sábado, 1 de outubro de 2016

ANDRÉ MATSANGAÍCE: DA REALIDADE HISTÓRICA; DO MITO, ATÉ A MORTE DE UM HOMEM

Por: Barnabé Lucas Ncomo

Os homens eminentes têm a terra por túmulo. (...) Invejai, pois, a sua sorte, e dizei a vós próprios que a liberdade se confunde com a felicidade, e a coragem com a liberdade. E não olheis com desdém os perigos da guerra (...), pois para um homem pleno de brio, a vergonha causada pela cobardia é bem mais dolorosa do que a morte que se enfrenta com coragem, animada por uma esperança comum”.

                                                                                                                            -Péricles-                                                                                                                       

             
Comemorou-se no passado dia 17 de Outubro mais um aniversário do passamento físico de um homem. Passaram então 26 anos desde o dia em que André Matsangaíce, bandido para uns, herói nacional para outros, de pés firmes na terra que o viu nascer, caía em combate por uma causa.
Passados que são estes 26 anos, à nós, nada nos resta senão “ensinar” aos homens de amanhã:
Na história da humanidade jamais existiu bandido ou terrorrista algum que vergou um regime político de um estado soberano. Existiram, sim, homens munidos de ideais políticos, que lutaram contra alguns regimes políticos até a queda destes. É que, longe de ser um atributo político, o conceito de bandido ou terrorista é sempre uma atribuição política.
A curta trajectória política de André Matsangaíce está ainda por escrever. Tem a particularidade de ser uma trajectória singular na história política da humanidade inteira, apenas comparável ao heroismo de alguns filmes de Hollywood. Longe de ser verdade o que se diz em torno deste homem, contra todos os que no início não acreditaram no seu plano, André Mathadi Matsangaíce Dyuwayo, de seu nome completo, poderá ter sido dos poucos homens que, apostado em combater um sistema político então vigente no seus país, pretendeu (re)iniciar uma verdadeira guerra de armas completamente sozinho, contando apenas com a sua coragem e uma pistola do género daquelas que os assaltantes de carros usam para amedrontarem as suas vítimas. A estratégia, inicialmente concebida na sequência de uma mágoa pessoal (e mais tarde tendo em conta o desespero dos demais no mesmo espaço social), consistia em libertar os prisioneiros do Centro de Reeducação de Sacuze na Gorongosa; treiná-los militarmente, por forma a que se constituísse, assim, o primero embrião de um novo exército guerrilheiro que fizesse frente ao totalitarismo político então instalado no país.
De início, embora o plano não tenha logrado sucessos naquele Dezembro de 1976,  a sua ousadia não deixou de ilustrar a sua bravura. Estava (re)instalada nele a semente de luta. Seus actos subsequentes demonstrariam a dimensão de homem que ele era. É que, embora funcionando em regime de prisão aberta, tal como outros Centros prisionais em Moçambique, jamais Sacuze deixou de ter condições logísticas precárias e de absoluto desprezo pela legalidade e pelos direitos humanos, mesmo segundo o crivo do governo do dia. Daí a intenção de Matsangaice de pôr fim a tal estado de coisas, libertando-se a si e aos seus companheiros de infortúnio. 
Face ao malogro de uma outra tentativa (em Janeiro de 1977) de libertar os detidos daquele Centro prisional, desta feita empreendida por uma unidade de ex-militares do exército português e alguns ex-combatentes da FRELIMO[1], sob comando de Pedro Marangoni, Matsangaíce voltaria à carga, desta vez com sucesso, a 6 de Maio de 1977, na companhia de apenas duas pessoas, Manuel Mutambara e Marcos Amade (ambos ex-combatentes da luta de libertação nacional nas fileiras da FRELIMO).
A pergunta que qualquer alma atenta faria perante isto é: o que movia um homem, inicialmente só, e depois acompanhado apenas de outros dois, a fazer frente a uma “instituição de um Estado soberano”? O simples saciar de uma vontade animalesca? Um simples acto de banditismo? Pois, uma vez fugido de Sacuze, porque é que Matsangaíce não se embrenhou na procura de exílio e paz na terra que o acolheu?
As respostas a estas perguntas poderão ser matéria de reflexão individual de cada um, e as conclusões que cada um tirar também pouco importariam para esta reflexão. O que nos importa dizer é que, naquele dia 6 de Maio, a despeito de, durante a confusão que Matsangaice instalou naquele Centro um dos prisioneiros ter sido atingido mortalmente pela guarda prisional, desbaratadas que foram pelos três homens as forças de segurança daquele Centro, mais de meia centena de detidos marchariam de livre e espontânea vontade com Matsangaice em direcção à fronteira rodesiana. Durante a retirada, frente aos amedrontados guardas em debandada, em jeito de aviso, Matsangaíce ainda se pôs a gritar em sua direcção: “ai daquele que tentar perseguir-me!”.
No penoso percurso de 150 quilometros que separa Gorongosa de Odzi (na então Rodésia, hoje Zimbabwe), juntar-se-lhes-ia ainda Oliver Matsangaíce (irmão de André), pois lembrou-se, o homem, que ainda tinha mãe em Chirara e devia por lá passar (com a sua coluna) para visitá-la e matar saudades.
E a despeito de pouco antes da travessia da fronteira entre Moçambique e a Rodésia, Matsangaice e a sua coluna ter igualmente deparado com uma unidade das forças do ZIPA, do que  resultou a fuga e o aprisionamento de alguns dos detidos de Sacuze[2], ao pôr do sol do dia 7 de Maio, de corpo amassado pelo cansaço, pela fome e por uma díficil caminhada, Matsangaíce e a coluna de homens que encabeçava atravessava então a fronteira rumo a Odzi.

