Dediquei horas deste domingo para entender semanticamente Elisio Macamo, como se isso fosse possível com a simples leitura dos seus posts, - primeira revelação pública da minha insciência à sua dimensão.
Ao revirar sua página no Facebook deparei-me com um artigo de opinião bifurcado por si publicado no Jornal Público - português - (abaixo anexo os links) em contestação e tréplica a uma opinião de João Pedro Marques, romancista e historiador português. O assunto em tema no referido pleito de opinião é relativo a necessidade ou não do pedido de desculpas oficial do Estado Português relativamente à colonização, máxime escravatura.
João Pedro Marques entende que isso já foi feito no século XIX, sendo, portanto, completamente desnecessário. Vai mais longe dizendo que as elites políticas africanas devem parar de sugar seus povos e fazerem valer os propósitos da criação e existência do Estado, o que é premente e importante.
Macamo contesta, com veemência académica, que lhe é sublimadamente característica, àquela conclusão e respectivos fundamentos. Demarca-se da ideia de um termo inicial da consciência colectiva de Portugal, em particular, e Ocidente, no geral, em relação a desumanidade e infâmia do acto colonial, da escravatura. Diz, Macamo, que Portugal pode pedir (oficialmente) desculpas quantas vezes forem necessárias por constituir uma relação dos portugueses (e do Ocidente) com os próprios valores de promoção da dignidade humana, não o que devem aos africanos. Uma espécie de reafirmação colectiva dos seus próprios valores. Atrevo-me a desnudar meu entendimento afirmando que é uma espécie de processão colectiva com os seus próprios valores.
Muito me ocorreu e o clímax apareceu, decorrente do título deste post e a minha pretensão ao me hospedar por algumas horas na sua página no Facebook: Elisio Macamo "não se define, não se interroga; descreve-se nas suas qualidades e expressões!" Este é o meu singelo reconhecimento ao Elisio Macamo, atribuindo-o a minha definição de amor que, por fim, reconheci não ser possível definir.
Ora, se de súbito a dimensão de Elisio Macamo se revelou para mim neste dia Santo para os cristãos, não podia (muito menos devia) deixar incólume o que amiúde li acerca do Elisio Macamo e seus posicionamentos. Somos de uma ingratidão sem precedentes e não temos a noção da nossa tragédia cognitiva. É aos jovens que me dirijo, diga-se, com todo o respeito devido.
Muitas vezes, para contestar os posicionamentos de Elisio Macamo recorremos a hermenêutica livre, expressão do Professor Domus Oikos. Esquecemos que muitas, senão todas as vezes, as posições de Elisio Macamo são cientificamente arrazoadas. É de uma tremenda ingratidão contestar uma opinião científica recorrendo à hermenêutica livre. Agora entendo a razão e o fundamento de Elisio Macamo recomendar aos seus contestatários leitura e escrita para depois com ele discutir.
A juventude, na qual me incluo, deve muito mais respeito a este e outros moçambicanos que pensa cientificamente vários factos nacionais e internacionais. Isto não significa que estes académicos sejam imunes à crítica. Não. O que apelo é a uma razoabilidade na abordagem e humildade científica. Não devemos rebater uma posição fundada cientificamente com uma hermenêutica livre. Este é o nosso maior erro.
Já agora, atento aos recorrentes ataques do Professor Julião Cumbane às ciências sociais e, no seu entender, sua (quase) inutilidade, sou da opinião que Moçambique até deveria investir mais ainda nas ciências sociais, entretanto numa perspectiva de formar e enformar os estudantes de ferramentas crítico-reflexivas. A nossa formação superior é de mera reprodução. Não pensamos o pensado. Não reformamos o pensamento, tal qual recomenda Edgar Morin.
Nesta linha crítico-reflexiva, fico bastante desagradado por ver uma politização das nossas discussões nesta plataforma, assim como noutras. Entendo o momento de crise que vivemos, entretanto urge uma certa despolitização dos debates. Entendo também que às vezes é incontornável recorrer ao político, mas não na perspectiva justicialista e moralista que encaramos nossos factos políticos.
