Elisio Macamo
Dedico este texto longo ao Paulo Inglês pelo seu aniversário na esperança de que venha ao meu socorro assim que as coisas ficarem feias...
A página do Centro de Integridade Pública tem um vídeo interessante sobre as implicações das dívidas ocultas. Diz que o pagamento dessas dívidas vai nos custar, como contribuintes, 331 milhões de dólares por ano que, nos próximos sete anos, poderiam servir para colocar 1.200.000 de crianças na escola, ou construir 40.000 salas de aulas, ou comprar mais medicamentos, ou contractar mais médicos e profissionais de saúde, ou expandir a rede de abastecimento de água e de electricidade ou ainda construir mais estradas e caminhos de ferro. Infelizmente, nenhuma destas coisas será feita por causa destas dívidas, razão pela qual é importante que os responsáveis sejam levados à justiça.
Entendo o spot publicitário. Entendo-o muito bem. Recorda-me as comparações que se faziam no passado sobre o que o custo, por exemplo, dum porta-aviões representava em termos de escolas e hospitais não-construídos onde eram necessários. A lógica, porém, parece-me de qualidade duvidosa por duas razões. Primeiro, suponhamos que os “gatunos” que nos meteram nesta alhada tivessem ido ao parlamento obter permissão para contrair os empréstimos e que, como dispõem de maioria (e para o caso de haver parlamentares com dúvidas que essas dúvidas fossem esclarecidas com promessas de investimentos nos seus círculos eleitorais...), a tivessem obtido. Objectivamente, os impostos iriam aumentar na mesma. Os “moçambicanos” – como o vídeo diz – iriam na mesma exigir a responsabilização dos culpados mesmo tendo em conta o facto de que as dívidas não teriam violado nada? Segundo, embora faça sentido elencar certas coisas como potenciais aplicações desse dinheiro vale à pena perguntar se o nosso sistema político está estruturado duma forma que permite imaginar que esse tipo de decisão seja tomada. Dito doutro modo, vale a equação “se o dinheiro não for desviado, será aplicado em coisas mais úteis” no nosso país?
Não é segredo para ninguém que não sou lá grande amigo do discurso anti-corrupção. E estes reparos revelam isso claramente. Não é que ache que a corrupção seja boa coisa, ou que não deva ser punida. Incomodam-me simplesmente os hábitos de pensamento que ela suscita, o espírito missionário e fundamentalista dos combatentes anti-corrupção e a forma persistente como essa luta descaracteriza os nossos verdadeiros problemas. Não é a primeira vez que o digo, mas tenho em mim que o discurso da corrupção é uma das maiores fraudes intelectuais e um dos maiores entraves para uma melhor reflexão sobre os desafios que enfrentamos. Vou voltar a colocar os meus argumentos aqui para provocar mais discussão (e ganhar mais alguns “likes”) e, espero, tirar algumas pessoas da sua zona de conforto.
Começo com um reparo histórico. O século X na história da Igreja Católica foi caracterizado como a era do reino das prostitutas. Se calhar os católicos deviam saltar este parágrafo. Foi um período com vários Papas que ficaram pouco tempo no trono, muitos deles assassinados – da forma mais horrível possível, mas correspondendo naturalmente ao próprio tempo – muitas vezes mortos pelos maridos das suas amantes, rivais e outros. Os que não eram mortos fugiam com o dinheiro do Vaticano. O seu poder era essencialmente corrupto. Essa corrupção era, num primeiro momento, moral (amantismo, adultério, estupro, abuso de menores – houve até papas que tinham prostíbulos!) e, num segundo momento material envolvendo duas manifestações. A primeira é o que a Igreja Católica chama de Simonia, isto é a venda ilegal de bens espirituais – que 500 anos mais tarde teve um papel preponderante no surgimento do Protestantismo – e a segunda foi o nepotismo – “nepos” em Latim quer dizer sobrinho ou neto – uma característica fundamental do exercício do poder papal num ambiente em que era arriscado confiar em desconhecidos. Volvidos vários séculos a Igreja Católica mudou muito – ainda que as acusações de corrupção persistam, embora não ao mesmo nível.
