terça-feira, 3 de abril de 2018

A INDEPENDÊNCIA NACIONAL E A LIBERDADE CULTURAL

A INDEPENDÊNCIA NACIONAL E A LIBERDADE CULTURAL

Em 2003, em parceria com o padre André Lukamba, organizámos o Fórum sobre a Identidade como Aspecto de Unidade Nacional, na cidade do Huambo. Havia um ano que a paz tinha sido estabelecida, na cidade do Luena, após a morte de Jonas Savimbi.
Jaka Jamba, a grande figura intelectual angolana, foi um dos prelectores do fórum, tendo abordado o tema “A Independência e a Luta pela Liberdade Cultural”, num ambiente de grande tensão política.
Com a sua morte, a 1 de Abril passado, celebramos o seu pensamento em prol da cultura e do entendimento entre os angolanos. Partilhamos o texto que Jaka Jamba apresentou no encontro, o qual deixou uma pergunta pertinente, ainda por responder, passados 15 anos desde a realização do evento: “Será que a diversidade cultural em Angola é uma herança preciosa, sobre a qual se deve cimentar o sentimento de coesão e unidade, ou é um obstáculo à construção da nação angolana?”
Paz à sua alma.
RM
A Independência
1. A luta pelas independências nacionais, que começaram a ser massivamente vitoriosas no dealbar dos anos de 1960, foi uma das iniciativas históricas mais importantes assumidas pelos africanos.
2. Embora não tenha havido uma forma única de contestar os processos coloniais e de reivindicar as independências nacionais nos mais diversos países africanos, podemos assumir que, tendencialmente, se procurou envolver os mais vastos segmentos populacionais. De tal modo que, nos casos mais extremos, ou seja, ali onde a luta se processou pela via armada, ela foi ganhando a simpatia e o concurso de quase todos, ficando à margem apenas aqueles que não acreditavam nas suas próprias capacidades para se autodirigirem, alegadamente por falta de preparação, ou os que se colocaram numa posição de subserviência.
3. No caso concreto de Angola, foi evidente o envolvimento dos movimentos de libertação nacional, como forças organizadas, mas igualmente de segmentos sociais por vezes esquecidos, que se tornaram, no fim de contas, numa espécie de tecido de realimentação de todo o processo de luta armada. Especificamente, refiro-me aos movimentos de resistência cultural e social que foram tendo lugar no seio das igrejas, das diversas associações culturais e recreativas, nas sociedades tradicionais. O exemplo mais claro e extremo do envolvimento no seio das igrejas pode ser visto nos inúmeros pastores, padres e fiéis sucessivamente encarcerados pelas autoridades coloniais, nos movimentos messiânicos que entretanto foram emergindo, e que por esse facto foram duramente reprimidos. No que diz respeito ao associativismo cultural e recreativo, basta perceber a forma abrupta como iam sendo interrompidos os processos que iam emergindo, e que quase sempre foram duramente reprimidos com a prisão dos seus principais inspiradores e animadores, etc.
4. Os grandes objectivos da luta de libertação nacional foram a reconquista dos direitos políticos, económicos, sociais e culturais. Vale a pena referir que os direitos culturais estiveram sempre subjacentes ao processo de libertação nacional, uma vez que a própria colonização impôs um modelo de negação ou subalternização dos nossos valores, símbolos e referenciais.
A Libertação Cultural
5. Modelos culturais. Por modelo cultural, entende-se a concepção do mundo, de Deus, do homem, da natureza, do tempo e da História. Uma concepção do mundo envolve também atitudes, comportamentos, valores, crenças, costumes, instituições, etc.
6. Em meu entendimento, na cultura angolana convergem três modelos culturais, a saber: o modelo africano tradicional, o modelo ocidental, e o modelo judaico-cristão. Pode parecer que os dois últimos modelos são hoje uma única e a mesma realidade. Todavia, tal como os vemos, apresentam pontos distintivos, pois o actual modelo ocidental parece estar consagrado no estilo de vida americano, o chamado “American way of life”, relegando para plano secundário muito daquilo que caracterizou o modelo judaico-cristão, na sua versão original, e que se afirmou na Europa.
7. Nas vicissitudes da cultura africana ao longo da História, podemos considerar quatro grandes etapas até ao momento presente:
a) O período pré-colonial, em que as culturas africanas evoluíram de modo autónomo e dentro da sua própria dinâmica;
b) O período do choque com a cultura ocidental e cristã (de 1520 a 1870), altura em que os navios negreiros iniciaram o transporte de escravos negros da costa africana através do Oceano Atlântico, até à abolição formal da escravatura;
c) A partilha de África (que pode ter como referencial a Conferência de Berlim de 1884/1885) inaugura a fase colonial propriamente dita, onde exércitos de ocupação colonial, homens de negócios e missionários conquistaram diferentes nações africanas, apoderando-se das terras ancestrais, e minaram os sistemas locais de crenças. Uma das consequências negativas desta fase foi a perda de confiança que os africanos tinham em si próprios e nas suas instituições. A destruição da cultura africana gerou a síndrome da dependência”. Esta “síndrome da dependência” não pode ser encontrada, por exemplo, entre os povos asiáticos, uma vez que eles, nos contactos com outras culturas, procuraram, sim, assimilar ao máximo as suas ciências e tecnologias, nalguns casos ajustando-as às suas realidades. Todavia, sempre que possível, mantiveram os seus valores, símbolos e referenciais culturais. Veja-se, a título de exemplo, o Japão. Relativamente a políticas culturais de colonizadores, é justo referir dois tipos distintos: a “política cultural de segregação” (separação), praticada pelos britânicos, e a chamada “política de assimilação”, praticada pelos franceses e pelos portugueses, sendo estes últimos os seus expoentes máximos. Por exemplo, para estes, um africano, para ser considerado “civilizado”, teria que falar português e rejeitar todos os “costumes tradicionais e tribais”;
d) A fase da luta pela libertação cultural, que envolve as iniciativas levadas a cabo ao longo da luta de libertação nacional até aos nossos dias.
8. Das anteriores tentativas de formulação de políticas culturais, houve sempre a tendência de fazer prevalecer uma certa hegemonia do modelo ocidental, em detrimento do modelo africano tradicional, e este facto tem perpetuado a descaracterização, sobretudo, das nossas elites, colocando-as numa clara situação de inferioridade face às outras elites, portadoras naturais de valores culturais próprios. Face a isso, coloca-se uma questão de modo muito pertinente: será que a diversidade cultural em Angola é uma herança preciosa, sobre a qual se deve cimentar o sentimento de coesão e unidade, ou é um obstáculo à construção da nação angolana? Esta é a necessária reflexão que urge fazer.

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