Mas, quem foi este homem que virou lenda viva no seio dos moçambicanos do Rovuma ao Maputo?

Matsangaíce foi uma das gotas-de-água mais visíveis num oceano prenhe de dores. O seu nome soou como um tambor em todo o espaço geográfico de Moçambique, sulcou mares e atravessou montanhas, num grito colectivo de milhares de almas unidas por uma esperança comum. Terá sido dos poucos revolucionários no mundo cujo nome se confundiu com todo um movimento humano. E matsangas ficaram todos os que o seguiram de arma em punho ou no espírito. Ficou lenda viva.
Contrariamente ao que o poder político em Moçambique propalou a respeito deste homem, aliando-o às forças racistas rodesianas na concepção da estratégia de luta contra o totalitarismo político em Moçambique, Matsangaíce provinha das fileiras da própria FRELIMO. Terá apenas sabido pôr em prática a estratégia militar guerrilheira adquirida naquele movimento. Nascido em 1950 em Chirara, na província de Manica, Matsangaíce juntou-se à FRELIMO em 1970, tendo feito os treinos militares em Nachingwea, na Tanzania. Era, portanto, camarada dos “camaradas”, e tanto Samora Machel como muitos outros naquele movimento conheciam-no bem.
Na vaga da descida guerrilheira para o sul de Moçambique em 1972/73,  Matsangaice é enviado para o 2º Sector do DD (Departamento de Defesa) em Manica e Sofala, na época, sob o comando de Fernando Matavele (então conhecido pelo nome de guerra de Dique Tongane). Conquistada que foi a independência nacional e incumbido de chefiar a secção de construções na Base do Sector então sob comando dos senhores Johan Jehova e Bernardo Mathimba, no distrito do Dondo, em Sofala, Matsangaíce acabaria prisioneiro no campo de reeducação de Sacuze em Setembro de 1975, na sequência de um imbróglio envolvendo desvios de materiais de construção então sob sua responsabilidade. Segundo relatos da época, o infortunado homem terá sido apenas uma vítima visando salvar a “honra do convento”, pois três casas de três destacados quadros séniores do exército (então em Maputo e muito próximos ao poder central na Ponta Vermelha), estavam sendo erguidas na vila do Dondo com base em materiais desviados do quartel de engenharia militar na cidade da Beira.

Evadido do Centro de Reeducação de Sacuze em Outubro de 1976, Matsangaíce dirigiu-se à Rodésia, país que conhecia desde os tempos de escola, em virtude de seu pai ter aí vivido longos anos. Ia apostado em pedir apoio para uma luta séria contra o regime da FRELIMO em Moçambique, pois para além da dor pessoal de ter sido detido de forma injusta, Sacuze viria a ser, a seus olhos, a prova viva da injustiça social instalada no país. Centenas de cidadãos estavam naquele Centro prisional sem culpa formada, a maioria dos quais por futilidades. Era preciso então ir à luta, pois se a liberdade de um povo alguma vez se confundiu com detenções sem culpa formada; se a independência de um povo alguma vez significou “aturar” impotentemente os caprichos dos mandantes, estava mais que provado que a liberdade dos outros homens no país estava ainda por conquistar. Matsangaíce apercebe-se então da pesada missão que o esperava.

