quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Moçambique deve ser dos países africanos que mais sofreu com a guerra.

Para mim, cada acordo que se assinou, a partir do de Lusaka com os portugueses, representou um passo rumo à paz. Moçambique deve ser dos países africanos que mais sofreu com a guerra. Os ressentimentos, a desconfiança e as desuniões que essa guerra criou não podiam desaparecer num único dia. Não há, todavia, que negar que cada um desses acordos salvou vidas. E resultaram da entrega sincera de muitas pessoas que se engajaram na procura do fim da guerra.
Peguemos por exemplo, os acordos de paz de 1992. Esses acordos foram assinados num contexto de enorme polarização política. A partir dos meados da década 80 o país estava paralisado em todos os sentidos. A mortandade grassava do Rovuma ao Maputo. A desconfiança era total. Falar em negociar com a Renamo equivalia a um crime de traição. Entretanto, quase todos os dias, camiões passavam pela Av. 24 de Julho ou pela Av. Eduardo Mondlane carregando corpos estropiados ou mortos, rumo ao hospital central. Não se podia sair 10 km fora das cidades...
Foi necessário muita coragem de parte dos pastores, dos bispos e, principalmente, do Presidente Chissano, para encetar os primeiros passos e falar com a Renamo. O Bispo D. Jaime conta que, quando se foi encontrar com Dlhakama na Gorongosa, não sabia se não seria detido "quando regressasse ao país".
Numa acção pedagógica sem igual, o Presidente Chissano teve de convencer o seu bureaux político, o seu governo, o SNASP, o exército... que era preciso falar com a Renamo. Teve, adicionalmente, de convencer o povo que a propaganda e os massacres haviam ensinado a ver a Renamo como simples bandidos, de que o fim da guerra implicava falar com a Renamo. Olhando o contexto retrospectivamente, não tenho dúvida das angústias e das hesitações porque terá passado o Presidente Chissano. E das incompreensões, também.
Eventualmente assinaram-se os Acordo de Roma. Quantas vidas foram salvas por este acordo?
Para mim, cada um destes acordos não nega o outro. Complementa-o. Cada um deles é um tijolo importante na construção da confiança. Dela nascerá uma tolerância cada vez maior. E dessa confiança esqueceremos os ressentimentos e tudo o que nos divide.
Desde 1992 há menos guerra em Moçambique. Aprendemos a viver juntos. O povo assumiu a cultura de paz. E pressiona para que não haja guerra. Talvez seja por isso que os conflitos subsequentes, de 2013 e de 2016, não se generalizaram. Permaneceram, no geral, relativamente contidos. Desde 1992 ha, nas nossas famílias, abertamente, gente da Renamo e da FRELIMO. Já não é crime convivermos.
Oxalá se assinassem mais acordos que, cada dia, reduzissem a conflitualidade. Porque a paz implica acordos, implícitos ou explícitos. Sobre economia. Sobre governação. Sobre distribuição sectorial ou territorial de orçamentos. Sobre relações religiosos. Sobre equilíbrio no acesso ao poder. Sobre... acordos todos os dias e todos os minutos
Comentários
  • Zé Martins "Acordar" para a Paz é um exercício diário.
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  • Bruno de Castro Muito bem falado, Régulo Muthisse....
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  • Dário Cláudio Dias Muito bem Camarada. Gostei!
  • Cossito Freitas NThiosso lehi.
  • Gilberto Correia Boa Gabriel Muthisse. Entretanto, melhor seria investirmos na acção sobre as causas que nos levam aos conflitos com o mesmo afinco e dedicação que dedicamos quando buscamos tais acordos de Paz para cessar conflitos que eventualmente poderiam ser evitados. 

    Assim sofreríamos menos, desenvolver-nos-iamos mais e teríamos uma Paz duradoura. Não há nenhuma vantagem para ninguém em andarmos nestes processos longos, penosos, sinuosos e conflituosos de guerra-paz-hostilidades militares-paz- conflitos armados- paz. 

    Há que buscar mais eficácia e efectividade.
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  • Cal Barroso Com certeza. Acho no entanto que em muitos desses acordos deixamos de atacar os PROGENITORES de todos os males: os órgãos eleitorais.
    • Gabriel Muthisse Cal Barroso, o problema é a desconfiança. A questão dos órgãos eleitorais também tem sido abordada. Foi abordada em Roma. Foi abordada na Conferência Multipartidária, creio que em 1993, foi abordada nas negociações da Joaquim Chissano...

