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segunda-feira, 18 de setembro de 2017
Aung San Suu Kyi, de Cinderela da paz a Madrasta Malvada
A líder birmanesa foi o rosto do activismo político em todo o mundo
durante duas décadas, mas a perseguição do Exército do país aos rohingya
está a empurrá-la desse pedestal. Muitos querem tirar-lhe o Nobel da
Paz. Ela diz que vai falar sobre o assunto na terça-feira.
A sala do luxuoso Hotel Sheraton, no coração de Manhattan, está cheia
de olhos arregalados e ouvidos mais atentos do que um peão a atravessar
uma rua movimentada. No palco, o arcebispo sul-africano Desmond Tutu
acabou de falar sobre coragem, num dos painéis do fórum Clinton Global
Initiative, e espera agora com ansiedade para ouvir a voz de Aung San
Suu Kyi, em directo a partir da Birmânia. Estamos em Setembro de 2011, e
a rock star dos activistas políticos de todo o mundo vai falar
em público sobre os seus 23 anos de resistência pacífica contra a
ditadura birmanesa – 15 deles passados aprisionada e sozinha em sua casa
por ordem da junta militar. Aung San Suu Kyi começa a falar, a partir da Birmânia, e Desmond Tutu
não consegue disfarçar o entusiasmo na cadeira em que o sentaram nos
Estados Unidos. Ao ver e ouvir a activista birmanesa, o arcebispo
sul-africano transforma-se num adolescente que não sabe o que há-de
fazer a um coração aos pulos. “Amo-te!”, declara-se Tutu. “Tenho de
devolver o cumprimento, também o amo”, responde Suu Kyi depois de alguns
segundos à procura das palavras mais adequadas. Os elogios do
arcebispo são tantos que provocam gargalhadas entre a assistência e
suscitam um reparo do mediador da conversa, Charlie Rose: “Lá está ele
outra vez”, diz o veterano jornalista, depois de Desmond Tutu ter
demonstrado mais uma vez que se deixou enfeitiçar por Suu Kyi, ao
elogiar-lhe “a compaixão e a beleeeezaaa…” Faltavam muitos meses para que os dois se encontrassem pessoalmente
pela primeira vez, mas a química estava à vista de todos – ele, Nobel da
Paz em 1984 pela luta contra o apartheid sul-africano; e ela,
Nobel da Paz em 1991 pelo activismo a favor da democracia na Birmânia,
eram rostos da tolerância contra a violência, da paz contra a guerra, da
luz contra as trevas. Ela, em particular, era há muito a activista mais
idolatrada em todo o mundo, principalmente no Ocidente, tantas vezes
posta ao lado de figuras como Martin Luther King Jr. ou Mahatma Gandhi. Na
quinta-feira da semana passada, seis anos depois daquele encontro
virtual em Nova Iorque, o arcebispo sul-africano voltou a dirigir-se em
público à antiga activista, que é agora a líder política da Birmânia
apesar de o nome do seu cargo não o indicar – como na Constituição do
país não há lugar para uma Presidente que teve dois filhos nascidos em
Londres de um marido britânico, Suu Kyi passou a liderar o Governo no
recém-criado cargo de conselheira de Estado (equivalente ao de
primeira-ministra). “No meu coração, você é uma irmã mais nova,
querida e estimada”, disse Desmond Tutu na quinta-feira da semana
passada, numa carta aberta onde quase nada resta das gargalhadas
nervosas daquele encontro em Manhattan há seis anos: “Durante anos tive
uma fotografia sua na minha secretária, para me lembrar da injustiça e
do sacrifício por que passou por causa do seu amor e empenho em nome do
povo da Birmânia. Você simbolizava a integridade.” O arcebispo
sul-africano reservou o último parágrafo para pôr um ponto final nas
décadas de admiração e fascínio pela mulher que foi elogiada durante
anos como um dos mais extraordinários exemplos de coragem c ívica em
todo o mundo: “Se o preço político da sua chegada ao mais alto poder na
Birmânia é o silêncio, então esse preço é demasiadamente elevado.” O
silêncio a que Desmond Tutu se refere na carta aberta tem um nome:
rohingya. Um nome que nem a líder da Birmânia nem o discurso oficial de
todo o país autoriza que se diga em voz alta: rohingya, a minoria étnica
que vive na zona Norte do actual estado birmanês de Rakhine, na
fronteira com o Bangladesh, e que é tratada pelas autoridades como um
grupo de cidadãos de 4.ª categoria – apesar de viverem há séculos
naquela zona, os rohingya são considerados imigrantes do Bangladesh, não
fazem parte da gigantesca lista de 155 minorias étnicas reconhecidas
oficialmente na Birmânia e nem sequer são tratados pelo nome que o resto
do mundo se habituou a ouvir nos últimos meses. A maioria é
muçulmana, num país onde os budistas dominam a paisagem, mas o muro de
ódio que se ergueu entre os rohingya e o resto da Birmânia é muito mais
nacionalista do que religioso – há muito que a maioria do país preferia
que os quase 800 mil rohingya desaparecessem do mapa, se possível para o
Bangladesh e de preferência para sempre. A situação dos rohingya é
tão dramática que é comum ouvir responsáveis das Nações Unidas e de
organizações de defesa dos direitos humanos a referirem-se a eles como a
minoria mais perseguida do mundo. Na Birmânia, são imigrantes do
Bangladesh que deviam voltar para terra deles; no Bangladesh, onde já
