09.12.2018 às 22h00
O apartamento onde Sócrates está a morar foi entregue ao primo em troca de empresa referenciada na acusação da Operação Marquês
A notícia espalhou-se rapidamente na semana passada. A 16 de outubro de 2018 um apartamento T4 na Ericeira mudou de dono. Um empresário angolano de nome Fernando dos Anjos Ferreira entregou-o como “dação em pagamento” para saldar uma dívida que tinha com José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, também empresário em Angola e um dos arguidos da Operação Marquês, acusado de cometer dois crimes de lavagem de dinheiro por alegadamente ter servido de testa de ferro do seu primo direito José Sócrates, quando este era primeiro-ministro. Semanas depois dessa dação, Sócrates instalou-se no apartamento e assumiu-o como a sua nova morada oficial no Tribunal Central de Instrução Criminal, onde em janeiro deverão começar as sessões da fase de instrução do processo em que é acusado de 31 crimes, incluindo três crimes de corrupção. Mas quem é exatamente esse empresário angolano que cedeu a casa na Ericeira ao primo do ex-primeiro-ministro? E por que razão o fez?
Numa resposta enviada ao Expresso, Fernando dos Anjos Ferreira revela que a dívida tem que ver com a compra das Salinas do Tchiome, uma empresa de produção de sal em Baía Farta, na província de Benguela, que era detida por José Paulo Bernardo Pinto de Sousa. “Por assunção da posição comercial por mim efetuada em uma das suas sociedades, ficaram os anteriores sócios detentores, nomeadamente, de um direito de crédito que, certamente, teria de ser cumprido e respeitado. A forma como tal obrigação foi cumprida — dação em cumprimento — diz respeito, naturalmente, à liberdade das partes e autonomia contratual e resulta da convergência de vontades e interesses mútuos”, diz.
José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, por sua vez, acrescenta que o negócio realizou-se em 2016. “Foi acordado que o cumprimento das obrigações contratuais daí decorrentes seria efetuado através de uma dação em pagamento, o que veio a suceder tendo como objeto o apartamento localizado em Portugal na Ericeira”, escreveu o primo de Sócrates num e-mail enviado ao Expresso.
UM PREÇO “DE MERCADO”
As Salinas do Tchiome aparecem referidas no despacho de acusação da Operação Marquês que o Ministério Público concluiu em outubro de 2017. Segundo esse despacho, depois de ter decidido vender à Escom, empresa do Grupo Espírito Santo (GES) em Angola, as salinas que possuía na província de Benguela (num total de 70 hectares) para a construção de um condomínio (projeto Bela Vista), a família Pinto de Sousa transferiu a produção de sal que tinha ali para uma área de mil hectares num local conhecido como Tchiome e que é propriedade do Estado de Angola.
De acordo com o MP, em maio de 2006 o primo de Sócrates recebeu numa conta da Suíça um total de seis milhões de euros com origem no GES e que foram justificados no banco UBS como um adiantamento do negócio de venda das salinas Pinto de Sousa. Os procuradores acreditam que o verdadeiro beneficiário desse dinheiro foi o então primeiro-ministro, como um suborno por causa da OPA sobre a Portugal Telecom.
Entretanto, em 2012 a sociedade Salinas do Tchiome, Lda foi criada a meias por José Paulo Bernardo Pinto de Sousa e por Miguel Bataglia, sobrinho de Hélder Bataglia, fundador da Escom e também ele arguido na Operação Marquês por crimes de branqueamento de capitais, incluindo o de ter sido intermediário na transferência dos seis milhões de euros em 2006. A empresa adquiriu na altura, pelo preço de 557 mil euros, o direito de superfície dos mil hectares de terrenos no Tchiome por um período de 60 anos ao governo provincial de Benguela. Foram essas salinas que passaram a ser controladas por Fernando dos Anjos Ferreira.