Chega a Ródesia numa altura em que já existia a chamada Voz da África Livre[3], uma emissora clandestina que difundia para Moçambique, na esperança de consciencializar os militares e o povo a revoltarem-se contra a conduta do regime moçambicano. Na época, existiam ainda naquele país algumas forças residuais de um exército português vencido em gabinetes de conversações em Lusaka e outros bastidores diplomáticos. Com a excepção de uns poucos, muitos destes viviam de blufs nos cafés de Salisbúria na esperança de reporem o respeito pela vida humana na terra perdida. Era só muita bravata e pouca acção. Nunca se passou disso. Incapaz de encontrar homens que imprimissem uma dinâmica nas aspirações dos verdadeiros oprimidos na então “terra liberta”, imediatamente após a sua chegada em Outubro de 1976, Matsangaice entra em rota de colisão com muitos. Afirma com convicção, porque conhecia o inimigo a combater, que o que pretendia naquele momento era apenas apoio em treinamento e equipamento militar de moçambicanos para constituir um novo movimento guerrilheiro em Moçambique. Homens, para a sua empresa, iria, ele próprio, trazê-los de Moçambique. Matsangaíce é citando como tendo afirmado que se devia pôr de parte a ideia de que se iria demover a FRELIMO das suas posições autoritárias apenas com propagandas radiofónicas, como o fazia a Voz da África Livre, e blufs nos cafés, como o faziam outros. Embora fosse uma poderosíssima arma para a consciencialização das pessoas, à propaganda radiofónica que se fazia – entendia Matsangaice – tinha que se aliar uma pressão guerrilheira capaz de impôr-se em Moçambique, pois só assim é que seria possível mudar o quadro social e político no país. 

Poucos acreditaram nele. Poucos acreditaram na possibilidade de encontrar-se em Moçambique um número razoável de homens dispostos a recomeçar uma guerra de guerrilha.  Mas Matsangaíce conhecia as linhas com que se cozia o regime então instalado em Maputo. Apenas uma luta armada séria iria ditar as regras do jogo em Moçambique.

Na época, as autoridades rodesianas tinham um outro programa. Embuídos no seu projecto de um comando militar sob seu total controlo, apenas para conter as incursões do ZIPA (Zimbabwe People’s Army),  declinam qualquer apoio ao plano de Matsangaíce ( que era, igualmente, secundado por homens como Orlando Cristina, Pedro Marangoni, Rui Silva e poucos mais).

Perante este quadro sombrio, Matsangaice partiu para a sua guerra por outras vias. Apercebeu-se então que antes de qualquer apoio material, tanto as autoridades rodesianas como outros que tinham interesses económicos em Moçambique e amavam o país, queriam provas de existência de capital humano para a sua empresa. Sabia Matsangaíce que, longe dos seus objectivos, a CIO (Central Inteligence Organization) naquele país estava empenhada não em apoiar a criação de um movimento guerrilheiro genuinamente moçambicano, dirigido por moçambicanos, mas sim um comando tampão por eles dirigido para conter possíveis incursões dos nacionalistas zimbabweanos a partir do território moçambicano. Era preciso então pesar as condições de confrontação e provar a viabilidade do seu projecto. Mas para isso, era igualmente imperativo não espantar a fera, pois, uma vez que as autoridades rodesianas descartavam qualquer hipótese de patrocinar a constituição de um movimento guerrilheiro genuinamente moçambicano, qualquer tentativa de contrariar frontalmente aquela intenção atiraria por água abaixo todo um futuro de ver moçambicanos de armas na mão contra a FRELIMO. O importante, naquelas condições, era jogar a cartada no sentido de driblar tudo e todos. E Matsangaíce fê-lo com destreza, pois uma vez que os homens por si idealizados estariam instalados definitivamente na terra a libertar, sabia que poderia abrir e fechar as portas da Rodésia a hora que quisesse, prescindir do campo de treino de Odzi e imprimir uma dinâmica no teatro das operações em Moçambique, de forma a que não só não lhe faltassem armas e munições, que certamente os seus homens arrancariam das próprias forças governamentais, como também que novos combatentes fossem treinados no próprio terreno das operações no interior de Moçambique. Se havia alguma coisa com que se preocupar, longe de ser Smith, CIO ou ZIPA, era com homens como Orlando Cristina, Jacob Chinhara e Janota Luís que detinham o comando da Voz da África Livre na Rodésia, pois somente aqueles senhores é que poderiam tratar da imagem do movimento no seio das populações em Moçambique, e ninguém mais. A CIO e Ian Smith que se entendessem, eles próprios, com os seus irmãos do ZIPA. 