      Creio que te 
      lembras de ouvir Dlhakama a dizer que as eleições de 2014 seriam as mais transparentes de sempre. E que ninguém teria motivos e razão de reclamar. E sabes que não foi assim.

      Dlhakama disse que as eleições de 2014 seriam transparentes porque as suas ideias sobre estruturação dos órgãos eleitorais foram todas acolhidas.

      Confiança, meu irmão. No dia que houver confiança, o Ministério da Administração Estatal poderá vir a organizar eleições. Ou um corpo de juízes indicados entre eles, sem interferência de nenhum dos interessados
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    • Cal Barroso Exacto, devíamos concentrar as nossas forças aí...fico com a impressão de que nos “distraímos” com muitas coisas “supérfluas” e “namoramos” muito pouco com o essencial.
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    • Dinis Chembene Cal Barroso órgãos eleitorais e instituições do estado no geral devem ser fortalecidas. Por exemplo a forma como é vista/age a policia não ajuda.

    Escreve uma resposta...

  • Alberto Kavandame Pena que talvez muitos não tem acesso a este didático post!
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  • Gabriel Muthisse Gilberto Correia, nesse exercício de negociação, que por ora é espalhafatoso, é sensacional... também se abordam as causas do conflito. Nas negociações de Roma houve até um capítulo sobre isso.

    Neste momento, as negociações (também sobre as causas dos
    conflitos) e os acordos são barulhentos porque a guerra foi barulhenta e as feridas foram profundas.

    Vamos rezar para que, doravante, as negociações e os acordos sejam "normais", sem barulho e sem espalhafato. Isso será assim se não houver ressentimentos, se não houver desconfiança. Isso será como desejas se houver tolerância e respeito para com as posições do outro. E será como preconizas se descobrirmos que, nas nossas diferenças, todos amamos Moçambique
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  • Luis Mucave Muito pertinente este post.
    Didático e profunfo.
    Parece uma preleção pastoral.

    O conteúdo deste post pode ser a lanterna para um Moçambique de todos.
    Eu sempre uso um princípio com os mais jovens coléricos e prontos a saltar para a jugular,camaradas meus do Partido FRELIMO.
    Eu digo assim,é possível MUDAR SEM MUDAR DE LADO e esse mudar sem mudar de lado é o resumido neste post.
    Obrigado e parabéns mais velho
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  • Constantino Pedro Marrengula Dr Gabriel Muthisse, obrigado. O último parágrafo resume o desafio maior. Oxalá, que se assinem mais acordos.
  • Antonio A. S. Kawaria Excelente o teu texto meu amigo Gabriel Muthisse.
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  • Calton Cadeado Aldo Ajello, o boss da ONUMOZ, escreveu um bom texto intitulado “Mozambique: implementation of Peace Agreement”. Andrea Bartoli, representante especial da comunidade de Sant’ Egidio, nas negociações de Roma, escreveu um texto , igualmente bom, com o título “Mediating Peace in Mozambique”. 

    Os dois autores são unânimes em afirmar que a assinatura do AGP e a sua implementação deveu-se, em grande medida, a pressão e a vontade popular.

    Eu reconheço o peso da pressão e da vontade popular, mas destaco, particularmente a dos militares, quer da Renamo, quer do governo. Estes, muitas vezes marginalizados do debate, a sua importância para a paz foi vital. A prova disso é que quando se assinou o AGP, a grande maioria não hesitou em entrar para o DDR. A maioria foi tão expressiva que na altura de fazer as FADM tivemos que mendigar a permanência de alguns e isso nem foi suficiente para atingirmos os 30.000 homens e mulheres preconizados no AGP. Isto representou um claro sinal de fadiga de guerra.

    Ademais, quando tivemos as constantes ameaças de retorno a guerra, os que passaram pelo processo de DDR mantiveram-se comprometidos em nunca mais retornar a guerra. A prova bem evidente disso aconteceu em 2012, aquando do retorno de DHL a Gorongoza. Muitos ex-guerrilheiros firam remobilizados, mas recusaram voltar a guerra. Eu testemunhei casos de pessoas, em Tete, que foram a Gorongoza, mas depois voltaram às suas vidas!

