quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Os democratas podem ter conquistado a Câmara dos Representantes, mas têm uma profunda reflexão pela frente. Nas primeiras eleições pós-Trump, o Congresso fica tão dividido como o país que representa.

Intercalares nos EUA. O travo amargo da vitória democrata tem um nome: Donald Trump /premium

07 Novembro 2018
Os democratas podem ter conquistado a Câmara dos Representantes, mas têm uma profunda reflexão pela frente. Nas primeiras eleições pós-Trump, o Congresso fica tão dividido como o país que representa.
Ou vai, ou racha. Foi esse o caráter que estas eleições intercalares assumiram para o Partido Democrata em 2018. Depois de uma derrota inesperada contra Donald Trump nas presidenciais de há dois anos, o partido colocou todas as fichas nesta eleição: na América pós-Trump, a vitória nas intercalares era o único resultado aceitável.
“Se não ganharmos, com Trump e esta loucura toda, e com o ódio horrível e o medo que ele semeou… Se não ganhamos este ano, vai ser um golpe psicologicamente duro.” O ex-governador democrata da Virginia, Terry McAuliffe, resumia em poucas palavras o sentimento geral entre democratas à revista Atlantic, durante o dia da votação. Após a noite eleitoral, com as vozes roucas e os olhos pesados de tanto olhar para os resultados nos televisores e smartphones, o balanço final para os democratas é contraditório. Por um lado, a conquista da Câmara dos Representantes é suficiente para os fazer respirar de alívio. Por outro, a derrota no Senado — embora não seja um golpe que fere de morte o Partido — deixa-o magoado nas suas ambições e no seu orgulho. E, a juntar-se a isso, a divisão do Congresso deixa exposta uma divisão na sociedade norte-americana tão ou mais profunda do que a que emergiu em 2016.
A líder dos democratas na Câmara, Nancy Pelosi, fez a sua parte e reclamou vitória, anunciando “um novo dia na América”. Mas, do outro lado da barricada, o Presidente Donald Trump já se tinha antecipado no Twitter ao reclamar para si o “tremendo sucesso” da noite eleitoral. Pouco depois, a sua conselheira Kellyane Conway apressou-se a acrescentar que a vitória no Senado é “histórica” e deve ser imputada ao Presidente.
Da Casa Branca, a estratégia será precisamente aquela que o Politico tinha anunciado poucos dias antes da eleição, quando as sondagens já previam uma câmara baixa para os democratas e uma alta para os conservadores: spin comunicacional para enquadrar o resultado no Senado como uma “vitória” — não dos republicanos, mas sim de Donald Trump. O foco seria colocado no intenso esforço de campanha feito pelo Presidente nos últimos meses, provando que Trump ganha eleições para os seus candidatos, como foi com Joe Donnelly no Indiana ou Marsha Blackburn no Tennessee. O facto de o milionário também ter feito campanha por vários republicanos que foram derrotados na Câmara dos Representantes será, gentilmente, empurrado para debaixo do tapete.
Nancy Pelosi, atual líder democrata na Câmara dos Representantes, fez um discurso de vitória apelando ao bipartidarismo (BRENDAN SMIALOWSKI/AFP/Getty Images)
Mas, afinal de contas, o resultado pode, de facto, ser encarado como uma vitória para Trump e para os republicanos ou nem por isso? Bom, tudo depende das lentes que se colocam. A História das intercalares mostra-nos que alguns Presidentes tiveram derrotas pesadas, como Ronald Reagan em 1986, quando perdeu o controlo do Senado para os democratas (a Câmara dos Representantes já era azul a essa altura). Bill Clinton, em 1994, foi ainda mais esmagado, numa eleição que ficou conhecida como a “Revolução Republicana”, devido à perda de controlo dos democratas das duas câmaras. Por outro lado, em 2002, George W. Bush viu o seu partido aumentar o número de representantes e senadores, podendo assim cantar vitória. Desta vez, nada é assim tão óbvio. Mas uma coisa é inegável: apesar de tudo, Trump já não terá a vida tão facilitada para governar. O que não invalida outro ponto: o de que a “onda azul” democrata que alguns previam também não se confirmou

