domingo, 5 de fevereiro de 2017

Ignorantia

Elisio Macamo
1/2 às 22:42 ·


Ganhei gosto. Se calhar é melhor mesmo concentrar a minha atenção em questões académicas do que em questões políticas. Fiquei agradavelmente surpreendido com as reacções ao post sobre a “sapiência”. Isso deu-me vontade de aprofundar o assunto virando o foco para os docentes. Não sei porque razão as aulas de sapiência são apenas dirigidas aos estudantes. Deviam também ser dirigidas aos docentes, pois eles, mais do que ninguém, são as pessoas que maior benefício podem tirar disso. Os bons entre eles orientam-se pela máxima de Sócrates, segundo a qual só sabem que nada sabem, ou, para dizer as coisas como elas foram ditas pelo grande historiador maliano, Hampaté Bâ, “se tu sabes que não sabes, vais saber”. A condição de falta de conhecimento é a que melhor define o docente, logo, ser capaz de transmitir esta condição aos seus discípulos devia ser a sua maior aposta
.
Neste aspecto, tenho algumas reticências se os nossos docentes universitários, muitos dos quais são excelentes académicos nas suas áreas respectivas, têm cumprido com este papel. Ao dizer isto apresso-me a acrescentar que o facto de eu constatar o problema não significa que eu o tenha sanado ao meu nível. Os erros são mais fáceis de constatar quando são cometidos pelos outros. Pode parecer, à primeira, estranho dizer que a função do docente é de ensinar ao estudante a saber aquilo que não sabe. É estranho porque assenta num paradoxo, mais directamente, no paradoxo da ignorância que consiste no seguinte: para saber aquilo que não sei preciso de saber muito! É esse o sentido em que Sócrates deve ser entendido. Um indivíduo que sabe que nada sabe é um indivíduo que sabe muito. Só quem detém conhecimento é que é capaz de saber aquilo que não sabe. O Ricardo Santos chamou a minha atenção para este problema com o seu comentário ao meu texto sobre a sapiência quando escreveu “[E]ssa tua sapiência conforta os que julgam que ainda não sabem tudo”. Preferia, naturalmente, que fosse a minha ignorância a dar esse conforto...

A minha experiência de docência não vem de cursos de pedagogia e didáctica. Vem de prestar atenção a este paradoxo. Respondo a ele procurando assentar a actividade de docência na transmissão de factos, ideias e habilidades. Todo o conhecimento tem uma base factual. Nas ciências sociais essa base é feita dos pais e mães das disciplinas, daquilo que eles disseram e escreveram e das coisas que eles dão por adquirido na descrição do mundo social. O objectivo, porém, não é fazer com que os estudantes decorem estes factos. É que eles tenham consciência deles para que a partir das ideias que eu vou lhes transmitir eles possam ver como esses factos foram construídos de modo a que eles também sejam capazes de construir os seus próprios factos. As habilidades que eu lhes transmito têm como desiderato o aperfeiçoamento dessa capacidade de construir os seus próprios factos. Não tenho sido consequente nisto, mas é sobre esta tríade que assenta o meu entendimento de docência.

Em Moz não é fácil corresponder a este ideal. Vejo três grandes obstáculos e sei que vou ser polémico e, talvez até, algo pretensioso. O primeiro obstáculo consiste na tendência de brandir o título académico, o que faz com que a relação entre o académico e o público (incluindo os estudantes) seja uma relação hostil. Tenho notado uma certa tendência de colegas em provar mais uma vez que merecem o título que têm, o que faz com que muitas vezes sejam demasiado pedantescos e recorram a argumentos de autoridade na forma como lidam com os seus estudantes ou no debate público. Isto tem criado situações em que a docência perde o seu sentido original e passa a ser uma confrontação entre um docente inseguro de si próprio e estudantes intimidados que também aprendem a usar o título académico como arma de arremesso. Ao invés de se usar a sala de aulas ou o exame como uma oportunidade para saber aquilo que o estudante sabe, não o que não sabe, usa-se essas ocasiões como oportunidade para mostrar ao estudante aquilo que o docente sabe. A relação aqui é inversa. O docente sabe que nada sabe, mas na sua relação com o estudante ele deve procurar saber o que este sabe para poder determinar aquilo que o mesmo estudante não sabe. Muitos colegas têm dificuldades com isto, razão pela qual o ideal de docência para alguns consiste em “chumbar” o maior número possível de estudantes. Aí sim, é que se é docente de verdade!