Orlando Cristina e a sua equipa na Voz da África Livre terão sido dos poucos que cedo se aperceberam da viabilidade do raciocínio de Matsangaíce. Tratariam então de ir entretendo os chefes da CIO e alguns radicais portugueses que, de prantos em prantos nos cafés de Salisbúria, iam-se afogando em whiskys sem nenhuma acção de força viável. Garantiriam ainda de assegurar a Voz da África Livre, impondo nele uma linha editorial favorável ao projecto, pois estava-se numa luta de sobrevivência num confronto em que estavam em jogo dois interesses completamente distintos, todos os meios justifificavam os fins. Mas antes, Matsangaice teria que igualmente provar-lhes a sua capacidade de encontrar homens em Moçambique dispostos a combater, pois desde sempre Cristina e os seus colegas naquela centro emissor igualmente vinham acreditando que o simples apelo à revolta, através daquela emissora, era suficientemente bastante para que o povo e os militares em Moçambique depusessem Machel e o seu totalitarismo.
Matsangaíce empenha-se então:
Sozinho, parte em Dezembro de Odzi munido apenas de uma pistola em direcção a Gorongosa. Ao todo, eram 150 quilomentros de terra acidentada e prenhe de feras. O homem já estava em guerra, mas faria a distância na “paz do combatente”, debaixo de todas as intempéries, pois era preciso renascer, como diria Marangoni trinta anos mais tarde. É que “um combatente se sente renascer quando, afastado finalmente de tudo o que não seja a situação de guerra, caminha através da mata, arma em punho, cantil na cintura, olhos e ouvidos aguçados. Naqueles momentos ele é rei, é lei, é vida e é morte. E perto desta, a vida passa a ter mais valor, mais sabor”.

A proeza não surtiu efeito. Matsangaice cai de novo nas mãos dos guardas de Sacuze que, inicialmente, apenas o acusam de ter saido do Centro sem autorização. Apercebendo-se de que o homen tinha intenções de resgatar os prisioneiros naquele Centro, como medida gravosa tentam conduzí-lo para a cidade da Beira (certamente com destino a Niassa). Durante o percurso para aquela cidade, aproveitando-se de uma distraição dos que o guarneciam, Matsangaice desenvencilha-se para fugir, atirando-se da ponte do Pungué para o leito deste. A despeito de todo o esforço dos guardas, foi completamente impossível recapturá-lo.
Sob todo o perigo naquele matagal onde serpenteia o Pungué, ferido e só, Matsangaice mantém-se firme. Rasteja que nem um réptil em fuga de um incêndio na mata. Reza a Deus e aos seus antepassados que o protejam; até que o breu da noite se instala na zona. Retoma a posição vertical e reinicia a caminhada em direcção a Rodésia. Jura para si mesmo que voltaria para aquele Centro de morte lenta. Desta feita viria munido de uma AK-47 e um autêntico arsenal de granadas ofensivas. Nem que fosse preciso roubá-las algures por aí, os guardas de Sacuze não perderiam por esperar, pois feito louco naquele matagal de Gorongosa, iria mostrar-lhes, à eles, e a Machel, que tal como eles, simples passantes neste espaço geográfico, também estava em Moçambique por “empréstimo” divino, e não por favor ou graça de qualquer líder dos novos tempos.
Dias depois, estava André Matsangaíce recompondo-se nas terras de mbuya Nehanda. Mas não desiste.

Abortada que foi então a invasão sob o comando de Marangoni acima aludida, numa missão que se pretendia de reconhecimento das novas condições no terreno, cinco meses mais tarde, na companhia de outros dois, Matsangaíce regressa então à Sacuzi para ajustar contas com “Machel e seus guardas”. O homem levava consigo o arsenal “prometido”.
O resto é o que está narrado acima.