A “política arco-íris” que deu a Câmara dos Representantes aos democratas

A História não é, por isso, grande professora nesta matéria, já que há resultados e composições do Congresso para todos os gostos. Com um resultado misto como o de 2018, cada lado pode puxar a brasa à sua sardinha: os democratas reclamarão vitória, depois de afastarem os republicanos da Câmara dos Representantes; Trump gabar-se-á de que não só manteve o Senado, como aumentou o número de senadores conservadores. Mas os primeiros terão de aceitar e lidar com o facto de que não conseguiram estender essa onda de mudança ao Senado, tendo até perdido lugares importantes, que pareciam estar garantidos. E o Presidente, por seu turno, terá de aprender a lidar com uma câmara baixa que lhe colocará obstáculos no caminho e o desafiará em várias frentes.
A conquista da câmara baixa dos democratas assentou, sobretudo, numa união de esforços que apelou aos eleitores das grandes cidades e dos subúrbios, sobretudo entre os votantes mais jovens, de minorias e com mais estudos. Alguns dos distritos mais relevantes foram ganhos pela chamada frente “arco-íris” de candidatos mulheres ou de minorias, que representam um Partido Democrata mais encostado à esquerda, em busca de votos nas questões identitárias e de resistência a uma Casa Branca com um discurso que raia por vezes a xenofobia.
Jennifer Wexton foi uma das muitas mulheres democratas a conseguirem vitórias importantes para o seu partido na Câmara dos Representantes (Alex Wong/Getty Images)
Uma mulher (Jennifer Wexton) produziu uma vitória inesperada no 10º distrito da Virgínia. No 14º distrito do Illinois, uma mulher negra abertamente defensora do Obamacare (Lauren Underwood) destronou um representante republicano que já estava no cargo, num distrito maioritariamente branco que nunca tinha eleito um negro. No 19º distrito de Nova Iorque, uma zona predominantemente rural do estado, o negro Antonio Delgado saiu vencedor, apesar de ter sido retratado pelos adversários na campanha como um perigoso delinquente devido ao seu passado como rapper.
A enumeração podia continuar. Mas se a estratégia foi vencedora no distrito a distrito, no Senado o cenário muda de figura. Sabendo que, nas corridas para a câmara alta, o voto das minorias e dos eleitores dos subúrbios é colocado frente a frente com o voto rural, a estratégia do partido foi diferente para muitos lugares-chave. Em estados tendencialmente conservadores, onde Donald Trump foi eleito por ampla margem, os candidatos democratas eram tendencialmente moderados para compensar. Claire McCaskill, no Missouri, e Joe Donnelly, no Indiana, tinham ainda a vantagem de estarem a lutar pela reeleição, o que geralmente favorece a vitória — e, no entanto, saíram derrotados.
Candidatos que podiam representar uma viragem possível no Senado, como o moderado Phil Bredesen no Tennessee ou o energético Beto O’Rourke no Texas, perderam. Em ambos os estados, um dos temas preferidos de Donald Trump teve grande peso: a imigração. Uma exceção assinalável a esta onda de perdas democratas no Senado foi a de outro moderado: Joe Manchin, na Virgínia Ocidental, segurou o seu lugar num dos estados onde Donald Trump teve um resultado esmagador em 2016 (68,5%). Mas é parca consolação para um Partido Democrata que necessitava de segurar os seus lugares e ganhar outros 19 para conseguir virar o Senado — e que acabou a noite eleitoral a perder senadores.
Podem os ganhos dos democratas na Câmara ser suficientes para compensar as perdas no Senado? Com uma diferença tão curta na câmara alta, mesmo que o Partido Democrata roube a eleição presidencial de 2020 a Trump, terá pela frente um Senado pouco disposto a colaborar. É um golpe que não deixa o partido fora de combate, muito pelo contrário. Mas relembra-nos que os democratas ainda vão precisar de lamber umas quantas feridas depois desta eleição.

O novo quadro eleitoral: quando a demografia suplanta a geografia

A divisão ao meio deste Congresso torna também evidentes as divisões entre eleitorado. O caso da muito mediatizada corrida para o Senado no Texas é bom exemplo disso. De acordo com as projeções da NBC, o democrata Beto O’Rourke assegurou uma esmagadora maioria dos votos das minorias (63% dos latinos, 89% dos negros). Contou também com o voto dos mais jovens. Mas Ted Cruz agarrou o voto dos eleitores brancos (65%) e dos mais velhos, que geralmente têm números de participação eleitoral mais elevados.
Nancy Pelosi bem pode ter prometido união e bipartidarismo no seu discurso de vitória, mas os números revelam a verdade nua e crua: os Estados Unidos da América continuam, pelo menos, tão divididos como quando saíram das eleições presidenciais de 2016. A diferença relativamente ao passado é que, como relembra a New Yorker, a divisão já não se faz pelas antigas tendências geográficas: costa leste e oeste mais liberais, estados do sul mais conservadores e um midwest com um pouco de tudo. Agora, é a demografia quem manda, com as tendências de voto a dividirem-se por urbanos e suburbanos vs. rurais, minorias vs. brancos, eleitores com mais estudos vs. menos escolarizados.
Beto O'Rourke era uma das esperanças dos democratas para virar o Senado, mas a falta de apoio dos eleitores brancos e mais velhos foi decisiva (Drew Anthony Smith/Getty Images)
Na noite de terça-feira, Sherrod Brown, um dos senadores democratas que pôde cantar vitória ao segurar o seu lugar pelo Ohio — um estado do Rust Belt onde Trump colheu eleitores fruto dessa demografia — deu a receita que acredita porder levar os democratas ao sucesso em 2020: “Vocês [eleitores] provaram que ao colocar as pessoas primeiro e ao honrar a dignidade do trabalho, podemos ganhar num estado onde Donald Trump ganhou por quase 10 pontos”, afirmou. “Mas demonstraram também que o fazemos sem comprometer os direitos das mulheres ou os direitos civis ou os direitos LGBT.”
Com Brown a lançar as pistas para o Partido Democrata conseguir alinhar uma estratégia vencedora para 2020, refresca-se a atualidade do velho chavão que diz que as presidenciais se começam a preparar no dia a seguir às intercalares. Os democratas agarram-se a vitórias como as de Wexton, Underwood ou Delgado para inflamar mais a sua vitória na Câmara dos Representantes e preparam o futuro piscando também o olho à classe trabalhadora branca em alguns estados-chave.
Este não é, porém, um caminho tranquilo até à vitória. Madrugada dentro, com a maioria dos discursos proferidos, os ânimos mais calmos e alguns americanos já a caminho da cama, Donald Trump regressou ao Twitter para citar um antigo speech-writer de Nixon, Ben Stein: “Nos últimos 105 anos, só cinco vezes é que um Presidente no cargo conseguiu ganhar lugares no Senado no ano intercalar. O senhor Trump tem magia dentro dele.” Os democratas podem bem ter conseguido uma vitória, esta terça-feira, que irá complicar a vida ao Presidente — mas ele está mais do que preparado para esfregar sal nas feridas que lhes infligiu em 2016.

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