A revelação de Elisio Macamo fez-me repensar em mim e no liame com as minhas ideias sobre os factos sociais. A título exemplificativo, num dos meus últimos posts (Amnésia Voluntária e Soluços Comportamentais) inventário um conjunto de situações que julgo estarem a margem da problematização social: (i) construções em locais não permitidos por lei; (ii) corrupção; (iii) desregramento no trânsito; (iv) manutenção de lixeiras em locais habitacionais; (v) música altissonante a altas horas da noite e no período normal de trabalho; (vi) venda de bebidas alcoólicas nas barracas anexas às escolas secundárias; etc. Todavia, a minha inventariação ficou-se por aí, no diagnóstico, o que um cidadão de diligência ordinária pode fazer. Não fiz o prognóstico. Não quis entender as primeiras e últimas causas do que elenquei acima. Na verdade não problematizei. É desta inquinação que sofre muitas das opiniões juvenis. É urgente repensarmos na forma e modo como encaramos a crítica aos factos sociais. Somos facilmente manipuláveis, o que acarreta críticas ignóbeis e infames às nossas instituições e nossos dirigentes. Urge uma profunda introspecção, senão o futuro do nosso Moçambique poderá ficar irremediavelmente comprometido. Acima de tudo o respeito por Moçambique e suas instituições. Temos de estudar muito e a sério. Também tenho de repensar no jovem e cidadão que pretendo ser para esta pátria esculpida do sangue, suor e juventude de muita gente.
Elisio Macamo deve ser acarinhado, bem assim muitos outros professores que se embrenham para que entendamos devidamente os factos sociais. Ele é de uma verve sem igual.
No pleito de opinião que aludi faz-se referência à mão interna no acto colonial e prática de escravatura de africano para africano. Penso que isto está pouco estudado e divulgado. Os africanos sempre maltrataram-se a si próprios, refere-se também no pleito de opinião referido. Neste sentido, entendo que o apelo de Egidio Vaz, num dos seus posts, ao (re)estudo do colonialismo (maxime escravatura) deveria ser na perspectiva de africano para africano. Por que nos escravizamos a nós próprios? Por que tivemos a necessidade de escravizar os nossos? A resposta a esta perspectiva é que poderá arredar novas colonizações. É que o acto colonial encerra uma parte da nossa culpa.
Por último, entretanto não menos importante, sou da opinião que académicos como Elisio Macamo deviam ser mais difundidos. Sinto-me envergonhado por não ter sequer um livro da sua autoria, assim como de José Jaime Macuane e muitos outros. Sinto-me envergonhado por desconhecer a dimensão da vossa obra enquanto académicos, pensadores do nosso passado, presente. Sinto vergonha de como somos facilmente alienados. Peço desculpas! Entretanto, Elisio Macamo aguçou o meu orgulho de Moçambicano. Amo mais Moçambique porque não somos tão maus como recorrentemente nos autoflagelamos.
Já agora, convenhamos, Elisio Macamo deu um KO ao João Pedro Marques. O argumento dele é de uma enormidade tal que me deixou de rastos. Ele é de outra dimensão. Lucubra numa galáxia inacessível a maioria dos mortais.
Khanimambo Professor Elisio Macamo!
Eis os artigos do pleito de opinião:
PS: não encontrei a réplica do João Pedro Marques. Quem puder, partilhe, por favor!
Drd
OPINIÃO
Quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa?
Não inventem fantasmas nem despertem os demónios da oposição racial. E, de caminho, não nos contem histórias mal contadas.
Os que consideram que Portugal deve pedir desculpa pela antiga escravatura têm um argumento moral a que deitam mão quando todos os outros falham. Esse seu último reduto é o chamado argumento da humildade, que aparece com frequência em debates nas redes sociais e que costuma enunciar-se assim: “É verdade que a escravatura foi praticada em algum momento por quase todos os povos. É igualmente verdade que os africanos já escravizavam africanos antes de os portugueses chegarem a África. Mas isso desculpa-nos? Não devemos nós, portugueses, ser humildes, assumir o erro que cometemos e pedir perdão? Por que não?”
Quem argumenta assim sabe pouco de História. De facto, esta é uma linha de argumentação que vem pregar a convertidos. Eu já referi várias razões pelas quais, vendo as coisas com os olhos do presente, os olhos de 2017, não devemos pedir desculpa pela escravatura, muito menos de forma unilateral. Mas se recuarmos no tempo até ao século XIX, se nos situarmos nessa época, há curiosamente uma outra razão que é a de que isso já foi feito na altura. Os europeus e americanos do século XIX, aqueles que lidavam directamente com o problema, os que viviam no tempo em que havia tráfico de escravos e escravidão pura e dura, com propriedade sobre as pessoas e exploração muitas vezes desalmada do seu trabalho, tinham uma consciência muito aguda da dimensão e do horror da coisa, e tinham, igualmente, sentimentos de vergonha e de responsabilidade pela sua existência, pois estavam firmemente convencidos de que haviam sido os seus antepassados a criar aquela abominação. Sabendo pouco o que se passava no interior de África, viam os africanos e o próprio continente como vítimas passivas e inocentes da cobiça europeia. Sabemos hoje que não foi exactamente assim, isto é, que as autoridades africanas tiveram um papel muito activo no horrível negócio, mas, em geral, os europeus e americanos daquela época não o sabiam. Por isso penalizavam-se fortemente pela existência de práticas iníquas e erradas que vinham dos séculos anteriores, e consideravam que cabia ao Ocidente, custasse o que custasse, pôr fim a tais horrores.
