Fome, doença e desespero: cinco venezuelanos contam o seu dia a dia /premium
Um locutor de rádio, uma reformada, um médico, uma jornalista e uma emigrante em Portugal: cinco venezuelanos relatam o dia a dia no país de Nicolás Maduro, afundado na crise e sem futuro.
A alimentação escasseia e a população perde peso a um ritmo que surpreende todos — em 2017, cada adulto perdeu, em média, 11,2 quilos. A saúde, tão caótica que leva os médicos a aconselharem os doentes a não irem ao hospital, por risco de contágio, é tão pobre que arranjar medicamentos obriga a gestos impensáveis. A insegurança leva muitos a ficarem em casa ainda antes de o sol se pôr. Na política, oposição e governo mantêm, cada um do seu lado, um parlamento da sua escolha, numa altura em que as eleições livres são uma miragem. E o futuro só é possível, para muitos, fora de fronteiras.
É este o retrato feito através do olhar de quem ali vive, para lá das estatísticas, das análises políticas, das visões externas, das reações dos mercados ou das opiniões académicas, que cada vez dizem menos aos 20 milhões de venezuelanos que sobrevivem em pobreza extrema. Quase todas as cinco pessoas que conversaram com o Observador descreveram-se como “privilegiados”. Porque ainda têm o que comer, um sítio para trabalhar e família, no estrangeiro, como plano B. Mesmo que a carne tenha passado a luxo mensal, que seja preciso comprar medicamentos no mercado negro ou que já não se saia de casa com medo do que pode acontecer.
Luis Miquilena é um empresário e locutor de rádio de 40 anos. Indira Rojas tem 28 anos e é jornalista no site Prodavinci. José Félix Oletta é médico de Medicina Interna e foi ministro da Saúde entre 1997 e 1999, até Hugo Chávez ser eleito. Ana Maria Rosario tem 67 e é reformada. E Carmen Pelayo, informática, tem 47 anos e vive em Portugal desde maio. Mudou-se para Ovar, depois de muito insistir com o marido, que era emigrante na Venezuela há quase 30 anos.
Todos foram unânimes no diagnóstico, repetindo palavras como “impossível”, difícil” ou “mau”. Mas mais comuns ainda foram outras duas: “dantes” e “agora”. As diferenças entre uma e a outra são abissais, como contam. E esse fosso entre passado e presente é determinante, também, naquilo que esperam do futuro — ou que deixaram de esperar.
Aqui, deixamos os seus relatos na primeira pessoa, retirados de mais de cinco horas de entrevistas. Para uma leitura mais fácil, editámos alguns excertos, mantendo-os sempre fiéis ao original.
Alimentação. “Pesava 119 quilos, hoje já estou nos 85, 90”
“Em agosto do ano passado, pesava 119 quilos. Hoje já estou na ordem dos 85, 90 quilos. E isto não é só por comer pouco, é por comer mal. Sempre fui uma pessoa saudável, mas agora tenho problemas no estômago e no cólon, porque a comida que conseguimos não cumpre os padrões de qualidade que dantes havia. Os venezuelanos já não são dignos dos padrões venezuelanos, tudo o que conseguimos comprar são produtos de terceira e quarta qualidade. Dantes, até conseguia comer em restaurantes uma vez por outra. Agora, arranjar comida é uma aventura. A dieta de Maduro afetou-me, sim. Mas não sou só eu. Eu tenho uma empresa de segurança com a minha família, onde toda a gente tinha cintura de 38-40 e agora são todos de 30-32. E não são só os humanos que sofrem, são também os cães. Porque eles dantes comiam do lixo, mas agora os homens também lá vão. Na Venezuela, já temos gente a competir por comida contra cães. Cá em casa somos três: a minha mãe, o meu irmão e eu. Neste momento, temos comida acumulada para mais duas semanas. Sempre que podemos comprar algo, não desperdiçamos a oportunidade. Depois, guardamos no congelador e rezamos para que a luz não falhe muito tempo. Se isso acontecer, vai tudo à vida.”
