Jornalista angolano Rafael Marques sofre julgamento político
Reportagem investigativa que expôs corrupção é tratada como ofensa ao Estado; julgamento será na segunda-feira, dia 5
Agência Pública
O jornalista angolano Rafael Marques perdeu a conta das vezes em que membros do governo do seu país o processaram na Justiça. Também não se lembra de todas as vezes que foi detido – a prisão mais longa foi de 42 dias, em 1999, sem ter recebido nenhuma acusação formal.
Agora, o ex-procurador-geral de Angola, general João Maria Moreira de Sousa, o acusa de injúria por ter publicado uma denúncia de corrupção, devidamente comprovada por documentos. O julgamento será na próxima segunda-feira, dia 5 de março. A acusação: crimes de injúria e ultraje a órgão de soberania. A pena: até três anos de cadeia.
“É uma acusação vaga usada para permitir que as autoridades consigam sempre reprimir a liberdade de imprensa”, disse ele em entrevista à Pública.
Editor do site independente Maka Angola, Rafael Marques é o mais importante jornalista investigativo do país. Vencedor de diversos prêmios internacionais, como o Prêmio Integridade, da Transparência Internacional, Marques revelou dezenas de casos de corrupção do governo autoritário de José Eduardo dos Santos, que permaneceu no poder por 38 anos. No meio tempo, o grupo próximo ao ex-presidente enriqueceu assustadoramente – sua filha é a mulher mais rica da África –, enquanto a população permanece na pobreza.
Angola é o segundo maior exportador de petróleo da África, mas tem cerca de 36% da população abaixo da linha da pobreza e possui a pior taxa de mortalidade infantil do mundo. Nesse contexto, afirma Marques, é impossível para qualquer jornalista ser imparcial. “Um jornalista não pode realizar seu trabalho com imparcialidade se à sua volta só há opressão, roubo, e uma população inteira que vive em um estado de miséria sub-humana.”
Leia a entrevista.
Quantas vezes você já foi processado por autoridades por causa das reportagens que publica?
Inúmeras vezes, já perdi a conta. Além disso, também tive muitas breves detenções, de até 42 dias. Desta vez, eu sou acusado de crime contra segurança de Estado por ter denunciado um negócio corrupto do então procurador-geral de Angola, o general João Maria Moreira de Sousa em 2016. A publicação era sobre questão da compra de um terreno para a construção de um condomínio, que é para efeito lucrativo. Mas por lei o procurador-geral não pode se envolver em atividades lucrativas enquanto em exercício do cargo, porque a lei obriga o regime de exclusividade.
Como era esse terreno?
É um terreno com vista para o mar, para construção de um condomínio residencial, em que o procurador se colocou na situação de incorporador imobiliário, e o pedido do terreno é claro. O documento de compra menciona que era para fazer um condomínio. O terreno fica na província costeira de Kwanza Sul, um lugar com grande potencial turístico no futuro, se for bem desenvolvido.
O que o general João Maria de Sousa alega?
A alegação é que ele acabou perdendo o direito à titularidade do terreno porque não pagou as taxas. O que, mesmo tendo acontecido, não invalida a matéria. O ponto aqui é ele ter adquirido um terreno, e não o que aconteceu depois.
Inicialmente, ele me processou por difamação, o que está previsto na Lei de Imprensa angolana. Mas, quando apresentei a prova – o documento de compra assinado pelo governador e por ele próprio –, ele decidiu acusar-me de acordo com a Lei de Crimes contra a Segurança de Estado, e não da Lei de Imprensa.
Qual é a diferença?
A Lei de Imprensa me obrigaria a provar se eu tenho os documentos. Eu tenho. Já a Lei de Segurança é uma lei repressiva, que não dá margem ao jornalista para se defender. Significa ofender, insultar. É uma definição vaga para permitir que as autoridades consigam sempre reprimir a liberdade de imprensa e garantir que os dirigentes corruptos, ladrões e bandidos possam sempre reclamar uma suposta honra e dignidade que na verdade há muito deixaram de ter quando passaram a saquear o país e a desgraçar a maioria da população angolana. E eu também sou acusado de injúria ao ex-presidente José Eduardo dos Santos, porque mencionei que toda essa corrupção descontrolada tem o apadrinhamento dele.