É devido a esse sentimento muito agudo de arrependimento e de injustiça, a essa muito forte autocensura moral, que no século XIX e de uma forma muito mais marcada do que acontecera em épocas anteriores, o tráfico passa a ser quase sempre adjectivado e referido como “infame”, “odioso”, “iníquo”, “desumano”, e o acto de contrição surge constantemente no que se diz e nos documentos oficiais. Um exemplo entre mil: no preâmbulo do decreto-lei de 10 de Dezembro de 1836, que aboliu o tráfico de escravos português e que, julga-se, terá sido escrito por Almeida Garrett, diz-se que “o infame tráfico dos negros é certamente uma nódoa indelével na história das nações modernas [...]. Emendar pois o mal feito e impedir que mais se não faça é dever da honra portuguesa”. Frases deste género foram ditas muitas dezenas de vezes nos debates parlamentares, foram escritas muitas centenas de vezes nos textos e jornais da época, estão nos preâmbulos das leis e decretos e nos artigos dos tratados internacionais. A mesma coisa se passou, aliás, em França, na Grã-Bretanha e nos outros países abolicionistas. Ou seja: os políticos e parlamentares que, através da sua acção, contribuíram para ir acabando a pouco e pouco com a escravatura, pediram desculpa pelo que julgavam ser uma culpa exclusivamente sua e fizeram-no nos termos em que isso era feito no século XIX. Como sugeriu, e bem, Marcelo Rebelo de Sousa, em Gorée, os legisladores e os Estados estão a pedir desculpa quando reconhecem o que há de injusto e condenável “no comportamento anterior” e emendam a mão. Pois bem, já foi feito repetidamente no século XIX.
Portanto, a pergunta que aqui quero fazer é a seguinte: quantas vezes mais precisam Portugal e os portugueses de se desculpar? Quantas vezes mais terão os países e povos ocidentais — que, importa lembrá-lo, foram os primeiros a censurar, ilegalizar e combater a escravatura — de voltar a percorrer esse corredor de arrependimento e penitência que já percorreram demoradamente no século XIX? Diz-se que, ao falar do passado, o que está em causa não é esse passado mas sim as injustiças presentes. Muito recentemente, o historiador brasileiro João José Reis formulou essa ideia com toda a clareza. Criticando aqueles que acham que não se justifica haver reparações materiais por causa do tráfico de escravos porque os negros também estiveram envolvidos nesse negócio, João José Reis afirmou: “Há que se fazer a reparação mesmo que nunca tivesse tido escravidão. Basta ter a desigualdade.” Bom, então importa dizer ao historiador brasileiro e aos que pensam como ele que a desigualdade é outro assunto, relativamente ao qual até poderemos ter vários pontos de convergência. Mas a África não precisa de pedidos de desculpa, que são, até, gestos paternalistas, como eram, no fundo, os que se faziam no século XIX. Precisa, isso sim, de não estar na mão de elites corruptas e atoladas até ao pescoço em negócios estranhos, para não dizer pior. Os africanos também não precisam de desculpas, mas de melhorar as suas vidas e de ser tratados com urbanidade e justiça, como qualquer cidadão. Nem mais nem menos.
Se os activistas e a ONU (que em 2014 lançou a Década dos Afrodescendentes) se preocupam com as comunidades de ascendência africana que enfrentam maiores dificuldades, isso é positivo e louvável, e deve merecer o contributo e a abertura de todos, por uma questão de entreajuda e de coesão e equidade sociais. Mas não apresentem as coisas em tom acusatório, revanchista ou de dívida histórica. O tráfico e a escravidão na bacia do Atlântico e no Novo Mundo existiram entre os séculos XV e XIX, e foram sendo ilegalizados e combatidos a partir de finais do século XVIII. O combate custou fortunas, durou décadas, sacrificou gente. Esse assunto está felizmente resolvido, da forma que foi historicamente possível resolvê-lo. Não inventem fantasmas nem despertem os demónios da oposição racial. E, de caminho, não nos contem histórias mal contadas. Guardem as energias para resolver os problemas do presente.
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