    Por último, o próprio retorno e confinamento de DHL a Gorongoza foi obra dos militares que se mostravam cansados de aguardar, 20 anos, por cumprimento de promessas de DDR condigno!
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  • Fernando Chiconela "Cada um destes acordos complementa o outro". Esta e' a longa marcha. Precisamos perdoar quantas vezes for necessa'rio. Os alicerces da Paz residem em cada um de no's. Onde tivermos que salvar vidas, teremos sim de assinar quantos acordos forem necessa'rios. E' penoso, mas, esta e' a marcha a fazer.
  • Noa Inacio Este Gabriel Muthisse porra pah. Qual Madoda como um Mutisse mesmo não aquele magrinho mafioso. Sim senhora, grande texto, isto sim é querer paz.
  • Frederico Pereira Relamente Dr.. concordo e assino!! temos que fazer sim
  • Benjamim Tomas-Antoni Certo! Com seu consentimento caro Gabriel Muthisse posso repassar nas redes?
  • Mauro X Paulo Eu acho que não se deveria assinar acordos de paz sem que o STAE/CNE participasse deles. Eles são na minha visão os maiores catalisadores da quebra de acordos. Com eles, vamos assinar acordos até morrermos todos, e não restar mais ninguém para assinar acordo algum. 
    O primeiro passo é nos perguntamos o que faz o STAE/CNE perpetuar tais comportamentos que sempre nos levam a conflitos.
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  • Gito Katawala That's the talk we need brother Gabriel.

    Têm que aparecer mais exemplos, mais "mentes" como esta.


    A Luta Continua!
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  • Hermes Sueia .....E os acordos deviam ser mais barulhentos, mais espalhafatosos. Ontem lia-se na cara dos dois principais assinantes um compromisso com o espírito e letra do que estavam acordando.Não vi barulho, não vi espalhafato, com o devido respeito pela opinião do mano Gabriel Muthisse. Barulho sim é causado pelo matraquear da Kalashinikov........Resolvam por favor a pouca vergonha da CNE e do STAE.
  • Hermes Sueia ......Que não haja mais Marromeus, mais Alto Molocues, etc, etc........
  • Candido Junior Um único senão é que andamos a assinar acordos caríssimos. A razão é porque para uns, auto-entitulados "os que não comem", quem se encontra do outro lado é que é o detentor do taxo e portanto, há que reparti-lo. Ora o tal taxo afinal tem que vir de entidades internacionais de boa vontade com as implicações económico fincanceiras que tais actos de "boa vontade" acarretam para o país.
  • Pedro Comissario Uma reflexão profundamente correcta numa linguagem estilisticamente escorreita. O Muthisse no seu melhor! Sim, os acordos são uma forma de resolução de conflitos ou, se quiser, da gestão da sua transformação que deve ser levada muito a sério como Moçambique, através da sua história, sempre o fez. Incluindo o de ontem. Voluntarismo e simples boa fé não são suficientes para que o acordo vingue. Isso é válido nas relações privadas como nas relações inter-estaduais. Como dizia o Presidente Chissano ontem (cito de memória) é preciso regar a paz para que ela viva e prospere.
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  • Lorena Massarongo Haja sustentabilidade!
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  • Lenine Daniel Bem dito! A paz se constrói dia à dia com dedicação, afinco e cedência de todos. Belo texto!
  • Lorena Massarongo A versão dinamarquesa de Acordo de Cessação de Hostilidades: propriamente-dito porque ABRANGENTE ao TODO e não apenas a privilegiados grupos restritos e/ou de interesses particulares, comprometido com as gerações vindouras e por isso SUSTENTÁVEL a longo prazo!
    -6:12
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  • Manuel Araujo Peimo, passavam quase todos dias na E. Mondlane e na 24 de Julho camioes de mortos e feridos? Realidade ou ficcao? Quase todos os dias?
    • Gabriel Muthisse Manuel Araujo, quantas vezes Taninga, Maluana, 3 de Fevereiro, a linha de Ressano, a estrada da Namaacha... foram atacadas? Com que saldo, em termos de mortes e de estropiados? Meu primo, morreu muito civil por aqui!
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    • Gabriel Muthisse Mas o post é sobre PAZ

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