Não fiz nenhum estudo, claro. Mas é fácil formar esta ideia da qualidade da docência entre nós vendo o comportamento de estudantes ou de pessoas já formadas na esfera pública. É como observar o comportamento das crianças para ter uma ideia de como os pais são. Aqui no Facebook não é incomum “discutir” com pessoas convencidas daquilo que sabem, mesmo quando é evidente que leram pouco, não perceberam o que leram, não cruzaram as fontes, mas insistem na razão apenas por receio de admitirem que o seu conhecimento sobre uma determinada matéria seja insuficiente. Têm medo que essa admissão ponha em causa a sua formação talvez por saberem que essa admissão, nos bancos da universidade, tenha sido usada pelos docentes para os humilharem. Tenho, por vezes, também discutido com alguns docentes e vejo a mesma postura académica. Esta incapacidade em ver o debate como oportunidade para melhorar, não apenas defender, uma opinião por medo que alguém diga que você não merece o diploma que tem constitui o segundo obstáculo.

O terceiro é a confusão entre neutralidade e objectividade, algo que vem lá dos tempos gloriosos da revolução com a ideia imbecil segundo a qual a objectividade seria um truque burguês para esconder relações de poder. Isto cria duas reacções problemáticas. Uma consiste em esperar que os pronunciamentos dum académico só sejam dignos de atenção se não favorecerem alguma posição política. Tenho sofrido com isto porque tem sido nesta base que algumas pessoas se furtam à reflexão séria quando em discussão comigo por eu, em alguns assuntos, defender posições que favorecem um determinado lado político. Alguns até põem em causa a qualidade da minha formação com base nisso. Viro excelente académico quando digo algo em sintonia com as suas inclinações políticas, e mau académico quando esse não é o caso. A segunda reacção é igualmente problemática. Consiste em mandar a objectividade às favas e impor o alinhamento político como critério de validação do conhecimento. Não gostar de Guebuza ou das suas políticas virou, em alguns círculos político-académicos, garantia de conhecimento correcto, tipo aquelas garantias que ele deu sem consultar o parlamento. Dizer “aquele gosta de Guebuza” é outra maneira de dizer “aquele não sabe nada”. O mesmo vale para Dhlakama.

Os docentes são uma peça fundamental na formação dos nossos estudantes. Esse papel não vem do que eles sabem. Vem do que eles não sabem. Transformar a sala de aulas num lugar onde o ensino gira em torno disto é, pelo menos para mim, uma das maiores contribuições que os docentes podem fazer na formação das novas gerações de académicos. Para assumir esse papel eles próprios vão ter que interiorizar que são e sempre serão estudantes.

Comentários

Xavier Jorge Uamba Uff. Mais uma aula de sapiência mais já virada para os docentes. Entretanto aqui não houve batota as duas partes se beneficiaram das aulas de sapiência neste caso ontem foi para estudantes e hoje temos outra para docentes. Essas duas aulas devem chegar aos estudantes assim como aos docentes. Bem haja professor Macamo.
Gosto · Responder · 1 · 1/2 às 23:21

Reginaldo Mutemba Yes, Dr., transitaram para o nosso sistema de educação, muitas dicotomias que não deveriam. A percepção generalizada de que docente é aquele que sabe e estudante é aquele que não sabe, daí detêm mais poder intelectual que os estudantes. Que são coitados em relação ao sábio docente, que deve vomitar todo o stock de conhecimento que detêm. Parece-me que a herança colonial de estratificar a sociedade em 1. brancos Da PRIMEIRA, DE SEGUNDA, 2. Mulatos, 3. Assimilados e indígenas continua prevalecente, no nosso sistema de educação e não só. Mesmo a forma como os funcionários públicos atendem aos cidadãos quando demandam um serviço. As pessoas são vistas como diminuídas, simplesmente porque demandam um serviço. A educação não escapa muito disto. Docente assim, como qualquer funcionário público, estudaram para servir aos desfavorecidos, portanto há um olhar minimalista do outro quando estes não detêm o mesmo título. Provavelmente seja por isso que muitos lutam para ter título para parecer como outros que já o tem, para que não sejam rotulados como fracassados. Estudamos para exercer o poder sobre outras pessoas, como quem diz: “agora vão me conhecer”. Apenas uma observação superficial.
Gosto · Responder · 4 · 1/2 às 23:36

Jose Cossa Isto tem sido o pao nosso de cada dia.
Gosto · Responder · 2 · 1/2 às 23:47

Mussá Roots Escreva o que quiser,focalizado a quem preferír, concentrando a tua atenção nas questões que pretender,professor.
A verdade é que até um "Juwawana",(esta "roubei" do profe) como eu, vai se deliciar e tirar o devído proveito.
Gosto · Responder · 3 · 1/2 às 23:51