estão mais de 300 mil refugiados, o plano do Governo passa por enviá-los para uma pequena ilha no Golfo de Bengala, a 60 quilómetros da costa, que fica debaixo de água entre Junho e Setembro por causa das monções e não tem uma única estrada. A
provação dos rohingya não é de agora, e é por isso que muitos
admiradores da coragem e da integridade de Aung San Suu Kyi esperavam
que a Nobel da Paz lhes desse a dignidade que reclamam assim que
chegasse ao poder. Mas, um ano e meio depois de a antiga activista
pró-democracia ter começado a governar o país, a situação dos rohingya
só tem piorado – e a mistura de silêncios e de avales indirectos com que
a conselheira de Estado tem comentado as operações do Exército birmanês
no estado de Rakhine já fez com que muitos dos seus antigos admiradores
tenham começado a pedir que lhe tirem o Nobel da Paz. “Alguns dos
meus amigos dedicaram toda uma vida de trabalho à campanha pela sua
libertação dos muitos anos de detenção impostos pela ditadura militar da
Birmânia, e pela restauração da democracia. Celebrámos quando ela
recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1991; quando foi finalmente libertada
da prisão domiciliária em 2010; e quando venceu as eleições gerais em
2015”, escreveu no jornal britânico The Guardian o escritor e activista George Monbiot, dois dias antes da carta aberta de Desmond Tutu. “Nada
disso foi esquecido. Nem isso, nem as muitas crueldades que ela sofreu,
incluindo o isolamento, os ataques físicos e a amputação da sua vida
familiar ”, sublinhou Monbiot. “Mas é difícil encontrar um líder
político nos tempos mais recentes que tenha traído de forma tão cruel as
grandes esperanças que nele foram depositadas”, sentenciou o escritor,
pedindo aos seus leitores que assinem uma petição para tirar o Nobel da
Paz a Aung San Suu Kyi. O pensamento dos seus novos detractores é
simples e linear: como a antiga activista foi elevada na Birmânia e no
Ocidente à categoria de combatente pela democracia e pelos direitos
humanos – o que lhe valeu os prémio Sakharov e Nobel da Paz, entre
muitas outras distinções –, então o mínimo que se pode esperar dela é
que seja uma voz forte contra a ofensiva do Exército birmanês na região
onde vive a maioria dos rohingya. Como isso não aconteceu – e como
entretanto a Comissão de Direitos Humanos da ONU e organizações como a
Amnistia Internacional e a Human Rights Watch afirmam que está em curso
uma limpeza étnica a roçar o genocídio contra os rohingya –, o
compromisso de Suu Kyi com os valores que lhe deram notoriedade em todo o
mundo está a ser posto em causa. Por causa dessa pressão internacional,
a líder birmanesa decidiu não ir à reunião da Assembleia-Geral da ONU,
que começa esta segunda-feira – em vez disso, vai ficar na Birmânia a
preparar uma comunicação ao país sobre direitos humanos. Mas o
silêncio de Suu Kyi em relação aos rohingya pode ser mais complicado do
que parece à primeira vista, diz Gwen Robinson, especialista em política
da Birmânia na universidade tailandesa de Chulalongkorn. Num texto
publicado no diário Nikkei Asian Review, com o título Mitos e realidades por trás da crise em Rakhine, Robinson
diz que a líder birmanesa está entre a espada e a parede, num país onde
os militares continuam a exercer o seu próprio poder, e onde a maioria
da população vacila entre a total indiferença e o ódio em relação aos
rohingya. “Internamente, com o ressentimento popular contra os
rohingya enraizado na história conturbada da Birmânia, até o silêncio de
Suu Kyi perante os excessos militares é visto como uma posição
favorável à odiada minoria, enquanto internacionalmente esse silêncio
tem sido retratado como uma concordância com a campanha dos militares”,
diz a especialista. Segundo Gwen Robinson, Suu Kyi não tem qualquer tipo
de ascendente sobre a forte e enraizada máquina militar da Birmânia e
“tem medo de perturbar o equilíbrio de poder” e de “dar uma imagem de
fraqueza dentro do país” – por outras palavras, uma posição forte contra
os ataques do Exército birmanês no estado de Rakhine poderia precipitar
um novo golpe de Estado militar, e o regresso à estaca zero para um
país que começa a dar os primeiros passos em direcção à democracia. É este também o ponto de vista defendido por outro Nobel da Paz, o timorense José Ramos-Horta, num texto assinado em conjunto com a australiana Janelle Saffin,
sua antiga conselheira. “Ninguém está acima de culpas pelas violações
dos direitos humanos que estão a ser cometidos no estado birmanês de
Rakhine. Mas, ao apontar apenas o dedo à conselheira de Estado, Aung San
Suu Kyi, a comunidade internacional está a permitir que os generais da
Birmânia – que levaram o país à desgraça ao longo de décadas – fiquem em
segundo plano a assistirem ao escalar da crise.” Num artigo em
que sublinham a fragilidade do processo democrático na Birmânia – com
uma Constituição de 2008 que mantém os civis afastados das decisões
ligadas à Defesa –, Ramos-Horta e Saffin condenam as atrocidades, acusam
os líderes militares e pedem tempo para a Suu Kyi: “Dito de forma
simples, criar uma cultura de respeito pelos direitos humanos e pelo
primado da lei – há muito ignorado e violado na Birmânia – não vai
acontecer de um dia para o outro.”
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