Prólogo para um renovado debate sobre a cannabis em Moçambique
A reação pública cá entre portas sobre a legalização do uso privado da cannabis na RAS foi alarmista. O enfoque da conversa se centrou nos efeitos que essa legalização pode ter no incremento do consumo recreativo da soruma, e os danos que ela causa no cérebro sobretudo com o uso exagerado da espécie com alto teor de THC (Tetrahidrocannabinol), e as consequências para a saúde pública. Mas o debate terá de ser alargado para outras esferas (outras utilidades). Nosso país terá de tomar uma posição clara sobre o que pretende fazer com a cannabis (mais alinhada com as reformas legais e de políticas públicas introduzidas recentemente nos quatro cantos do mundo) e não ficar de braços cruzados, olhando o navio a passar para depois irmos a reboque. É o que proporei num próximo artigo.
Mas antes disso pretendo fazer jus à História, recuperando, para benefício dos mais novos e dos habituais desatentos, o grande debate que Moçambique assistiu sobre o assunto, promovido pelo jornalista Carlos Cardoso em 1996 e a tentativa de se descriminalizar a cannabis, numa iniciativa que teve o apoio inequívoco de dois então deputados da AR na primeira legislatura multipartidária: o proeminente jurista Abdul Carimo Issá e a falecida escritora e jornalista Lina Magaia. Na biografia de Carlos Cardoso (É Proibido Pôr Algemas Nas Palavras, Ndjira 2003 e Caminho 2005; Telling The Truth In Mozambique, Double Storey 2004), escrita pelo jornalista Paul Fauvet e por mim, há uma pequena secção dedicada esse debate. Ei-la:
“Uma das campanhas mais idiossincráticas de Carlos Cardoso foi pela legalização da cannabis. Não era simplesmente a nostalgia de um antigo estudante da Wits. Cardoso argumentava que a planta cannabis sativa não era apenas uma droga: pode ser utilizada como fibra para produzir roupa, cordas e mesmo papel. Era um recurso valioso, cultivado facilmente no clima moçambicano, e era criminalizada meramente porque era também usada como droga leve. A guerra contra a droga feita pela polícia era principalmente uma guerra contra a cannabis.
Regularmente, a polícia anunciava a destruição de machambas de soruma mas muito raras eram as notícias de cocaína ou heroína apreendidas (...). Cardoso notou que no passado bebidas alcoólicas locais eram suprimidas pelos governantes coloniais com o objetivo de garantir um mercado para o vinho português de baixa qualidade.
Agora a história repetia-se, com a repressão contra uma droga local inofensiva, enquanto moçambicanos poderosos ganhavam somas fabulosas no tráfico de drogas pesadas. Não duvidava da necessidade de uma luta contra ‘as drogas que matam’, mas argumentava que essa luta era dificultada pela inclusão da soruma. ‘Neste momento, como tudo é ilegal, os traficantes das drogas pesadas têm a solidariedade dos comerciantes das chamadas drogas leves’, escreveu Cardoso. ‘Se o comércio da cannabis fosse legalizado, naturalmente os primeiros perderiam uma fatia gigantesca da solidariedade do mercado que lhes garanta a continuação das suas atividades criminosas’.
Talvez o governo precisasse de tempo para estudar o assunto mas ‘pelo menos deixemos de prender os nossos camponeses e comerciantes rurais informais’, apelou. ‘Enquanto o governo se senta e faz o esforço para ultrapassar camadas espessas de tabu e ignorância sobre esta matéria, pelo menos deixemos de prender os nossos técnicos da cannabis, os camponeses, e deixemos de prender a sua mercadoria’. Cardoso sugeriu ao próprio Presidente que o governo devia legalizar a cannabis. Aconteceu num encontro entre Chissano e jornalistas seniores em Março de 1996; o presidente pareceu genuinamente interessado em ouvir as preocupações dos jornalistas. Mas quando Cardoso levantou a questão da cannabis, o presidente teve dificuldade em responder: era um assunto completamente fora dos horizontes do governo.
A mentalidade de uma ‘guerra contra a droga’ estava tão profundamente enraizada nos políticos moçambicanos que os parlamentares ficaram absolutamente chocados, nos fins de 1996, durante o debate sobre um projeto de lei para aumentar as penas para tráfico de droga, quando ouviram dois deputados, Lina Magaia e Abdul Carimo Issa, a sugerir que a cannabis era na verdade uma planta útil. Magaia pensava que poderia ser uma fonte de receitas quando usada para fabricar papel. Carimo era mais ousado, sugerindo que a cannabis era menos perigosa do que o tabaco, e podia ser considerada a ‘planta do século em termos ecológicos’. Mas sobre esta questão havia uma maioria conservadora na Assembleia, que não queria ouvir alertas de que se a cannabis fosse equiparada às drogas pesadas então seria impossível aplicar a lei.
Contrariamente às intenções dos proponentes, o projeto-lei sofreu emendas, com o resultado de que a lei final equiparou a cannabis a toda a série de modernos estupefacientes e substâncias psicotrópicas. Aos olhos dessa lei, uma machamba de soruma e um laboratório que produzia cocaína eram exatamente a mesma coisa.
Contrariamente às intenções dos proponentes, o projeto-lei sofreu emendas, com o resultado de que a lei final equiparou a cannabis a toda a série de modernos estupefacientes e substâncias psicotrópicas. Aos olhos dessa lei, uma machamba de soruma e um laboratório que produzia cocaína eram exatamente a mesma coisa.
Cardoso sonhou que a cannabis podia ser uma cura milagrosa para o orçamento do Estado. O comércio de soruma não podia ser abolido: assim, logicamente, devia ser não somente tolerado mas também tributado, e o dinheiro do imposto sobre a cannabis usado para melhorar os salários no sector público. Ninguém queria seguir os passos de Cardoso nesse assunto: quando ele levantou a questão numa conferência internacional na África do Sul, um ministro sul-africano simplesmente disse que o único partido que inscrevera a legalização da cannabis no seu manifesto só teve um por cento dos votos nas eleições de 1994’”.
Mais de 20 anos depois, como se vê, até parece que o Tribunal Constitucional da RAS ouviu as recomendações de Cardoso. E em Moçambique? É pelo menos possível o governo organizar já já já um debate público sobre a matéria? Para de forma informada discutirmos o que pode ser feito? Há vários caminhos. Um deles apresentá-lo-ei num próximo artigo.
Sem comentários:
Enviar um comentário