Edgar Cubaliwa Depois de muito desaparecer no face é com muito apreço que leio tudo isso. Principalmente porque em duas semanas vou me "estreiar" como docente. A agonia vinha sendo muito elevada por sempre me questionar se estou em condições suficientes de oferecer? Bem isso, oferecer, pois, infelizmente, mesmo depois de 2 anos de desconstrução, ainda sou a grande herança de um modelo de docência que se caracteriza pelo monopólio exclusivo do saber. Restando nada mais que mobilizar todo o pedantismo e despejar tudo nos estudantes. Aprendi nesses últimos posts e me fortaleço na insuficiência. Conhecer a insuficiência é fortalecedor.
Gosto · Responder · 3 · 2/2 às 1:20

Elisio Macamo coragem.

Djoko Chemane Excelente! Isto toca o âmago do problema dos nossos Campus universitários hoje. O que é simplismente doloroso. Avançamos para a autoridade burocrática/administrativa ao invés da autoridade académica (a tal disponibilidade para aprender). isto não estará ligado as formas de ingresso na universidade (dos docentes, no caso)? Será que alguns docentes tem vocação para estudar? Acho que a universidade é para pessoas cuja tarefa de estudar dá sentido a sua vida...as vezes penso nessa direcção
Gosto · Responder · 2 · 2/2 às 4:37

Faizal Jamal Upff, bom devo confessar que o professor acabou ouvindo minhas preces... Prefiro ver mesmo o professor escrever sobre a área académica...
Gosto · Responder · 1 · 2/2 às 7:07

Elisio Macamo sol de pouca dura...
Wilson Profirio Nicaquela A sapiência. Uma oportunidade e outro feriado para o docente universitário fechar negócios pessoais. Não vai aprender nada de novo. O estudante vai assimilando esses modelos académicos.
Gosto · Responder · 1 · 2/2 às 8:07

Samuel Chacate Meu Deus como fez este homem + um texto recheado de conteúdo ..."argumentos de autoridade" me lembram qd antes só líamos os textos de Carlos Sera no blogesfera alguns colegas limitavam se a dizer "foi dito por" então ñ se pode questionar kkkkk os sociólogos de hj provaram que nada em conhecimento científico é definitivo ...de questionamento kkkkk adorei Prof. Elisio Macamo!
Gosto · Responder · 1 · 2/2 às 8:52

Calton Cadeado Eu concordo com a observação/recomendação e até conselho que este post contém. Só acho que voltou dizer que a raiz do problema está no facto de que muitas pessoas que estão na academia não vivem academia. Eu tenho a convicção de que enquanto não tivermos pessoas que vivem na academia, da academia e para a academia termos sempre os mesmos problemas que o post apresenta.
Gosto · Responder · 2 · 2/2 às 10:26

Elisio Macamo sim, viver na academia, da academia e para a academia.

Adérito Mariano os problemas aqui levantados são também vividos aqui em Angola. Acho que a academia precisam ser levadas mais a sério nos nossos países africanos
Gosto · Responder · 1 · 2/2 às 15:41

Elisio Macamo é um problema geral. ultrapassa o continente, infelizmente.

Ko Yuon Professor, Eu so sei que nada sei.
Gosto · Responder · 2/2 às 17:00

Abdul Remane Suale Suale Essa perspectiva é interessante: aulas de sapiência para docentes??
Gosto · Responder · 2/2 às 18:10

Andy Silva Khanimanbo prof. Elisio Macamo muito bem escrito. O problema em Mozambique de muitos professores é adorar os titulos: Dr... dra... PhD... como se isso fosse um trofeu para por na estante e ser apreciado. Eu quando fui graduada em Sociologia, as pessoas tinham a tendencia chamar dra e o que expliquei foi o seguinte: nao chamem me de dra pois ainda nao fiz algo para contribuir para a sociedade moz. Nao gosto que chamem me por titulo, chamem me Andreia porque assim fui registada no cartorio ou Andy que é nome de casa. No fim de 4 anos o que digo lhe com toda sinceridade foi ter saido da universidade e ver que preciso muito aprender, reconheci que nao sabia nada. Neste momento estou a fazer meu mestrado em França e digo lhe: ainda nao sei nada pois todos dias é algo novo que quero aprender. Muito obrigada mesmo, merci. Espero que os professores e estudantes leiam suas aulas de sapiencia.
Gosto · Responder · 1 · 2/2 às 22:38
Raul Junior Diz um mestre chinês que: não saber o que se sabe é melhor e ainda acrescenta que os que sabem não falam e os que não sabem falam(Lao Tzu).

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