O preço determinado para a casa na Ericeira na “dação em pagamento” em outubro deste ano foi de 380 mil euros, 25% mais barato do que o valor médio por metro quadrado pago três meses antes por um outro apartamento no mesmo prédio vendido a um empresário brasileiro. No final, o valor não chegou para cobrir toda a dívida de 500 mil dólares (431 mil euros) assumida na escritura, ficando ainda por pagar 51 mil euros. Fernando dos Anjos Ferreira considera o montante ajustado: “O imóvel em causa encontrava-se à venda — através de conhecida empresa de mediação imobiliária — desde 2013, não tendo logrado obter qualquer interessado para a compra do mesmo. O preço em causa é um preço claramente de mercado e que tem em conta todas as especificidades do imóvel.”
Questionado ainda sobre se tinha ideia de que José Sócrates estava entretanto a residir no apartamento, o empresário diz que “não tinha qualquer conhecimento anterior de qual seria o uso que o seu novo proprietário iria dar ao imóvel”. Sobre isso, o primo do ex-primeiro-ministro diz: “Estando a casa desabitada (vivo em Angola e só uso a casa durante breves estadas em Portugal) convidei um familiar, que muito estimo e admiro, para a habitar.”
A imprensa angolana identifica Fernando dos Anjos Ferreira como um construtor civil e antigo sócio do general Higino Carneiro, que foi ministro das Obras Públicas entre 2002 e 2010 e ocupou entretanto o cargo de governador de Luanda (até 2017), sendo atualmente vice-presidente da Assembleia Nacional, o parlamento angolano. Higino Carneiro foi um dos nomes do regime de Angola denunciados pelo antigo embaixador angolano junto da ONU Adriano Parreira e pelo jornalista Rafael Marques ao Ministério Público em Portugal, que deu origem a um inquérito-crime no DCIAP em 2012 por suspeitas de branqueamento de capitais. Esse processo acabou por ser arquivado no ano seguinte em relação ao general Higino Carneiro e a outras figuras.
Em Angola, Anjos Ferreira é fundador e administrador de um grupo com as iniciais do seu nome, FF, e que começou por se especializar em construir projetos de habitação a preços acessíveis, com a empresa EFES. O grupo expandiu-se depois para outras áreas — comércio, agricultura, telecomunicações, energia, joalharia, saúde.
Em Portugal, o empresário tem negócios deste 2010. É dono de uma empresa de consultoria, a Univercosmos, com escritório no Parque das Nações, em Lisboa, e de uma firma em Coruche criada em 2015, a Tecnology Solutions IT, de montagem e reconfiguração de telemóveis (e que usa a marca Iki Mobile).
VIZINHO DESDE 2006 DE HIGINO CARNEIRO
Este verão a Procuradoria-Geral da República de Angola admitiu vir a abrir um inquérito-crime contra Higino Carneiro por causa de irregularidades ocorridas quando o general ocupava o pelouro das Obras Públicas, depois de a Inspeção-Geral da Administração do Estado (IGAE) ter revelado em agosto que há 11 anos, em 2007, aquele Ministério não justificou 115 milhões de dólares de despesas.
Confrontado pelo Expresso, Fernando dos Anjos Ferreira desmente ter sido alguma vez sócio do atual vice-presidente do parlamento angolano: “Tenho uma relação de saudável amizade com o general Higino Carneiro, que se estende a ambas as famílias. No plano profissional nunca fomos sócios.” O empresário nega ainda que o general lhe tenha atribuído qualquer obra enquanto foi ministro.
Na Ericeira, ambos compraram apartamentos no mesmo prédio em 2006, de acordo com documentos consultados pelo Expresso numa conservatória do registo predial. Higino Carneiro comprou uma casa no terceiro piso, enquanto Anjos Ferreira escolheu um T4 dois andares abaixo.
“O facto de existir uma relação de amizade que perdura há várias décadas entre ambas as famílias levou a que, quando ponderada a aquisição de um imóvel em Portugal, em 2006, ou seja, há 12 anos, se tenha optado por cada um adquirir a sua habitação no mesmo prédio”, explica o empresário angolano. O Expresso não conseguiu contactar o general.
Sem comentários:
Enviar um comentário