“Conseguir comida era uma verdadeira aventura. Eu tinha uma empresa de etiquetagem para o comércio. Fazíamos códigos de barras, por exemplo. Como tinha muitos clientes na área da alimentação, incluindo de matadouros, eles guardavam alguma comida para nós comprarmos. Então, tínhamos uma logística enorme à volta da compra de carne. Íamos várias famílias de carro até ao matadouro, que era em Maracay. Eram duas horas de ida e duas horas de regresso. Comprávamos tudo o que podíamos, carne para 2 ou 3 meses. Se não fizéssemos isto, ficávamos limitados ao que havia em Caracas, que era sempre muito mais caro e já estava num estado lastimoso. Além disso, sempre que ia ter com a minha família, na península de Paraguana, trazia tudo o que podia das quintas que há lá. Queijo, leite… tudo o que houvesse. Eu tinha de fazer por mim e pela minha filha, pela casa, pela comida, por tudo. Estava sozinha, porque o meu marido já tinha vindo para Portugal. Agora que também já cá estou, nem posso acreditar na facilidade com que faço as minhas compras. Só quando cheguei ao aeroporto é que me apercebi do quão cansada estava.”
“Fazemos um esforço gigantesco para ter os nutrientes básicos. A minha mulher também é médica e eu, aos 74 anos, estou a trabalhar todos os dias, em vez de estar reformado, porque tenho de manter a minha família. Tenho de ajudar a minha mulher, dois filhos que tenho cá e quatro netos. Isto obrigou-me a subir os preços das minhas consultas, para poder ter o básico e elementar. Compramos a comida nos supermercados a preços altíssimos. Não temos outro gasto, 95% vai para alimentos e medicamentos. O único que nos resta são as nossas propriedades. Não podemos fazer gastos adicionais de maneira nenhuma. Depois, quando vamos ao supermercado, nem temos por onde escolher. Compramos o que há. Dantes havia 15 tipos de leite, agora há dois no máximo. Havia alguns 20 tipos de queijo e agora só há um. Esta semana não há ovos em lado nenhum. Eu nem me posso queixar muito, porque faço parte de, talvez, 5% da população com mais meios e consigo comer três vezes ao dia. Mas mesmo assim consumo menos calorias. Perdi 7 quilos.”
“Nós dantes éramos uma família de classe média-alta. Todos os domingos fazíamos compras de tudo, todas as semanas. Agora só vamos de 15 em 15 dias e escolhemos um tipo de produto. Uma vez é carne, outra vez é grãos, outra vez é vegetais… Porque não dá para fazer compras de tudo num só dia. De 15 em 15 dias, a minha mãe, o meu padrasto e eu saímos de casa e vamos comprar tudo o que conseguimos arranjar de comida. Fazemos uma ronda pela cidade, vamos desde o centro de Caracas até aos arredores, e vamos comprando o que conseguimos pelo caminho. Vamos ao supermercados ver o que há e, depois, se nos faltar alguma coisa e ainda tivermos dinheiro, vamos comprar comida ao contrabando. Custa três ou quatro vezes mais, mas tem de ser, às vezes. Geralmente acontece assim com farinha de pão, com azeite, arroz… Agora só comemos peixe uma vez por mês e a carne também é muito menos. A verdade é que, no que toca à alimentação, não fomos muito afetados. Há mudanças, sim. Mas há gente que está bem pior.”