Consolidado que estava o que queria, em menos de um ano, André Mathadi Matsangaíce tinha sob seu comando cerca de um millhar de novos guerrilheiros em Odzi, pois outros valentes lhe seguiriam para fazer a história. A partir de Agosto de 1979, demonstrando as suas capacidades na matéria da concepção de guerra de guerrilha, para surpresa das próprias autoridades rodesianas, Matsangaice instala-se com os seus homens definitivamente em Moçambique. O projecto de comando tampão fica confuso. Matsangaíce pega nos seus homens para a terra a libertar. Divididos em batalhões de 300, 250 homens, etc., etc., foi espalhando-os entre Chinete, Mucuti, Mabate, Sitatonga, Muxungue e Chidoco em Manica e Sofala. A direcção do movimento sob seu comando instala-se, ela própria, na serra de Gorongosa. A verdadeira guerra recomeça. Emergem frente a companhias de combate homens como Jone Magurende, Vareia Manje, Afonso Dhlakama, João Fombe, Lucas Muchanga, Paulo Tobias, Mário Franque e muitos outros. Muitos se juntariam ao movimento já no terreno das operações. Matsangaice lançava assim a semente da liberdade que idealizava. Para traz ficava Odzi e os famosos biltongs (carne seca rodesiana, muito apreciada). Com o denodado apoio da emissora Voz da Africa Livre, que passou a difundir os comunicados de guerra da RENAMO e a tratar da imagem do movimento junto das populações citadinas em Moçambique, a autonomia na concepção da guerra do movimento começa a solidificar-se. A guerra instala-se no âmago do regime e de  todos no país. Nenhuma estratégia militar governamental a contém. O país começa a cortar-se aos bocados. Quando deram por ela, aqueles que entendiam ter forjado André Matsangaíce, tinham perdido o controle dele. Agora, André Matsangaíce era o rei; era a lei nas selvas de Moçambique. Longe de ser a barreira que se pretendia para conter os inimigos de Smith instalados em Moçambique, Matsangaíce tranformava-se numa outra coisa que, a plenos pulmões, Cristina, Chinhara, Janota e outros na Voz da África Livre espalham por Moçambique e mundo fora. E o sangue foi jorrando regando a terra martirizada; e o sangue foi anunciando a hora do entendimento entre os homens... até que, a 17 de Outubro de 1979, de arma em riste e em pleno combate, André Mathadi Matsangaice é mortalmente ferido.
Os homens endurecem. Não há tempo para amar e ser amado, o tempo é de guerra. O desaparecimento fisico do homem passou despercebido para muitos, inclusivamente para alguns daqueles que o combatiam. Mas a guerra, esta, não morre com o seu líder. Outro estratega lhe sucede e intensificam-se os combates. A coisa complica-se. As autoridades do país não têm mãos a medir. Farto das falsas vitórias forjadas pelos seus próprios generais (que tudo fazem para merecer a admiração da suprema corte instalada em Maputo), o detentor do poder na Ponta Vermelha grita por socorro. Hastea-se nas matas de Moçambique a bandeira do “internacionalismo”: zimbabweanos, tanzanianos, cubanos e russos entram,  deseperadamente, no teatro das operações. O quadro torna-se sombrio, pois a progressão dos matsangas não era enganadora. Alguns oficiais do exército tanzaniano começam a reclamar: “afinal, os senhores chamaram-nos para ajudar-vos a correr com uns bandidos ou para a guerra? Disseram-nos que era uma coisa de dois tempos. Vocês chamam bandido a isto? Isto é guerra, senhores. Não existe bandido algum que faz isto”.
De facto, nem a Cosa Nostra siciliana, nem os barões da droga da Colómbia se assemelhavam aos bandidos de Moçambique. O problema não era o dinheiro. Estes eram bandidos especiais, temperados na dor colectiva:

Em Novembro de 1981, o matsanga Mário Franque e a sua coluna atravessam o Rio Save numa incontida descida para o sul. Nove meses depois, outro, Abel Tsequete, comanda uma coluna de dezenas de guerrilheiros que atravessam o rio Zambeze, instalando-se em Pinda na província Central da Zambézia. Nas matas daquela província começa a dançar-se ao folclore das AK-47. De Milange, Rocha Paulino e a sua coluna, deixando para trás um terreno com uma ocupação consolidada, ruma para Muacanha na província do Niassa. Era a abertura de uma nova frente de combate. Antes, porém, a partir de Abril, Issufo Momad espalhava a lenda a partir de Metaveia na província de Nampula. Era a progressão de “andré mathadi matsanhaice dyuwayo”: consolidada a presença em Niassa, Paulino atravessa o rio Lúrio para  baixo, entrando em Nampula. Em Maio de 1984, desdobrando-se, volta a atravessar o mesmo rio para cima, instalando-se em Muikho com os homens sob seu comando. Cabo Delgado estava alcançado. Enquanto isso, a “dança” nas restantes partes do país é toda ela macabra; funesta.

A par dos estragos que a TVM e os jornais estatizados vão monstrando ao sabor da publicidade e propaganda governamental, em data imprecisa dos fins de 1989, na companhia de um destacado escritor moçambicano, o autor destas linhas, pela primeira vez na história da sua vida, vê, dos degraus da escadaria principal da Associação dos Escritores Moçambicanos em Maputo, um camião militar com a carroçaria apinhada de cadáveres de militares. Todos bem fardados e inertes. Perante o espanto do autor, Panguana exclama: “eh, pá! Olha para aquilo! Não podiam ao menos tapar aqueles infelizes?”.
Era o sinal: André Mathadi Matsangaice Dyuwayo estava às portas da Capital da República. Numa incontida descida para o sul, anunciava a sua chegada aos citadinos de Maputo. Terá sido uma longa caminhada para o homem. Mas chegou.
...

CONCLUSÃO

Como “fim da história”, importa cogitar.  Mas cogitar longamente:
Existem duas formas de análise que permitem olhar para o sentido de um determinado fenómeno político. As duas formas não chegam necessariamente às mesmas conclusões. A uma, podemos denominá-la de análise estanque, e a outra, de análise aberta. Enquanto que na análise estanque (fechada), o público contenta-se e sacia-se com o oficialmente difundindo e popularmente consumido, na análise aberta, fundada numa destemida preocupação de confrontar as fontes (e concluir de forma aproximada ao real vivido) a verdade apresentada na análise estanque ressurge sempre com outro sentido. Esta última forma tem o condão de pôr meio mundo pleplexo, pois habituados a consumir o oficialmente traçado, as pessoas são apanhadas em contrapé.

Para a alegria dos que nós dividem para reinar-nos, vendemos, nós, à nós próprios, a ideia de que jamais somos um povo inteligente, capaz de superar no raciocínio e na destreza um Voster, um Ken Flower ou um Smith por terem sido pessoas cujas riquezas derivaram da exploração e opressão dos nossos irmãos do Zimbabwe e África do Sul. Insultamos, nós próprios, a nossa própria inteligência, sustentando a reducionista ideia de que, junto a um racista, nada mais se pode ser senão um servente e eterno submisso aos interesses do poder racista. Sustentamos, por via das nossas próprias bocas, nossos jornais e nossas rádios que somos uma raça incapaz de idealizar os nossos objectivos e criar meios para atingí-los, superando, na destreza e nos actos, os outros. Sem darmos por isso, para a alegria daqueles que nos aldrabam diariamente, pondo-nos em confronto uns contra os outros, fomos assumindo, perante os olhos destes, que somos inaptos congénitos, incapazes de sobreviver sem o apoio dos seus “nobres” aconselhamentos. Todos nós, para a infelicidade dos nossos filhos, empreendemo-nos nessa pobre tarefa, que se resume na técnica de uns, de nos dividirem, para reinarem, porque nada explica que jornalistas, académicos, analistas e toda a espécie de intelectuais do país, não tenhamos visto o que estava a nossos olhos.