Aposto que aqueles que não conhecem a sua história teriam dificuldades em imaginar que ela tivesse esse passado, a não ser que se trate de alguém já com reticências em relação à instituição. A minha história “favorita” deste período é a do Papa Formoso – que foi Bispo da cidade do Porto! – que convocou a raiva duma duquesa italiana formidável de nome Agiltrude por ter conferido o título de imperador ao rival do seu filho. Após a morte do Papa Formoso, e assim que ela conseguiu colocar um Papa ao seu gosto no trono de São Pedro, a Duquesa Agiltrude deu instruções ao novo Papa – o Papa Estévão VII, cuja demência não era segredo para ninguém em Roma – para levar o malogrado Papa à barra do tribunal acusando-o de todo o tipo de crimes inventados. Os seus restos mortais foram disenterrados e colocados no banco dos réus num julgamento que entrou para a história como o “Sínodo do cadávre”. O tribunal julgou-o culpado, retirou-lhe o título de Papa – e dessa maneira invalidou todas as suas decisões, incluindo as nomeações que tinha feito – cortou-lhe os três dedos da mão com os quais dava bênção e mandou que fosse enterrado como um Djuwawana qualquer. Não contente com isso, mandou de novo dissenterrar e lançar os restos para o Rio Teber, onde alguns fiéis que o respeitavam o encontraram e foram sepultar em local escondido. Quando meses mais tarde outro Papa subiu ao trono, anulou esse tribunal e fez com que ele fosse de novo sepultado com todas as honras de Papa que, anos mais tarde, outro Papa voltou a anular, mandou cortar mais três dedos (ou o que restava) da outra mão e atirar os restos de novo no rio, onde foram se emaranhar nas redes dum pescador...
Parte da dificuldade em imaginar este passado da Igreja Católica tem a ver com o facto de que quando estamos perante esse tipo de situações não é fácil não tirar a conclusão equivocada segundo a qual o comportamento corrupto faria parte da constituição genética e cultural. É uma conclusão equivocada, mas legítima. Só que nos devia remeter a um tipo de interpelação que não estamos acostumados a fazer, nomeadamente se algum fenómeno é causa, sintoma ou consequência de alguma coisa.
O discurso da corrupção parte do princípio de que ela é (uma das) causa(s) do não desenvolvimento. O argumento é simples e é formulado a dois níveis. Um nível é empírico e consiste na observação de casos “reais”. A maioria dos países desenvolvidos tem baixos níveis de corrupção, enquanto a maioria dos países não desenvolvidos tem altos níveis de corrupção. Entre os não desenvolvidos, supõe-se, têm níveis menos altos de corrupção aqueles países com melhor desempenho económico. A ilação é simples. Existe uma correlação entre desenvolvimento e corrupção: quanto mais desenvolvido, menos corrupto; quanto menos desenvolvido, mais corrupto. O segundo nível é teórico e consiste na formulação dum modelo analítico que explica porque a corrupção é má para o desenvolvimento. Assim, ela é má porque corrói o tecido moral, perverte os processos políticos e traz danos à economia – por implicar custos adicionais, aceitar a má qualidade e privar a economia de dinheiros que poderiam ser melhor aplicados.
Qualquer indivíduo sensato pula logo nesta caravana porque se trata de argumentos intuitivamente correctos. Mas são mesmo? Não acho, e não é por todo o mundo os repetir que vou ficar convencido. Preciso de mais matéria. Preciso, por exemplo, e em relação ao nível empírico, de saber porque a correlação entre nível de desenvolvimento e taxa de corrupção deve implicar uma causalidade. Porque é que a corrupção não seria apenas uma manifestação do não desenvolvimento? Na história dos países desenvolvidos houve sempre corrupção – e continua – pelo que me parece lícito perguntar se o combate eficaz à corrupção não dependerá mesmo da conquista dum certo nível de desenvolvimento, isto é que essa correlação se explique pelo simples facto de que baixa corrupção seria uma manifestação morfológica de alto nível de desenvolvimento. Sabemos que nenhum país desenvolvido precisou de inventar campanhas anti-corrupção como condição para o seu desenvolvimento. Nos EUA, onde a corrupção é endémica apesar de toda a legislação que lá se tem, tem frequentemente havido vozes de muitos que apontam para o grande encargo que é para o aparelho do estado e para a sociedade combater a corrupção. Há gente lá farta da “procura da integridade absoluta” por ter constatado que essa procura torna a máquina governativa ineficiente sem trazer resultados palpáveis.
Preciso dum argumento que me explique aberrações. Uma aberração importante é o Japão, provavelmente um dos países mais corruptos do mundo – aquilo que na gíria económica é chamado de Japan Inc. é uma rede patrimonial gigantesca que envolve o aparelho do estado (donde saiem os PCAs que vão gerir as empresas que andaram a receber contratos públicos), os partidos (durante muito tempo o “partido único” LDP que era sustentado pelas empresas) e as próprias empresas (que são protegidas da concorrência externa e vão fagocitando as pequenas e médias empresas locais). Mas é ao mesmo tempo um dos países mais desenvolvidos do mundo. Para eu me sentir convencido gostaria de apreciar argumentos mais diferenciados que me explicassem como é que a corrupção deve ser para ser má e impedir o desenvolvimento, pois estas excepções (há mais: EUA, China, Itália, etc.) não me permitem apreciar devidamente o alcance da correlação. Do ponto de vista meramente lógico é possível imaginar um tipo de corrupção que seja menos nocivo ao desenvolvimento. Qual?