“Recuso-me a ir para as filas. Primeiro, porque tenho problemas nas pernas, tenho uma prótese nos joelhos há quatro anos e não posso. Depois, porque é humilhante. É humilhante! Não vou fazer fila durante horas e horas para não comprar nada. Mas, claro, tenho de ir às compras na mesma. Então, sempre que arranjo dinheiro, saio com o meu marido e vamos a um supermercado comprar o que apanharmos. Além disso, a cada dois meses, o nosso filho, que está em Tenerife, manda-nos uma caixa cheia de comida. É isto que nos safa, juntamente com o pouco dinheiro que a nossa filha, que está em Bogotá, nos envia. Mesmo assim, temos passado algumas dificuldades. O meu marido já perdeu 40 quilos! Dantes comíamos por gosto, mas agora é pouco e porque sim. É raro comprarmos carne. No máximo, mortadela. As receitas já nem são as mesmas. Onde punha carne, agora ponho grãos, em vez de usar uma cebola inteira, uso só um quarto, mal uso leite… Está impossível. Antigamente, no tempo dos meus avós, as arepas eram feitas com farinha de milho, que as pessoas moíam em casa. Com a modernidade, começámos a usar farinha de pão, que era mais fácil. Mas agora já não há farinha de pão! Então as pessoas voltaram a moer o milho. Voltámos décadas e décadas para trás!”
Saúde. “Se tiver cancro, terei de sair do país para sobreviver”
“Eu sou epilética e, por isso, preciso de tomar ácido valpróico. Fui diagnosticada quando tinha 15 anos. Nessa época, havia um medicamento de um laboratório que comprávamos até às três caixas. Depois, comecei a notar que era cada vez mais difícil encontrar esse medicamento. Às tantas, perguntei ao meu médico o que se passava e ele disse que aquele medicamento estava a acabar, mas que podia tomar outro parecido, alternando entre um e outro. E então tomei. Não houve problemas, além de ter mais sono. O importante era que não tinha ataques. Depois, a situação ficou pior e comecei a tomar ácido valpróico pediátrico porque o de adultos desapareceu. Há um ano, comecei a pedir o medicamento nas redes sociais. Fiz pedidos para todo o lado e comecei a receber respostas de pessoas que tinham os medicamentos e já não precisavam deles. Então, lá me encontrava com eles, ia cheia de medo porque podia ser algum esquema, e lá comprava. Só que, depois, comecei a ver que nem assim arranjava. Então, passámos a pedir ajuda a um amigo de família que vai a Portugal a cada três ou quatro meses. Ele vai aí, compra comprimidos para vários meses, e depois a minha mãe paga-lhe. Ela nem me quer dizer quanto lhe paga, para eu não me sentir mal.”
“Não é por ser médico que tenho mais facilidades em comprar medicamentos. Como, se não os há? Enquanto médico, sempre trabalhei com um guia de 4500 medicamentos por onde escolher. Dantes, havia todos. Agora, só há 350. Por isso, repito, não é por ser médico que arranjo com mais facilidade algo que não há. Nem tenho acesso a preços especiais, nem acesso a uma venda mais fácil. A minha mulher é hipertensa e tem transtornos metabólicos e, por isso, os medicamentos que ela toma são todos comprados em Espanha. Nós temos lá um filho, que é médico. Sempre que o visitamos, compramos um volume de medicamentos para seis meses e depois trazemos para a Venezuela. Também fazemos isso com antibióticos. E tive um paciente que precisava de antibióticos e eu dei-lhos sem nenhum custo. Caso contrário, não havia nada para ele em lado nenhum.”
“Em janeiro, tive uma colite muito forte e a isso juntou-se uma depressão. Foi aí que perdi grande parte do meu peso, porque não comi praticamente nada durante oito semanas. Só me curei graças a pessoas que conheço fora do país. Esperei até maio para fazer uma colonoscopia, porque só aí uma amiga me mandou 50 dólares. Chegou para o exame, para fazer um tratamento durante um mês. A saúde é um tema muito complicado. Também tivemos problemas com o meu irmão. Um dia, desmaiou no meio da rua porque tinha uma inflamação no nervo ótico que não foi tratada. Levámo-lo para uma clínica privada onde nos pediram 70 milhões de bolívares fortes pela consulta. Como podíamos pagar, se o salário era de 5,6 milhões? Depois, lá consegui os medicamentos para o meu irmão. Fui pedir à internet, corri as redes sociais todas. Lá consegui. Mas nem sempre dá. Um tio meu morreu com problemas nos rins porque não teve maneira de fazer hemodiálise durante 9 dias. E tinha amigos que morreram com uma pneumonia. Com uma pneumonia! Eu só penso que, se alguma vez tiver cancro no cólon, terei de sair do país para sobreviver. Se ficar aqui, morro num hospital público, nos braços de Deus.”
