É a sensação editorial do ano em França: a publicação pela Gallimard de mais de 1200 cartas de amor do ex-Presidente à sua amante secreta, ao longo de três décadas. Cheias de arrebatamento, ternura, devoção e, dizem os críticos, talento literário, revela-se, no centenário do seu nascimento, um lado oculto de François Mitterrand. No peito de um monstro político também bate um coração
Ele
chamava-lhe “Nanoon aimée”, “Anne chérie”, “Nannour”, “Animour”, “meu
pato com laranja amarga”… Ela chamava-lhe “Cecchino (petit François)”,
“meu criador de alegria”, ou “minhas anchovas com molho de maçã”. Todas
as cartas de amor são ridículas. Estas, do mítico e ambivalente
estadista francês – Presidente (entre 1981 e 1995) e 12 vezes ministro –
François Mitterrand, para a sua amante Anne Pingeot, conservadora do
Museu D’Orsay, especialista em escultura da segunda metade do século
XIX, não fogem à regra. Ridículas, sim, mas, encantam-se os críticos
literários franceses, de uma elegância e sensibilidade raras num
político – sobretudo se o ponto de comparação for Hollande ou Sarkozy.
Diz Jérôme Garcin do semanário L'Obs (ex-Le Nouvel Observateur):
“Mitterrand foi o nosso último Presidente a venerar a língua francesa, a
saber usar o passado do conjuntivo, a conhecer as subtilezas das
metáforas e a poder escrever vibrantes poemas de amor”.
Mais do que a revelação de segredos de alcova, relações extraconjugais ou satisfação de um vouyeurismo público ávido por escândalos íntimos, mulheres traídas e amantes secretas de políticos galanteadores, os dois volumes lançados à beira das comemorações do centenário do nascimento de Mitterrand (26 de outubro de 1916) – Diário para Ana 1964-1970 (496 páginas) e Cartas a Ana (entre 1962 a 1995; 1280 páginas), cedidas pela destinatária, que aguardou respeitosamente o falecimento, em 2011, de Danielle, a oficial mulher do político –, são já considerados “um dos mais importantes epistolários do século passado”, relevantes inclusive para a história da política francesa recente. De Gaulle deixou as suas memórias, Pompidou a sua antologia, Mitterrand, o Presidente que amava gramática, os seus livros políticos e estas cartas de amor.
Oriunda de famílias católicas e conservadoras, Anne manteve-se sempre na sombra do estadista. A “femme-fille-fleur-beau soleil” como ele lhe chama nas cartas, mantém-se, hoje, aos 73 anos, em silêncio. Aceitou entregar e organizar as cartas e as folhas do diário – meticulosamente guardadas estes anos todos em caixas de sapatos – à editora, mas não quis fazer nada para a sua promoção. Em curtas declarações à BBC, apenas proferiu que “admirar a pessoa que se ama é uma imensa felicidade. Nunca se entediar e partilhar todos os pontos de interesse torna-se numa renovação permanente...” E falou de “32 anos de intensa felicidade”, mas também, deixou escapar, “de tristeza”. Não conheceu nenhum outro homem, nem antes nem depois de Mitterrand, tiveram uma filha em 1974, que acabou por ser descoberta pela comunicação social. Quebrou-se o tabu, mas o Presidente escolheu a política, fez um pacto com a sua mulher Danielle, nunca se divorciou e vivia entre dois lares. Anne aceitou, não se sabe de que forma, as suas cartas não foram reveladas, e citou Mitterrand que costumava dizer que “não havia amor eterno que não fosse contrariado”. No funeral compareceram duas viúvas: logo atrás de Danielle, Anne cobria a cara com um véu – como num filme francês, naquele a que, porventura, Mazarine se referia. A mãe, enfim, num papel principal.
Vítima ou heroína de tragédia, certo é que Anne, nascida em 1943 em Clermont-Ferrand, chegou bem longe na sua especialidade em escultura, no Museu d' Orsay ou na sua passagem pelo Louvre, e nas obras especializadas que produziu. Diz-se que a sua sensibilidade artística também pode ter influenciado as opções de Mitterrand e a política cultural de Paris. Aliás, o encontro dos dois amantes começa com um livro sobre filosofia, uma obra sobre Sócrates, que o futuro Presidente de França promete emprestar-lhe. É este o tema da primeira carta que trocaram. Ela tinha 19 anos, e ele 47, com dois filhos adolescentes, Jean Christophe e Gilbert, quase da idade de Anne. Algumas cartas depois, presume-se que já seriam amantes. Conheceram-se por intermédio do pai de Anne, um industrial abastado que jogava golfe com Mitterrand, na praia estival de Hossegor. Ele já tinha muito passado para trás (mulher, filhos, vários ministérios…), ela só tinha futuro pela frente.
