Agora que a esquerda descobriu um novo Hitler nos Estados Unidos e
Merkel se tornou uma anti-fascista, será que Louçã e as suas discípulas
ainda vão olhar para a chanceler como a nova Rosa Luxemburgo?
Barbra Streisand prometeu, mais uma vez, emigrar para o Canadá (já havia prometido quando Bush filho chegou à Casa Branca). Para sorte dos canadianos, ainda não cumpriu a promessa. Cher lembrou ao mundo da sua existência, jurando que desta vez ia abandonar mesmo o “o planeta terra”. Esperemos que o faça discretamente. Madonna deixou de compreender os homens americanos. Prometeu sexo oral gratuito a quem votasse em Clinton e mesmo assim a maioria dos homens americanos votou em Trump.
Mas a indignação fácil do NY Times, o histerismo de Friedman e Krugman, e a incapacidade de Madonna de entender os homens não se comparam à reação de parta da esquerda europeia. Aderiu aos “valores liberais” contra a ameaça vinda de Trump. E olha para Merkel como a defensora do “mundo livre”. Não estou a brincar. É mesmo verdade. A esquerda converteu-se ao liberalismo e a Merkel. Foi o que nos disseram nas últimas duas semanas o Público, o El Pais, o Le Monde, o Guardian, o New Statesmen, o NY Times, os intelectuais em Londres, em Paris e em Lisboa, e os funcionários de Bruxelas. Obama até confessou que se fosse alemão votaria em Merkel. Pobre SPD, já nem o presidente Democrata votaria neles. Quem diria há seis meses atrás que a esquerda europeia estaria a defender o liberalismo e Merkel? Ninguém, obviamente. Só Trump conseguiria este milagre. Daí o meu agradecimento ao novo presidente americano.
Percebemos a dimensão desta transformação da esquerda se recuarmos a 2011. Nessa altura, segundo grande parte da esquerda, o mundo estava dominado pelo “fascismo neoliberal”. Os “liberais estavam a destruir o modelo social europeu”. Agora com a vinda de Trump, a esquerda esqueceu o “fascismo liberal” e agora quer lutar contra o “fascismo de Trump”. Para a esquerda há sempre um novo fascismo para combater. Quanto a Merkel, nos idos anos de 2011 e 2012, era comparada a Hitler. Em todas as manifestações das “ruas europeias”, surgia inevitavelmente um cartaz de Merkel com bigode. Lembram-se quando académicos e intelectuais prestigiados portugueses diziam que a única diferença era que Hitler havia invadido com tanques e Merkel invadia com a austeridade? E juravam que a diferença era irrelevante. Não estou a brincar. Foi mesmo assim. Agora a esquerda descobriu um novo Hitler nos Estados Unidos, Merkel tornou-se uma anti-fascista. Será que Louçã e as suas discípulas ainda vão olhar para a Chanceler alemã como a nova Rosa Luxemburgo?
Por mim, só posso dar as boas vindas a todos aqueles que estão dispostos a defender o liberalismo e Merkel. Nunca deixei de o fazer, mesmo quando não era fácil, como depois de 2011. A esquerda percebe agora que aqueles que defenderam o liberalismo e Merkel afinal tinham razão. Mais vale tarde do que nunca. Devemos, no entanto, desconfiar das conversões rápidas e tardias. Por isso, deixo algumas questões para a ‘esquerda liberal e pró-Merkel’. Vai apoiar Merkel na defesa do acordo de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos contra Trump, que quer matá-lo? Ou vai juntar-se ao protecionismo de Trump contra o liberalismo de Merkel? Nas questões concretas é que se vê onde estamos politicamente.
De que lado se vai colocar a esquerda entre o aumento do défice público para financiar investimentos, defendido por Trump, e as políticas de austeridade de Merkel? Preferem a irresponsabilidade fiscal de Trump ou a responsabilidade fiscal de Merkel? Quando Trump, depois de chegar à Casa Branca, atacar as políticas de austeridade da zona Euro, o governo português vai apoiar o presidente americano? Mas uma vez, convém saber onde estará a esquerda nos debates sobre políticas fiscais que aí vêm.
Em relação à Síria, se Merkel defender a criação de corredores humanitários, certamente apoiada pelo novo secretário-geral da ONU, a esquerda defenderá intervenções humanitárias ou o respeito pela soberania nacional como faz Trump? E no caso da Ucrânia, a esquerda vai colocar-se ao lado de Merkel na defesa da auto-determinação nacional ou vai reconhecer, como Trump, as preocupações de segurança da Rússia? O que vai fazer o governo português quando for necessário tomar uma decisão sobre as sanções contra a Rússia? Vai apoiá-las ao lado de Merkel? Ou vai defender o fim das sanções como pretende Trump?
Por fim, um conselho de alguém que defende a Merkel há muito tempo. É absolutamente necessário fazer a distinção entre a justeza de muitas das posições de Merkel, as quais merecem ser defendidas, do aumento de poder da Alemanha. É um desafio difícil. Ora colocar Trump e Merkel num contexto da luta entre o ‘bem’ e o ‘mal’ vai legitimar o poder da Alemanha e a sua hegemonia na Europa de um modo completamente novo. Aliás, já se percebeu, desde a eleição de Trump, que é essa a estratégia de Berlim. Mas quando Merkel partir, a Alemanha fica. E convém que não fique com demasiado poder.