“A saúde é terrível. Terrível. Nem antibióticos se encontra. Eu tenho problemas gástricos há muitos, muitos anos, e nunca tive problemas para arranjar o protetor gástrico de que preciso até este Nicolás Maduro ter destruído tudo. Agora já não se consegue, é impossível. O que me salva é o meu filho, que me manda uma caixa de Espanha. Felizmente, não tenho mais problemas de saúde, mas tenho amigas que tiveram cancro e foi tudo muito difícil. Só conseguiram comprimidos em Bogotá, com ajuda de pessoas que vivem lá. Aqui nem há e, mesmo que houvesse, não dava para comprar. A nossa moeda não vale nada, não vale absolutamente nada.”
“Quando o meu marido veio para Portugal e eu fique sozinha na Venezuela, com a minha filha, fui-me abaixo. Ele saiu em fevereiro e, logo no mês seguinte, caí por completo. Fiquei com uma gripe, a seguir veio uma pneumonia e não tinha nada em que me apoiar. Tinha três apólices de seguro que se esvaziaram num instante e fiquei sem medicamentos. Fui ao médico e disseram-me que precisava de ir 16 dias para uma clínica privada, a 200 dólares por dia. Mas como, se eu ganhava 10 dólares por mês? Então, fui ao hospital público. Fizeram-me todas as análises, esperei horas e horas para que um pneumonologista me visse e depois falaram comigo. Disseram-me que a minha doença era grave, só que não me podiam internar porque havia gente ainda pior. Com turberculose, por exemplo. E explicaram-me que se eu ficasse no hospital corria o risco de também ficar com tuberculose. Então a escolha era simples: ou melhorava em casa ou ia para o hospital morrer. Por fim, lá consegui comprar antibióticos, depois de ir a todas a farmácias a que pude. Dei muito dinheiro por eles. Já nem quero pensar nisso, foi muito mau.”
Insegurança. “Como é que um cidadão vai fazer frente a uma metralhadora?”
“Já quase não vou à rua. E, quando vou, não levo nada comigo. Tenho um telemóvel pequeno e, de resto, procuro não chamar a atenção. Sempre que saímos, deixamos o carro num estacionamento privado e vamos logo depressa para onde temos de ir. Ontem, por acaso, tivemos de andar de metro para ir a um sítio ver se comprávamos alguma carne. No regresso, caiu a eletricidade e o metro deixou de funcionar. E, quando isto aconteceu, houve gente que se enfiou no túnel e começou a andar e andar. Fiquei de boca aberta e só depois é que me disseram que isso é costume. As pessoas saem e andam lá à vontade, porque o metro está quase sempre parado. Chegam ao outro lado todas sujas, todas pretas. Está a perceber por que não saio de casa? É um stress enorme. Por isso, levamos a maior parte da nossa vida em casa, em silêncio e em tristeza. Não há festas, não há cinema, não há nada. A Venezuela é um autêntico funeral.”