Em 1969 escrevia-lhe “Encontrei-te e soube de seguida, adivinhei, que iria para uma longa viagem”. Mais adiante: “Lá onde estarei eu sei que tu estarás sempre. Não haverá mais noite absoluta para mim. A solidão será menos solitária”. As cartas são mais abundantes até 1974, altura em que lhes nasceu Mazarine, a filha que a França, a meia boca, chamava ‘a filha secreta’”. Aí Mitterrand e esta sua segunda família conseguiram manter um simulacro de vida doméstica. Nos anos 60 declarava um amor arrebatado por Anne: “É um paradoxo incrível: existo no mesmo momento em que me dissolvo em ti”. No final da vida, com 80 anos, já com cancro, o homem que mantém o recorde de longevidade na Presidência da República Francesa mantinha inalterados os seus sentimentos: “A minha felicidade está em pensar em ti e amar-te. Sempre me tens dado mais. Foste a sorte na minha vida. Como poderia o amor não crescer?”.
As cartas de amor e o diário não são a primeira bomba editorial de Mitterrand. Já em 1994, o livro de um investigador Uma Juventude Francesa abala a França, com provas inquestionáveis do que a respeitável figura da Internacional Socialista não se podia orgulhar e muito se esforçou por ocultar: o seu passado de colaboracionista com o governo de Vichy (estado satélite da Berlim nazi), chegando mesmo a receber uma condecoração atribuída pelo marechal Pétain, o chefe de Estado de Vichy, durante a Segunda Guerra Mundial. Depressa se percebeu que a sua vida teve pontos turvos, e não terá andado longe da extrema-direita. Deixando todo um percurso na sombra, apresentava o seu currículo político como se ele se tivesse iniciado na Resistência. Os historiadores comentam inclusive que se tais factos viessem a público mais cedo, e ele não estivesse em final de mandato, Mitterrand poderia ter sido forçado a demitir-se. Outras facetas desta personalidade múltipla e complexa levaram-no a admitir o arrependimento. As mesmas mãos manchadas de sangue, ao ter recusado, em 1956, o indulto a 45 independentistas argelinos, condenados à morte, compunham poemas e belas colagens para a sua “Annamour”.
(Artigo publicado na VISÃO 1234, de 27 de outubro)
Mais do que a revelação de segredos de alcova, relações extraconjugais ou satisfação de um vouyeurismo público ávido por escândalos íntimos, mulheres traídas e amantes secretas de políticos galanteadores, os dois volumes lançados à beira das comemorações do centenário do nascimento de Mitterrand (26 de outubro de 1916) – Diário para Ana 1964-1970 (496 páginas) e Cartas a Ana (entre 1962 a 1995; 1280 páginas), cedidas pela destinatária, que aguardou respeitosamente o falecimento, em 2011, de Danielle, a oficial mulher do político –, são já considerados “um dos mais importantes epistolários do século passado”, relevantes inclusive para a história da política francesa recente. De Gaulle deixou as suas memórias, Pompidou a sua antologia, Mitterrand, o Presidente que amava gramática, os seus livros políticos e estas cartas de amor.
Autobiografia de um casal
Pela sua longevidade (mais de 30 anos de cartas trocadas), pela sua clandestinidade, pela intensidade e qualidade de escrita que expressam, as cartas confirmam um estilo lírico, por vezes adolescente, quase comovente, de Mitterrand, e um interesse pela cultura e literatura que partilhava com a estudante e futura curadora. Não só revelam a cumplicidade que existia entre os dois – nomeadamente no que toca a confissões políticas – mas também o testemunho epistolar surpreendente de que o monstro político, a raposa matreira, ambiciosa e calculista, sedutor em série, amara, com todas as suas contradições e incoerências, Anne Pingeot, loucamente, até ao último suspiro – Mitterrand morreu de cancro na próstata, em 1996. Ela nunca assumiu o papel de primeira dama, mas foi, diz-se, o amor primeiro. Nas palavras da filha de ambos, Mazarine Mitterrand, 41 anos, escritora: “A minha mãe é a heroína de um filme que nunca ninguém verá”. Até agora.Oriunda de famílias católicas e conservadoras, Anne manteve-se sempre na sombra do estadista. A “femme-fille-fleur-beau soleil” como ele lhe chama nas cartas, mantém-se, hoje, aos 73 anos, em silêncio. Aceitou entregar e organizar as cartas e as folhas do diário – meticulosamente guardadas estes anos todos em caixas de sapatos – à editora, mas não quis fazer nada para a sua promoção. Em curtas declarações à BBC, apenas proferiu que “admirar a pessoa que se ama é uma imensa felicidade. Nunca se entediar e partilhar todos os pontos de interesse torna-se numa renovação permanente...” E falou de “32 anos de intensa felicidade”, mas também, deixou escapar, “de tristeza”. Não conheceu nenhum outro homem, nem antes nem depois de Mitterrand, tiveram uma filha em 1974, que acabou por ser descoberta pela comunicação social. Quebrou-se o tabu, mas o Presidente escolheu a política, fez um pacto com a sua mulher Danielle, nunca se divorciou e vivia entre dois lares. Anne aceitou, não se sabe de que forma, as suas cartas não foram reveladas, e citou Mitterrand que costumava dizer que “não havia amor eterno que não fosse contrariado”. No funeral compareceram duas viúvas: logo atrás de Danielle, Anne cobria a cara com um véu – como num filme francês, naquele a que, porventura, Mazarine se referia. A mãe, enfim, num papel principal.