Além de você, há outro jornalista acusado no mesmo processo…
Mariano Brás. E aqui se nota o caráter persecutório desse processo. Várias publicações reproduziram meu artigo, como o jornal Folha 8, o site Club-K, e aí o ex-procurador escolheu apenas este jornalista, que tem o jornal O Crime, para persegui-lo. Então é a prova de que não é uma questão de ofensa, é uma questão de oportunidade, porque, se assim fosse, ter-se-ia sentido ofendido por todos aqueles que publicaram o texto.
Em um país democrático, este caso seria considerado perseguição. Mas em Angola há chances de você ser de fato condenado?
Olha, a Justiça em Angola é uma palhaçada. Quando não causa bastante sofrimento aos inocentes e aos desfavorecidos, é uma palhaçada. E eu vou lá ver qual é a palhaçada que prepararam dessa vez.
O que acontecerá se você for condenado?
Este é um daqueles processos em que nós vamos reafirmar nosso compromisso inabalável pela liberdade de imprensa e expressão, mas sobretudo – e que é um dever do jornalista em situações em que a corrupção se tornou um fator de repressão – combater essa repressão e essa corrupção. Porque é a arma mais letal para reprimir o povo, retirar as liberdades e garantias da população consagradas na Constituição. Então, tenho que lutar vigorosamente para que não só eu tenha o direito de publicar em liberdade como jornalista, mas como cidadão, eu tenha o direito de gozar todos os direitos, deveres e garantias que nos são garantidos na constituição. Um jornalista não pode realizar seu trabalho com imparcialidade se à sua volta só há opressão, roubo, e uma população inteira que vive em um estado de miséria sub-humana. Tem que haver um engajamento, porque eu tenho que lutar por essa liberdade. É uma liberdade que deve ser conquistada não só para mim, mas para toda a sociedade, para que as futuras gerações de jornalistas não tenham que passar por isso que eu estou a passar hoje. Essas novas gerações, sim, poderão ter a isenção necessária.
Em Angola, não é possível o jornalista ser isento?
Não é possível ser isento. Como você vai conferir a mesma dignidade a um indivíduo que é assaltado todos os dias e o indivíduo que o assalta todos os dias? Estamos a falar de um estado onde a justiça não funciona. Como é que você pode falar de isenção e imparcialidade onde não há justiça? A isenção e imparcialidade estão ancoradas num sistema de justiça. Então, você faz o seu melhor para alterar esse quadro.
Qual é o quadro que você vê? Como você descreveria para um brasileiro o que é Angola hoje?
Há muita violência, muita corrupção, muita pobreza. E há a elevação da mediocridade como parte do status quo para desencorajar o florescimento de uma inteligência independente que possa apoiar uma nova classe intelectual, engajada com os problemas da sociedade, da população. Daí essa perseguição constante a jornalistas, para que na sociedade se manifeste apenas o espírito medíocre.
Temos um povo muito alegre – nisso o angolano tem muito a ver com o brasileiro – que se distrai muito facilmente, e nisso o partido no poder soube investir bastante para distrair a atenção das pessoas e cegá-las em relação ao futuro. Não conseguem ver um futuro diferente, então procuram divertir-se tanto quanto podem no meio da sua miséria. E por isso Brasil e Angola têm grandes massas populacionais que acabam por ser exploradas por elites burras, que não conseguem ver um futuro onde a maioria tenha maior poder de compra, até para ficarem mais ricos os que já são ricos, mas sem ter que reprimir os outros e deixá-los numa pobreza sub-humana. Nisso Angola e o Brasil têm muito em comum. Por isso tantos escândalos de corrupção no Brasil envolvem angolanos.
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