“Quando fui estudar para Caracas, há 30 anos, já tinha alguns cuidados. Sempre foi uma cidade perigosa onde se tem de olhar para todos os lados. Mas, nos últimos anos, descontrolou-se. Há uma cultura de crime que está a entrar dentro da cabeça das crianças mais pobres e que está a destruir o país. O meu escritório era perto do Banco Central da Venezuela. Ali ao pé havia uns terrenos baldios que Chávez expropriou e depois deixou que fossem invadidos. Só foram para lá marginais. Ali, vi de perto a nossa juventude a morrer. Há crianças de 3, 4, 5 anos, cujo objetivo é apenas ter uma arma na vida e ir roubar o dinheiro dos outros. Não têm uma mãe que cuide deles, que lhes dê amor. Não há comida, não há amor, não há nada. É uma autêntica escola de malandros, com droga por todos os lados. E o mais ridículo disto tudo é que este bairro de lata que ali se formou é mesmo em frente a um tribunal de defesa de menores! Problemas como este há em todo o lado, porque os chavistas ocupam sítios da cidade e depois fazem o que lhes apetece. No meu bairro, havia uma padaria de um português, que já lá estava há mais de 30 anos. Um dia, de manhã, foi expropriado e entraram para lá uns drogaditos que disseram que a partir daquele dia quem fazia o pão eram eles. À noite, o bairro saiu à rua para ir protestar. Mas assim que começámos, o governo mandou para lá grupos armados, os coletivos, que começaram a correr com as pessoas a tiro. Como é que um cidadão vai fazer frente a uma metralhadora?”
“Nós estamos totalmente sequestrados. Assim que passa das 5h da tarde, já não saímos de casa. Por isso, trabalho muito cedo e ao meio-dia já cá estou. Tudo o que são atividades coletivas, culturais, sociais, está tudo limitado ao extremo. Vivemos em casa, porque sair é um risco. A insegurança é um transtorno enorme na vida das pessoas e por isso é que elas andam a sair do país, também. Primeiro foram os profissionais qualificados, grandes industriais, a classe alta, que tinham mais meios para sair. Esses foram na última década, como o meu filho, que é médico. Agora temos uma migração em massa, forçada, de pessoas sem qualificações, que fraturam por completo as suas famílias. A mãe e o filho aqui, o pai no Peru… Estamos a ficar sem capital humano. É horrível.”
“Para mim, é impensável passear à noite. Dantes era capaz de ir beber uns copos com umas amigas, sair do bar às 2h manhã e depois cada uma ir para sua casa de táxi. Agora é impensável. Começou a ser assim a partir de 2015, porque as ruas começaram a ficar desertas. Dava-nos um pânico imenso, podia aparecer alguém numa mota e tirar-nos o telefone, a carteira e até fazer coisas piores. Hoje em dia, não posso tirar o telemóvel na rua. Quase que parece um telefone fixo, porque só uso no escritório e em casa. Mas nem isso chega. Ainda na semana passada me assaltaram. Eram 10h30 da manhã, havia luz plena e estava nas escadas de um edifício. Quando tirei o telemóvel, reparei que um homem começou a correr na minha direção. Não me disse nada, não me pediu nada, mas eu reagi logo: mandei o meu telemóvel imediatamente para o chão. Ele pegou nele e foi-se embora. No ano passado, também me roubaram a carteira. O polícia ainda conseguiu parar o ladrão, mas ele já não tinha a carteira. Depois o polícia explicou-me que eles assim que apanham a carteira começam a passá-la uns aos outros, como uma rede. À vista desarmada, pode parecer que só há um ladrão, mas eles estão todos combinados uns com outros. À custa disso, passei um mês sem os meus cartões.”
Política. “Maduro é o pior Presidente que a Venezuela podia ter”
“Nós queremos todos uma mudança positiva na Venezuela e já era assim desde que apareceu Chávez. Eu votei nele ao início, eu apoiava-o. Fui muito ingénua. Agora sei que fomos traídos. É um autêntico narco-Estado, vivemos numa guerra permanente. No ano passado, quando se deram as grandes manifestações de Setembro, ainda estávamos convencidos de que era possível dar uma volta ao país. Mas, politicamente, estamos numa ditadura por todos os lados.”
“A primeira vez que votei foi, precisamente, nas eleições que Chávez ganhou pela primeira vez, em 1998. Desde essa altura que me considero da oposição e votei sempre contra Chávez. Nunca me identifiquei com este processo, nunca me senti parte disto. Vi tudo à distância. Mas, sobre Chávez, eu lembro-me de o meu pai me dizer que era um líder real, era um comunicador nato. E quem o apoiou teve imensos benefícios. Já quando penso em Maduro, não há espaço para nuances. Ele é um homem mau, é um homem com um ressentimento social marcadíssimo, que está rodeado de pessoas más, tóxicas e daninhas. É uma pessoa de más intenções, que não está preparada para o cargo que desempenha e que tem muita vontade de roubar e de prejudicar o seu povo. Tudo o que estava bem está agora mal.”