Vítima ou heroína de tragédia, certo é que Anne, nascida em 1943 em Clermont-Ferrand, chegou bem longe na sua especialidade em escultura, no Museu d' Orsay ou na sua passagem pelo Louvre, e nas obras especializadas que produziu. Diz-se que a sua sensibilidade artística também pode ter influenciado as opções de Mitterrand e a política cultural de Paris. Aliás, o encontro dos dois amantes começa com um livro sobre filosofia, uma obra sobre Sócrates, que o futuro Presidente de França promete emprestar-lhe. É este o tema da primeira carta que trocaram. Ela tinha 19 anos, e ele 47, com dois filhos adolescentes, Jean Christophe e Gilbert, quase da idade de Anne. Algumas cartas depois, presume-se que já seriam amantes. Conheceram-se por intermédio do pai de Anne, um industrial abastado que jogava golfe com Mitterrand, na praia estival de Hossegor. Ele já tinha muito passado para trás (mulher, filhos, vários ministérios…), ela só tinha futuro pela frente.
Sentimental
Nas cartas e no diário (em que Mitterrand faz uma espécie de poemas gráficos, com colagens, desenhos e alusões à arte de que ambos gostavam), o Presidente dedicava-se a longas descrições de paisagens por onde passava, relatava com detalhe debates no Parlamento, os livros que lia, as partidas de golfe… Claro que a pretendia seduzir e conquistar, mas muitos sugerem que ele, ao escrever-lhe, escrevia-se a si próprio, admitindo, ainda que inconscientemente, uma publicação póstuma. E ia compondo, assim, a sua própria posteridade, acrescentando-lhe um lado mais sentimental, romântico – mais humano, em suma. “Luz, calor e alegria não vêm de outro sol senão daquele que nos habita”, lê-se numa das cartas.Em 1969 escrevia-lhe “Encontrei-te e soube de seguida, adivinhei, que iria para uma longa viagem”. Mais adiante: “Lá onde estarei eu sei que tu estarás sempre. Não haverá mais noite absoluta para mim. A solidão será menos solitária”. As cartas são mais abundantes até 1974, altura em que lhes nasceu Mazarine, a filha que a França, a meia boca, chamava ‘a filha secreta’”. Aí Mitterrand e esta sua segunda família conseguiram manter um simulacro de vida doméstica. Nos anos 60 declarava um amor arrebatado por Anne: “É um paradoxo incrível: existo no mesmo momento em que me dissolvo em ti”. No final da vida, com 80 anos, já com cancro, o homem que mantém o recorde de longevidade na Presidência da República Francesa mantinha inalterados os seus sentimentos: “A minha felicidade está em pensar em ti e amar-te. Sempre me tens dado mais. Foste a sorte na minha vida. Como poderia o amor não crescer?”.
Aceitar o inaceitável?
Danielle, mãe dos filhos, companheira oficial desde 1944, não deve ter sofrido menos com a humilhação pública, inquilina do Eliseu, desalojada do coração do Presidente. Mitterrand casou-se com esta veterana da Resistência em 1944 e nunca terá encarado a hipótese de se divorciar, colocou a política e o seu estatuto de Presidente à frente dos assuntos do coração. Ou terá sido o seu espírito sempre calculista, e até oportunista, que levou o líder dos socialistas a conciliar uma primeira-dama pública e uma amante privada? Na verdade, Danielle, a sua “consciência de esquerda”, e que se juntou à Resistência contra os ocupantes nazis com apenas 17 anos, tinha este capital de passado político impoluto. O mesmo não se poderá dizer do magnético, brilhante, sedutor mas politicamente habilidoso François.As cartas de amor e o diário não são a primeira bomba editorial de Mitterrand. Já em 1994, o livro de um investigador Uma Juventude Francesa abala a França, com provas inquestionáveis do que a respeitável figura da Internacional Socialista não se podia orgulhar e muito se esforçou por ocultar: o seu passado de colaboracionista com o governo de Vichy (estado satélite da Berlim nazi), chegando mesmo a receber uma condecoração atribuída pelo marechal Pétain, o chefe de Estado de Vichy, durante a Segunda Guerra Mundial. Depressa se percebeu que a sua vida teve pontos turvos, e não terá andado longe da extrema-direita. Deixando todo um percurso na sombra, apresentava o seu currículo político como se ele se tivesse iniciado na Resistência. Os historiadores comentam inclusive que se tais factos viessem a público mais cedo, e ele não estivesse em final de mandato, Mitterrand poderia ter sido forçado a demitir-se. Outras facetas desta personalidade múltipla e complexa levaram-no a admitir o arrependimento. As mesmas mãos manchadas de sangue, ao ter recusado, em 1956, o indulto a 45 independentistas argelinos, condenados à morte, compunham poemas e belas colagens para a sua “Annamour”.
(Artigo publicado na VISÃO 1234, de 27 de outubro)
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