Sei que muitos estão neste preciso momento a abanar a cabeça e a concluírem que abandonei o convívio dos mentalmente sãos. Pode ser e nem é de hoje. Prefiro, contudo, a companhia da minha própria folia à companhia dum delírio colectivo que não nos permite descrever bem os desafios que o país enfrenta. E isto por três razões. Primeiro, tenho em mim que o discurso da corrupção é funcional à reprodução das condições da nossa dependência. É uma explicação conveniente para os desaires que as políticas de desenvolvimento – que vêm sendo implementadas há décadas sem necessariamente mexerem com as estruturas económicas mundiais injustas – têm sofrido. Que melhor maneira de evitar explicar a própria perplexidade senão com recurso à ideia de que o sintoma é, na verdade, a causa? Segundo, este discurso simplifica os problemas do país ao imaginar que correlações mal digeridas possam conter a solução. O que se verifica na prática, e que já se verificou noutros países, é que as campanhas anti-corrupção ao invés de “moralizarem” ou tornarem mais eficiente a acção política elas simplesmente acrescentam mais elementos à confusão.
A entidade estatal que combate a corrupção em Moçambique por vezes, e sem se dar conta, vira instrumento político e de ajuste de contas. Conheço casos de pessoas “intimadas” como réus na base de falsas denúncias que outro objectivo não têm senão o de atentarem contra a sua dignidade. Não digo que a entidade não devesse agir. Mas pergunto-me se esse é um preço que vale mesmo à pena pagar. Os procedimentos administrativos ficaram mais complicados ainda – com as leis do “procurement” sviku yini-yini-yini – sem ganhos aparentes de eficiência. Terceiro, o tipo de ambiente intelectual que a luta contra a corrupção produz é o da denúncia – devo este reparo, num outro contexto, a uma observação feita pelo antropólogo português José Teixeira. Isto é típico de regimes políticos autoritários e não é necessariamente conducente à criação dum debate público são. A vida dos combatentes anti-corrupção reduz-se à denúncia de corrupção, muitas vezes nos lugares mais inesperados e num fervor que não é diferente do ambiente intelectual que envolveu a caça às bruxas na Europa medieval dentro do qual a produção de cada vez mais bruxas passou a ser a razão de ser dos Inquisidores do Papa.
Sei que os nossos próprios Inquisidores vão interpretar a minha reflexão – ou “diatribe” – como defesa da corrupção que tanto mal faz ao nosso país. Aos leitores sensatos peço apenas uma coisa. Que reflictam sobre o que escrevi aqui não como uma banalização de comportamentos criminosos – desviar fundos, pedir comissões, favorecer gente não qualificada, etc. são comportamentos criminosos que seriam melhor tratados com base na legislação criminal normal e não com recurso a categorias emocionais que pervertem simplesmente o sentido do direito – mas sim como um convite para pensarmos os nossos problemas connosco no centro. O discurso anti-corrupção obriga-nos a olhar para o nosso país com os olhos de quem procura apenas explicar a sua própria perplexidade, não de quem quer entender os desafios. Ele desvia a nossa atenção de questões estruturais que merecem maior prioridade na análise como, por exemplo, o que torna certos tipos de comportamento criminoso possíveis. O discurso anti-corrupção acha que esses comportamentos são possíveis por causa da impunidade e, quando não for a impunidade, por causa das penalizações que não são suficientemente pesadas. É outra atitude política tipicamente totalitária. Já nos tempos que lá vão do grande herói nacional o raciocínio era o mesmo: problemas estruturais ligados à toda concepção política subjacente eram abordados com o agravamento da penalização – fuzilamento, chicotadas, saneamento – sem correspondente diminuição do problema, apenas a sua sofisticação.
A “corrupção” faz parte daquelas palavras que pensam por nós. É o refúgio de quem não se quer dar ao trabalho de pensar por si próprio. E por causa disso não é lá muito útil para uma melhor compreensão do (nosso ou qualquer outro) país. Enquanto houver pessoas preparadas a dar crédito, de forma acrítica, à ideia de que a corrupção é o nosso maior problema, continuaremos a penhorar intelectualmente o futuro do país ao mesmo tempo que criamos as condições para a reprodução social dos nossos próprios Inquisidores...
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3Gabriel Muthisse e 2 outras pessoas
Comentários
Ricardo Santos "Discurso ou acção que visa manipular as paixões e os sentimentos do eleitorado para conquista fácil de poder político."
"demagogia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/demagogia [consultado em 14-11-2016].
Partilhando o essencial do teu discurso sobre a chamada luta contra a corrupção, dá-me vontade de associar este outro conceito que é o da demagogia. Julgo que andam de mãos dadas.
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