“Eu sou um opositor, mas, acima de tudo, sou um cidadão e, como tal, digo isto: a principal função do Estado e do poder executivo é defender a vida e a saúde das pessoas. E isto não é cumprido a nível nenhum. No tema da saúde, em particular, não é possível que o governo negue ajuda internacional e limite o acesso a vacinas. Isto é um regime foragido que está a levar o país ao caos, ao Estado falhado. Há mais de 248 presos políticos, há violações flagrantes dos direitos políticos, não se respeitam os Direitos Humanos. O governo age como se tudo estivesse bem, mas esta posição política de negação dos problemas só vai gerar mais mortes e mais sofrimento. Não podemos esperar mais.”
“Nem fui votar nas últimas presidenciais. Foi a primeira vez que não o fiz, porque não senti que fosse servir para algo. Nem servia como expressão. Falei com várias pessoas que se debateram entre votar e não votar… E depois todas as que foram votar chegaram ao dia seguinte completamente derrotadas, porque sentiam que tinham perdido o seu voto. A situação é muito complexa, porque o governo soube utilizar a lei e manipulá-la para fazer o que lhe der na gana. Usam a Constituição conforme ela lhes pode servir. E o problema é que ainda há quem os apoie, porque pensa numa lógica de curtíssimo prazo. Basta que o Governo lhes dê uma caixa com comida para as pessoas ficarem agarradas. Enquanto jornalista, já falei com tantas pessoas que me disseram que tinham medo de falar porque, se contam a realidade deles, perdem as caixas de comida que o governo lhes dá ou então ficam sem acesso a medicamentos. Tudo isto é orquestrado por Nicolás Maduro, que é o pior Presidente que a Venezuela podia ter, porque nunca admite o fracasso e a culpa. Os responsáveis são sempre os outros. É a Colômbia, é o comerciante que sobe os preços, é o império, que é como ele chama aos EUA. Mas nunca houve uma única política sua que tenha beneficiado o país. Nenhuma. Por isso é que as pessoas estão a sair. A crise migratória é a minha maior dor. Nos últimos tempos, vi os meus amigos todos a saírem. Fiquei aqui sozinha.”
“Eu ainda cheguei a votar em Chávez, logo nas primeiras eleições em que ele ganhou. Foi o maior erro da minha vida! Apercebi-me logo de que tinha sido enganada, três meses depois. Mas agora, o que está lá… Se Chávez não tinha qualificações, então este nem sei. Nicolás Maduro estraga tudo por onde passa. É tão mau que ou rio ou choro. Aquela brincadeira dos drones que explodiram foi incrível. Eu não acredito nem um bocado que aquilo foi da oposição. Aquilo deve ter partido de dentro, porque eles estão a aconselhar-se com os cubanos e os cubanos querem fazer com Nicolás Maduro o mesmo que fizeram com Fidel Castro. Ou seja, querem criar a ideia de que é um homem muito forte porque toda a gente o tenta matar e ninguém consegue. Por isso mentem-nos. Alguma vez a oposição tinha maneira de fazer uma coisa daquelas? A oposição não tem poder nenhum.”
Futuro. “Vou aguentar-me na Venezuela até que Deus queira”
“Eu trabalho para ajudar a minha família e o meu país e é assim que espero continuar. Tenho 51 anos de profissão. Felizmente, Deus deu-me a oportunidade de trabalhar e de estar com capacidade para estudar e me esforçar pelos meus pacientes. Tenho obrigações pessoais e coletivas neste país e garanto que farei o possível para me manter aqui. É importante que eu continue aqui. Sou mais útil aqui do que no Funchal, em Miami, em Barcelona ou nas Canárias. Quero olhar para amanhã, já. Por isso é que escrevi uma série de propostas de medidas para a saúde com o título ‘O Dia de Amanhã’. É esse dia que me importa. Só que escrevi o estudo em fevereiro, por isso aquele amanhã já é hoje!”
