terça-feira, 8 de novembro de 2016

O fim de um pesadelo que pode ser o início de outro ainda mais longo

REPORTAGEM


O fim de um pesadelo que pode ser o início de outro ainda mais longo
Desencantada e mais dividida do que nunca, a América escolhe nesta terça-feira quem será o sucessor de Obama na Casa Branca.
Trump ou Clinton? Ninguém sabe mas uma coisa é certa: os americanos estão fartos desta campanha JONATHAN ERNST/REUTERS
Desde o dia em que Donald Trump desceu das escadas rolantes na sua Trump Tower como só uma estrela sabe, ao som do hino Rockin' in the Free World do canadiano Neil Young, em Junho do ano passado, muitos eleitores norte-americanos têm ansiado pelo fim de uma campanha que mais parece um pesadelo. Mas para muitos outros esse pesadelo só vai ali descansar um bocadinho, porque seja quem for que ganhe estas eleições, terá muitas dificuldades para pôr o país a sonhar outra vez, de mãos dadas e a cantar músicas à volta da mesma fogueira.
A poucas horas da abertura das mesas de voto, as ruas de Nova Iorque estão como sempre, com muita gente para lá e para cá, a falar ao telemóvel, a olhar para o telemóvel ou de telemóvel na mão à espera que ele toque, seja uma chamada ou uma notificação do Facebook. Continuam metidos nas suas vidas, mãos nos bolsos porque o frio é muito mas não surpreende ninguém, e com pouco tempo e paciência para conversas sobre o que vai acontecer hoje.
Mas quando falam, a ideia é a mesma — nunca ninguém viu umas eleições como estas. Se a luta entre Hillary Clinton e Donald Trump fosse um arranha-céus de Manhattan, teria umas luzes muito brilhantes a gritar “Estamos fartos!”.

O menor dos males

Courtney Smith, uma empregada de mesa de 22 anos que está de folga, é apanhada à saída do café Space Gabi, algumas portas ao lado do Empire State Building, há 85 anos a maravilhar quem chega ao topo e a dar dores de pescoço a quem fica cá em baixo. O bolo que comprou não está quente, por isso vamos lá falar um pouco sobre as eleições.
“Estou ansiosa para que isto acabe, tem havido muito dramatismo desnecessário. Não quero que o Trump ganhe, se for essa a tua pergunta!”. Não era já, Courtney, mas teria de sair mais cedo ou mais tarde: “Vou votar na Hillary Clinton porque detesto o Donald Trump. É um mentiroso descarado e eu fico furiosa quando tratam mal as pessoas de outras comunidades.” E depois também há questão das mulheres — não a cartada de Hillary Clinton, mas as coisas que Donald Trump tem dito sobre elas ao longo dos anos.
“Repugna-me a ideia de ele dizer que apoia as mulheres, quando já provou várias vezes que as trata como objectos. Até concordo que tem de haver uma mudança, mas essa mudança não deve ser feita pelo Donald Trump. Acho que vamos para um mau caminho se isso acontecer”, diz Courtney, antes de repetir uma frase que ouvimos até à exaustão nas últimas semanas: vai votar em Hillary Clinton porque é o menor dos dois males.
“O Bernie Sanders seria um melhor candidato, votei nele nas primárias. Consigo perceber que haja alguns jovens a vacilar entre o Bernie Sanders e o Donald Trump, porque muitos de nós tememos a ideia de o governo estar sempre a controlar-nos. Depois das revelações feitas pelo Edward Snowden, muitas pessoas ficaram assustadas e a forma desbocada como o Donald Trump fala agrada a alguns millennials. Nós queremos resultados rápidos, mas temos de perceber que o Donald Trump não é o candidato certo para isso”, diz em jeito de apelo.
Courtney detesta Trump mas percebe a atracção de outros jovens como ela pelo discurso do magnata — embora isso possa parecer estranho na Europa, muitos eleitores por aqui acreditam que se tudo correr mal, basta mudar de Presidente em 2020.
Um dos jovens com quem Courtney Smith poderia passar uma tarde a discutir política é Sherman Gow, de 28 anos. Trabalha “no sector financeiro” e vive em Nova Iorque há 20 anos. A ascendência asiática está-lhe na cara, apoiada na parede do restaurante japonês Abiko Curry, aberto das 11 da manhã às duas da madrugada para quem quiser saber.
Votou sempre, as últimas duas em Barack Obama, mas desta vez diz-se “inclinado” a votar em Donald Trump. “Tem sido uma campanha muito interessante, na última década não houve campanhas tão caóticas como esta. Muitos eleitores estão indecisos entre quem votar porque querem evitar o pior líder”. E lá vem outra vez: “É como escolher entre o menor dos dois males.”

