quarta-feira, 4 de abril de 2018

O que irá acontecer se Lula perder hoje no Supremo? Nada

  • Ainda lembro daquele dia em que o juiz Sergio Moro liberou aqueles áudios do “Bessias”, entre outros, com diálogos aparentemente pouco republicanos envolvendo Lula e a ex-presidente Dilma. Milhares de pessoas saíram às ruas e tudo pareceria que iria explodir. Não explodiu. Tempos depois veio o impeachment e muita gente acreditou que haveria uma guerra santa no país contra o “golpe”. Não houve. No lugar da guerra, muita retórica e um punhado de cursos para iniciados, em nossas universidades públicas.
    Depois veio aquela noite de 16 de maio, quando se divulgou a conversa do presidente Temer com Joesley Batista, falando em pagar alguma coisa para Eduardo Cunha. Milhares de pessoas tomaram de assalto a avenida Paulista e a renúncia do presidente parecia ser uma questão de horas. Não foi. A conversa não era bem aquela, o presidente não renunciou, superou duas denúncias no Congresso e acena com uma candidatura em outubro.  
    Agora andamos mais uma vez excitados. As razões são perfeitamente óbvias. Não se trata apenas de um habeas corpus ou de Lula ser ou não candidato. Trata-se do mito. Da mística que povoa há quatro décadas nosso imaginário político. E de quebra uma decisão jurídica estratégica para o país, na qual ambos os lados têm razão. Raquel Dodge tem razão em dizer que quatro instâncias “são um exagero que aniquila o sistema de justiça”; o outro lado também tem ao lembrar a clareza incômoda do artigo 5º da Constituição, estabelecendo o princípio da inocência até o trânsito em julgado.
    Vai aí um tema interessante. O país e o Supremo estão divididos sobre um tema cuja solução será imperfeita, seja qual for a decisão tomada. Prato cheio para nossa democracia "breaking news". A expressão é de Fareed Zakaria e serve perfeitamente para o Brasil. É a democracia da instabilidade, do exagero, da gritaria, das frases de efeito, em que se discute tudo com a mesma velocidade em que tudo é rapidamente esquecido, nos dias que correm.
    Há uma boa dose de responsabilidade do STF neste cenário de instabilidade. Nossa Suprema Corte há muito enveredou por um caminho de interpretações criativas do texto constitucional. Em geral, com apoio popular. A destituição de Eduardo Cunha; o fim do financiamento empresarial de campanhas; a restrição ao foro privilegiado; o veto ao indulto natalino do presidente da República. A lista é grande. O ministro Barroso tem sido o homem de vanguarda desta tendência, com sua crença na função iluminista da corte constitucional, seu papel de representação da sociedade e poder de ação que pode ir muito além da letra fria da Constituição.  
    Vamos lá: com uma Suprema Corte disposta a expressar interesses difusos e reinventar vez ou outra o texto constitucional, por que razão não haveria, em torno de suas decisões, um enorme barulho na rua e nas redes sociais?
    Plantamos o que colhemos. É razoável que uma Corte Constitucional refaça sua decisão sobre a prisão em segunda instância, um ano e meio depois de tomada, apenas porque um novo ministro tomou posse na corte e outro mudou de opinião sobre o tema? Será essa a regra para todas as suas decisões? E se daqui a quinze meses mais algum ministro mudar de opinião? Que tipo de estabilidade jurídica nossa Suprema Corte tem a oferecer ao país?
    A questão que parece passar despercebida, nisso tudo, é o fato simples de que instituições e procedimentos de decisão funcionam como incentivos. Se o vaivém é a regra, se a regra é não ter regra, se vale o contexto e o caso a caso, então está feito o convite à pressão, ao lobby, ao tuíte, ao manifesto. Em boa medida não há como escapar disso, o que apenas redobra a responsabilidade que uma Suprema Corte deve ter, nestes tempos dançantes, com a regra, a previsibilidade, a estabilidade.
    No caso do ex-presidente Lula, assistimos seu pedido de habeas corpus passando à frente de processos similares e mais antigos; assistimos à concessão do sui generis salvo-conduto de 13 dias, em função do check-in de um ministro. Assistimos a presidente do Supremo recebendo uma comitiva de parlamentares e um extenso lobby, para influir na pauta da corte, e mais recentemente um ministro discutindo o assunto em um evento no exterior.
    O fato evidente é que se consolidou, no país, a ideia de que o STF é uma casa política, feita de maiorias estreitas e instáveis e aberta a pressões de todo tipo. Isto não deveria ser assim. E temo que nossa Suprema Corte esteja prestes a tomar uma decisão que aprofunde ainda mais esta percepção hoje generalizada, na sociedade.
    No mais, vivemos tempos interessantes. O comandante do Exército usa o Twitter para manifestar uma posição política ao STF; comícios são realizados a favor e contra uma decisão que deveria ser estritamente técnico-jurídica (como o processo foi tratado, aliás, nas demais instâncias da justiça). E todos parecem excitados com a ideia de que vivemos uma crise institucional sem precedentes, em nossa ainda jovem democracia.
    Não vivemos. Só andamos tropeçando. Se a decisão for positiva para o ex-presidente Lula, haverá algum barulho nas redes sociais e nada mais. Se for negativa, teremos mais do mesmo. Blogs lulistas, conhecidos de todos, arriscarão alguma manchete sombria, um abaixo-assinado será lançado pelos artistas e intelectuais de sempre, no Circo Voador, e a vida seguirá seu curso.
    A democracia brasileira, para desgosto de gente maluca e barulhenta, à esquerda e à direita, é muito mais forte do que a histeria vazia da pequena guerra política que tomou conta de nossa democracia digital. Felizmente.
    Fernando Schuler
    É cientista político, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento.

                       

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