenados. Mas a geração um pouco antiga, que esteve mais atenta ao julgamento, sabe perfeitamente que aquele foi um julgamento político:
1o- O juiz Paulino nunca devia ter aceite julgamento com transmissão em directo pela televisão. Em nenhum Estado de direito se faz isto. Isto viola o Princípio Constitucional de Presunção de Inocência e adultera a produção da prova testemunhal porque a testemunha que ainda não foi ouvida fica a saber o que as outras, que já foram ouvidas, disseram.
Um juiz nunca pode ceder a pressão da imprensa por mais forte que seja para transmissões em directo de julgamentos.
Nos países onde a justiça funciona os réus nunca são fotografados. As televisões quando difundem informações sobre os réus usam caricaturas.
Mas o juiz Paulino escolheu violar o Princípio de Presunção da Inocência.
2o O juiz Paulino obrigou os réus a se apresentarem na sala de julgamentos com o uniforme prisional, num claro acto de convencer a opinião pública de que os réus, mesmo antes da sentença condenatória, eram criminosos.
3o O julgamento foi feito no recinto prisional e das celas até o local do julgamento eram cerca de 50 metros, mas o juiz Paulino obrigou que os réus saíssem das celas algemados e entrassem na tenda do julgamento ainda algemados, com a imprensa a fazer filmagens.
Algemar um réu dentro do recinto prisional só para mostrar que é um criminoso? O objectivo do juiz era claro: preparar a opinião pública para não se surpreender com a condenação. As imagens difundidas aterrorizaram qualquer cidadão. Por isso, chamar nomes feios a este juiz é pouco. Se eu fosse assassino como ele decretou na sua sentença já me teria vingado mas como não sou deixo isto nas mãos de Deus. Aprendi desde criança que mesmo que perdoemos a justiça divina será feita.
A testemunha Dudu dada a sua falta de idoneidade não devia sequer ter sido admitida a depor como testemunha.
O mais engraçado de todo este triste processo, com o cenário das sete versões do Dudu, é que este disse claramente que as tais reuniões do Hotel Rovuma eram sobre o assunto de Albano Silva mas como havia interesse de agradar a Noruega, pátria amada da viúva de Carlos Cardoso, e porque este país havia cortado ajuda financeira a Moçambique, e também porque interessava se pôr de lado o verdadeiro mandante, Nyimpine Chissano havia necessidade de a todo o custo condenar pessoas inocentes.
Repare-se que ao longo de todo o julgamento do processo Carlos Cardoso nenhum réu, declarante, ou quem quer que seja, apontou a mim Nini Satar, como mandante da execução deste crime.
Muitas pessoas perguntam por que razão me escolheram a mim Nini Satar para ser condenado. Explico-me: para haver um crime deve haver um móbil. O Paulino foi buscar o “caso BCM” que se deu em 1996 para criar o tal móbil com vista a implicar-me no assassinato do jornalista Carlos Cardoso. Repare-se que o crime contra este jornalista foi em Novembro de 2000. Numa situação em que o “caso BCM” já tinha sido investigado e acusado provisoriamente. Este caso foi acusado em 1999 tanto pelo MP como pelo assistente particular e toda a imprensa já tinha esgotado os comentários sobre o mesmo caso. Por isso nada de novo podia ser investigado ou dito. Na verdade o “caso BCM” nada, mas absolutamente nada, tem a ver com o “caso Carlos Cardoso”.
De recordar que Nyimpine Chissano quando foi ouvido como declarante no “caso Carlos Cardoso”, disse alto e em bom som que os artigos deste jornalista afectavam e incomodavam a ele e a toda a sua família. Carlos Cardoso escreveu dezenas de artigos associando o nome do Nyimpine Chissano ao caso Banco Austral. Foi na verdade o primeiro jornalista a publicar artigos no seu jornal sobre o “caso Banco Austral”, no qual Nyimpine Chissano era consultor económico do PCA.
O rombo do Banco Austral despoletou em Junho de 2000 e eu Nini Satar nunca tive nada a ver com este banco. Só que os meus conterrâneos moçambicanos têm preguiça, infelizmente, de ler e compreender um artigo do princípio ao fim. Param na introdução, caindo no ridículo de confundir o “caso Banco Austral” com o “caso BCM”.
Carlos Cardoso , juntamente com Marcelo Mosse, entre Maio a Junho de 2000, tinham plano de produzir artigos citando nomes de várias pessoas da elite política que se beneficiaram dos valores do Banco Austral. Carlos Cardoso foi a primeira pessoa a alertar Adriano Maleiane de que havia rombo no Banco Austral.
O plano de assassinato de Carlos Cardoso foi desenhado em Junho de 2000, conforme depoimento do atirador confesso. Mas neste mês Carlos Cardoso tinha viajado para o exterior, provavelmente para a Noruega, e quando regressou, meses depois foi assassinado.
O problema que referi acima de os moçambicanos pararem as suas leituras nas primeiras linhas dos artigos levam a conclusões erradas e precipitadas de se associar o “caso Carlos Cardoso” com o BCM já que quando se fala do móbil do assassinato menciona-se um banco mas esse banco é o Austral e não o BCM.
Mas como havia necessidade de condenar a todo o custo, o juiz Augusto Paulino recorreu ao princípio da livre Apreciação da prova para deturpa-lo e conseguir a condenação. E esta injustiça lhe valeu subida rápida na profissão. Logo depois foi promovido a juiz-presidente do Tribunal Judicial da Província de Maputo e de seguida a juiz-presidente do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo e por fim ascendeu a Procurador-Geral da República, dentro daquela linguagem dos camaradas “este é um dos nossos, podemos confiar nele”.
Um abraço...
Nini Satar
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