“Quero continuar a viver na Venezuela. Sinto que faço aquilo de que gosto e, além disso, tenho uma responsabilidade da qual não me quero desfazer. Posso sair para estudar, mas depois quero regressar. A minha situação não é tão má como a de outras pessoas, embora não seja boa. Por exemplo, esta semana estou a vestir as últimas calças que tenho, porque só me sobram outras que estão rotas. Só que há gente que nem tem sapatos. Por isso, não estou assim tão mal. Por isso, não tomei a decisão de emigrar. Vejo dias muito piores pela frente, mas a longo prazo sei que vamos sair disto. E quero estar aqui para vê-lo e para registá-lo.”
“Para já, ponho de parte a possibilidade de me ir embora da Venezuela porque tenho aqui a minha mãe e o meu irmão. Mas nem sempre penso assim. No início do ano, quando estive doente do cólon e tive uma depressão, pensei que a saída era o único caminho. Mas mesmo que quisesse não conseguia, porque apesar de ter passaporte não tenho os recursos para sair. E eu recuso sair pela fronteira, a pé, como muitos são obrigados a fazer. Se sair, quero sair de forma digna. Não quero ser emigrante, não quero ir lavar casas de banho para os EUA só para ter uns dólares. Além do mais, quando vejo a quantidade de problemas que as pessoas têm quando vão para esses sítios, a dor que têm, a maneira como os atacam… Não quero ir. Mas depois penso que, se houver um problema de saúde meu, da minha mãe ou do meu irmão, tudo pode mudar. Aí, saio e faço o que for preciso para nos salvar. Lavo casas de banho, trato de idosos, crianças, cães, tudo. Atravesso qualquer fronteira, qualquer montanha, qualquer rio. Mas, para já, quero ficar. A maior forma de resistência a este governo é trabalhar e praticar a empatia e a solidariedade.”
“Nunca pensei chegar à terceira idade e não saber como ia ser o meu futuro. Temos os nossos filhos fora do país, eles têm de fazer as suas vidas e nem eu nem o meu marido queremos viver na casa deles. Isso não pode ser assim, eles têm direito à vida deles. Não posso agora ir para Espanha e entregar-me assim ao meu filho, não faz sentido. Mas eu falo com eles por Skype, e conto-lhes como as coisas estão cá e eles só me dizem para ir, para sair. Mas com que cara é que eu vou sair do meu país com esta idade e sem papéis? Eu vou aguentar-me na Venezuela até que não possa mais. Vai ser até que Deus queira.”
“Eu só quero ver o país onde eu nasci livre. Só tenho vontade de chorar quando penso no país que se perdeu. Está perdido. E por isso saí, porque não quero ver esta perversão. Como as coisas estão, acho que só podemos sair daqui à força. Tem de haver um exército que lute contra este bando de delinquentes e que comece a semear valores na sociedade. Já não acredito em eleições, porque já o fizemos e eles tomaram sempre tudo para eles. Mas vejo as coisas muito difíceis. Agora que estou a falar, sei cada vez com mais segurança que não quero voltar. Vejo as imagens e tenho a certeza de que não quero voltar. Não quero, não quero. Deixou-me marcas muito profundas. Às vezes, aqui em Portugal, salto da cama a meio da noite porque acho que nos estão a assaltar. É claro que não vem ninguém, mas aquilo ficou-me marcado. Agora, não troco esta tranquilidade por nada. Quero é pensar na minha filha, quero ensinar-lhe o que é mais correto. Quero que ela aprenda bem os 10 mandamentos. Não matar, não roubar, isso tudo. O futuro é dela e de mais ninguém.”
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