Divisão geracional

Um jovem tal como Courtney, e tal como ela também admirador de Bernie Sanders (sim, também votou nele nas primárias do Partido Democrata), Sherman Gow diz que essas eleições ficaram para trás e agora há que escolher entre o menu que lhe puseram à frente. “No início não gostei nada da personalidade dele porque fala mal das minorias, mas a Hillary Clinton está na política há 30 anos e fez muitas promessas que não cumpriu. Como eleitor regular sinto-me desiludido. O Donald Trump pode ser pouco convencional e diz coisas que irritam muitas pessoas, mas como vem de fora do sistema talvez faça um melhor trabalho”, argumenta.
Sherman resume o grande fenómeno que é a diferença geracional tanto nos Estados Unidos como na Europa, uma geração à boleia da Uber e alojada num apartamento Airbnb, mas sem preconceitos: “Há uma grande divisão geracional. Os mais jovens anseiam por uma mudança, os mais velhos querem manter as coisas como estão. Os dois grandes partidos vão ter de mudar nos próximos anos para conseguirem captar o nosso voto pela positiva, vão ter de se adaptar às novas gerações. Os millennials não olham para o governo como a instituição mais indicada para ditar as regras, para regular. Muitas vezes fica para trás em relação ao desenvolvimento tecnológico.”
Courtney e Sherman são apenas duas pessoas, não é por aqui que alguém vai perceber o que acontecerá esta noite. Mas também é difícil perceber alguma coisa quando se olha para as sondagens, sempre a subirem e a descerem mais depressa do que os elevadores do Empire State Building.
Mas pelo menos para uma pessoa habituada a analisar eleições há quatro décadas, as contas já estão feitas. Thomas Mann, um dos mais conceituados especialistas da Brookings Institution, com sede em Washington D.C., não tem dúvidas: “Estas eleições não vão ser nada renhidas. Clinton vai ganhar. As únicas incertezas são a magnitude da sua vitória e se o Partido Democrata vai reconquistar a maioria no Senado”, diz ao PÚBLICO por telefone.
Para este antigo professor nas universidades de Johns Hopkins, Georgetown, Virginia e American, esta foi “a campanha mais feia e mais perigosa” de que se lembra, ele que nasceu há 72 anos. “Principalmente por causa da nomeação de Trump. E não há sinais de que o país se volte a unir. Os grupos de supremacistas brancos estão entusiasmados com a campanha dele e vão ganhar muito apesar da sua derrota.”

Uma maré a mudar

O analista e especialista em sondagens John Zogby é mais cauteloso — sempre foi mais cauteloso quando se fala em Hillary Clinton. A horas do momento da verdade, dá-lhe 55 por cento de hipóteses de chegar à Casa Branca, tudo porque as sondagens não podem avaliar o que vão fazer os independentes — muitos deles pensam em Trump à segunda-feira, em Clinton à terça-feira, e depois vão trocando as voltas a toda a gente até ao fecho das urnas.
“Da forma como as coisas estão, é a Hillary quem precisa mais de uma enorme afluência às urnas. Os jovens afro-americanos não estão entusiasmados como estavam com Obama, e vamos ver se a presença na campanha do Presidente, da primeira dama, de Beyonce e de Jay Z será suficiente. Pela minha experiência, por melhores que sejam as estrelas, as pessoas que não querem votar não mudam de opinião por causa disso. Se não gostarem de um candidato, não votam mesmo, e é isso que está a tornar tudo tão imprevisível”, diz John Zogby ao PÚBLICO.
Uma coisa é certa para o fundador da Zogby Polls, que tem marcada para hoje uma palestra em Washington sobre sondagens: “O Partido Republicano como o conhecíamos está morto. Não vejo nenhuma hipótese de uma reunificação. As três ou quatro alas distintas no interior do partido não têm capacidade para se unirem, é uma divisão permanente.”
De volta às ruas de Nova Iorque, encontramos Major Jackson, um professor de Inglês afro-americano na Universidade do Vermont. Veio cá dar umas palestras, mas é conterrâneo do senador Bernie Sanders, com quem se identifica. Apesar disso, não teve nenhum problema em apoiar Hillary Clinton de corpo e alma. Tem 48 anos, não é um millennial — dá aulas a millennials.
“Os millennials não têm uma visão abrangente da luta das mulheres neste país, são mais compreensivos com as lutas dos afro-americanos e até dos latinos e asiáticos. Mas é uma surpresa para mim que muitos deles não se tenham manifestado activamente contra Donald Trump. Acho que vão ajustar as ideias à medida que crescem”, diz com um sorriso.
Jackson acha que o apoio a Trump é, acima de tudo, “uma resistência à Presidência de Obama e aos direitos conquistados pela comunidade LGBT, por exemplo”. Mas acredita que o tempo não vai voltar para trás: “Votei pela primeira vez durante a Presidência de Reagan, e nessa altura era inimaginável virmos a ter um Presidente afro-americano e, possivelmente, uma Presidente mulher. Bastava dizer as palavras ‘Casa Branca’ e a imagem que surgia era a de homens brancos vestidos de fato e gravata. Essa maré tem vindo a mudar muito lentamente nos últimos 100 anos, e por isso olho o futuro com optimismo.”

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