segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Julgamento


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XIPKIRI
Silêncio brusco. As dezenas de cabeças rodaram como se um íman atraísse os olhares, as atenções, as curiosidades. Era o réu a chegar. Vinha com uma cara sem expressão. O andar desengoçava pelo óbvio peso da culpa. As pálpebras intermitentes, inquietas pisca-piscas de nervosismo. O olhar, que parecia acorrentado a uma esfera, arrastava-se pelo chão, não conseguia encarar os presentes. Parou, à espera que lhe indicassem o lugar. Manteve-se de pé, fustigado por olhares acusadores, duvidosos, sentenciosos.
“É culpado, onde já se viu”. “Mas, coitado, nem foi assim tão grave”. As discussões ressuscitaram. Primeiro em tom de sussurro, e o volume foi crescendo até parecer um bazar. Estavam à sombra de uma árvore frondosa, daquelas que ninguém sabe a idade. Era um canhoeiro, ainda carregado do que restou da safra do ucanhu. Havia esteiras para a plateia.  
Ela chegou, sem pompa. Desta vez ninguém se calou, pelo contrário, agitaram-se. “Está a fingir”. “Coitada é vítima”. Arrastava-se como se o vento a escoltasse, embrulhada em capulanas até aos ombros, ao jeito teatral das viúvas. A cabeça inclinada quase até ao ombro. Cabisbaixa. Duas mulheres mais velhas acompanhavam-na, segurando como se a estrutura frágil do corpo fosse desabar. A alma, via-se, há muito que desmoronara.
Ao mesmo tempo chegava, escoltado pela comunidade masculina solidária, o marido, queixoso, a uma distância de não emprestar confianças à mulher, co-ré, embora se percebesse que tivessem vindo juntos. De cara fechada e passo zangado,  furou a multidão, rasgou a clareira até uma coisa que lhe foi servido para se sentar.
Por fim, chegaram os mais velhos, de barbas encardidas pelo escesso de brancura e o corpo encurvado pelo peso da sabedoria. Sentaram-se de costas para o canhoeiro, voltados para o público. Conferenciaram entre si, em tom de último acerto. O mais velho dos velhos bateu o chão com a bengala como se martelasse a atenção das pessoas. Fez-se silêncio. Tossiu escarro de décadas, evocando o pouco de voz que lhe sobrava da rouquidão.
Os réus gaguejaram para confirmar e explicar o adultério. Ele dizia, a rebuscar lembrancas na ramagem da árvore, que estava bêbado. Que foi na sessão de ucanhu, gole aqui, riso ali e um pé de dança acolá, era tudo de que se recordava. Ela jurava que tinha sido um espírito. A cada gole que lhe subia, sentia algo, demoníaco, a descer e aquecer-lhe as pernas. Por isso, dançara mais do que a capulana.
O público duvidava, queria mais novela. Os anciãos acariciavam as barbas pardas de muito pensar. O queixoso, carrancudo, a sentir-se réu sob os olhares arrasadores. O velho bateu o cajado no chão, ao jeito martelador dos juízes, e proferiu a sentença: a maior culpa é da bebida, o ucanhu, que aquece descontroladamente os órgãos. Mas o réu terá de compensar ao ofendido com muitas cabeças de gado. A ré carregará a mácula de adúltera para o resto dos dias. Foi nesse dia que se determinou a conhecida regra: nas sessões de ucanhu os homens bebem de um lado e as mulheres vão para outro. Não devem beber juntos! Mas esqueceram-se de que o caminho para a latrina é o mesmo”, alguém comentou.

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