De Marcelo Mosse, com a devida vénia.
Crónica de rádio
Há dias quando correu a notícia da partida do Nassurdine Adamo, pensei no Djáfaro. Em Inhambane, quando éramos miúdos, o Djáfaro era o protótipo do hippie local, se passendo na Avenida com suas calças abotoadas por cima do umbigo, esvoaçando a boca de sino, e uma aura de chalambiano narigudo em sua melomania espantosa. Lembrei-me sobretudo do rádio. E da Rádio. Das ondas de hertz e das pessoas que viviam profundamente em seu diapasão. Percorri as memórias de um caminho onde a rádio e suas gentes me assomam nas vitrinas do tempo. Desde muito cedo! No isolamento com a guerra, quando descobrimos a rádio musical sul africana. A Five FM ou a Capital 604 em onda média com a portentosa animação de Óscar Renzi. E a Metro FM com Joseph Tsabalala. O top 40 da Five, aos domingos às 10, era uma religião. Isolada do mundo, Inhambane se pendurava na rádio. Na cultura espalhada pela rádio.
Meu pai era um fanático do Londres Última Hora, da BBC, às 22. Para manhambana, era gratificante. Na BBC havia um bitonga passeando sua classe. O Suleman Cabir. Se pelas ondas recebíamos da RAS o pop e rock mais recente (mas também coisas weird tipo Simon and Garfunkel ou mesmo Lou Reed e Velvet Underground), de Londres vinha o noticiário inquinado de guerra fria e da metrópole o relato da bola entre quatro linhas. Não havia indiano de Inhambane, uma casta muito local, que não estirasse a antena de um Xirico para conectar no melhor som através dos desusados cabos de telefonia fixa para ouvir um derby alfacinha.
A rádio era tudo! Era nosso pão em cada refeição. Fosse no golpe perfeito da cana (na verdade era mesmo um fio no dedo com anzol) acertando um cherewa na maresia morna da ponte-cais. Ou entre dois mergulhos na prancha grande de Balane. A cidade foi sempre um viveiro de radialistas de enorme criatividade. Locutores de timbre elegante e sonorizadores de verve melómana. Pensei neles naquele dia em que o João de Sousa postou um singelo obituário chamando o Nassurdine de qualquer coisa como super-tutor de muitos profissionais de rádio que vieram e foram ao longo dos tempos.
Eu nunca conheci pessoalmente o Nassurdine. Mas, mesmo assim, sempre me referia a ele com orgulho. Era um dos mais representativos radialistas oriundos de Inhambane. Pensei neles todos. No Izidine Faquirá, que fez da Rádio Cidade um bastião de boa cultura e ensinou muitos ouvidos moçambicanos a escutar jazz. Faquirá foi dos culpados pela romaria de milhares num dia para a Matola para ouvir os Four Play sem o Chuck Loeb. Lembrei-me de finados como José Custódio e Agostinho Luís (“Aló Leões da Floresta”). E de prata mais recente com o Hélder Izidine no pedestal, ele que tentou compor nos alinhamentos da RM seu compasso pop-rock herdado das vivências da Five. De Inhambane, há gerações distintas ligadas apenas pela elegância de sua voz e dicção. Armindo Sumburane. João Fumane. Neima Izidine. Não me recordo de todos. Mas não me esqueço doutros que se moldaram na sombra do Nassurdine. Sobretudo do Ismael Mamudo e, outra vez, do Djáfaro. Sim o Jafar Adamo, irmão mais novo do Nassurdine. Um tipo “easy going” com charme avultado. Um manhambana de gema, cheio, como todos, daquela cultura musical intrínseca a quem cresceu numa cidade onde outros tentaram criar ritmos insondáveis como o “bitonga blues”, do Alexandre Chaúque, derradeiro locutor da minha adolescência, rendido a Isac Hayes.
Há dias, quando me cruzei com estas memórias, pensei no jornalismo e na locução de rádio e de uma coisa que, cada vez mais, vamos perdendo: qualidade. É certo que temos hoje mais canais de oferta de informação e cultura, mas a baixa qualidade também nos afasta da rádio. Isso decorre das reformas compulsivas. Gurus como Izidine Faquirá são obrigados a pendurar as chuteiras, porque completaram os anos de trabalho ou a idade obrigatória para aposentação.
Na RM como na TVM, é preciso fazer como na CNN: juventude como Don Lemon tem seu espaço assegurado em prime time mas o Wolf Blitz não foi encostado à parede. Essas regras de reforma compulsiva nāo deviam ser extensivas aos profissionais da indústria criativa do sector público. Elas estão bloqueando a passagem do testemunho, matando a qualidade. No caso do Nassurdine, sua partida chegou, mas há muitos que estão na reforma quando poderiam contribuir mais activamente para o controlo da qualidade. Fazer rádio é uma arte. Que se aprende de influências, tal como o Nassurdine influenciou uma fornada de gerações....
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