Poucos perceberam, ou fizeram-se de despercebidos, que no seio dos refugiados idos de Moçambique para a Rodésia, a partir de 1974, havia um problema que se levantava, e que qualquer análise do comportamento daqueles, não devia discurar: o jogo de interesses dos deversos grupos.
Na verdade, havia na Rodésia um grupo de uma maioria negra e um grupo de uma minoria branca. O grupo de minoria branca estava, por sua vez, dividido em portugueses assumidos e moçambicanos de origem portuguesa. Estes dois, dividiam-se em detentores de capital (tanto financeiro como fixo) e simples empregados. Enquanto que os brancos da classe média naquele grupo minoritario (os que consideramos aqui de empregados) se dividiam entre os interesses dos detentores do capital e os interesses da maioria negra, os detentores de capital deparavam com dois inimigos a partir daquele país, isto é, a FRELIMO em Moçambique e o ZIPA no Zimbabwe. Na tentativa de combater os dois inimigos ao mesmo tempo, perderiam então toda a guerra acabando por desaparecer do xadrez político da zona. Sobreviveriam então os empregados que se aliaram a maioria negra, pois de mãos dadas com estes, identificaram o projecto que vingaria. Embora tenham-se sujeitado aos interesses do capital, Matsangaice e os que o acompanharam no raciocínio (sejam brancos, amarelos, negros, etc) sobreviveriam porque cedo descobriram que estavam na Rodésia por causa do totalitarismo da FRELIMO e não de uma ZANU ou ZAPU. Daí que mesmo sem estar no poder em Moçambique hoje, atingiram o objectivo principal, isto é, o fim do totalitarismo politico país.

Na verdade, André Matsangaice tinha mil e uma chances de progredir pessoalmente na Rodésia depois da sua primeira fuga de Sacuze em Outubro de 1976. Conhecia a terra e o seu povo, para além de aí ter estudado. Facilmente se inseriria socialmente naquele país, pois da etnia shona (maioritaria naquele país), também ele era. Não-o fez. Escolheu a luta. E a sua empresa está aqui, aos olhos de todos, com outros homens à altura da causa que sempre defendeu. Para a nossa própria surpresa, chegado que foi a hora da paz, a voz de “andré matsangaice” se fez ouvir pelo país inteiro. De forma disciplinada, todos os seus seguidores, num ápice, recolheram as armas aos ombros. Assistimos todos a desmobilização de centenas de milhares dos seus homens pela UNOMOZ. Vimos jovens esfarrapados e famintos da etnia tsonga, shona, nhungue, sena, macua, etc., etc., provenientes dos dois exércitos em intermináveis filas recebendo kits e dinheiro das mãos dos funcionários daquela organização. Jamais nos foi exibido filho de Voster, Ken Flower, ou Smith algum. Vimos filhos de “Chissano”, “Machava”, “Machel”, “Dhlakama”, “Moiane”, “Sithole”, “Muchanga”, “Nalyambipano” etc., etc., naquelas filas. Não nos foi exibido, boer ou português algum a ser desmobilizado, partindo das fileiras, nem do movimento concebido por André Matsangaice, nem do exército governamental. Pelo contrário, “consolidada” que estava a paz de armas, assistimos ao honrar de tanzanianos supostamente internacionalistas que morreram na pátria moçambicana em defesa de coisas que nem sequer sabem. Assistimos famílias zimbabweanas em choros incontidos por filhos que não mais regressaram a casa. E, mau grado o maquiavelismo em torno do incipiente processo democrático moçambicano, tudo indicava que “andré mathadi matsangaice” estava disposto a mostrar ao mundo que não era um bandoleiro qualquer. Ia cumprir com o preceituado nos acordos de Roma, entregando outros 15.000 jovems macuas, tsongas, senas, etc., etc., para a formação do exército único de 30.000 que se pretendia. E o que é mais estranho é que a despeito de o terem rotulado de assassino, terrorista, bandido, etc., milhares de pessoas que se dizia serem suas vítimas votam nos seus seguidores, a ponto de transformar as vitórias de uns em vitórias suspeitas.
Como é que toda uma camada pensante de um país sente prazer de se aldrabar a si própria, pactuando durante anos com inverdades, negando o que está claro a seus olhos?

Este lendário homem, André Matsangaíce, de facto, morreu. Morreu tão pobre tal e qual como quando se foi juntar à luta de libertação de Moçambique na Tanzania. Não deixou casa para a sua mulher e filhos, nem na praia de Bilene, Baía de Ostras ou em Harare. Tal como muitos outros que morreram pela liberdade dos homens no mundo, a sua maior riqueza se confunde com a moral política. Durante o seu tempo de vida jamais se beneficiou de um “vintém” dos dinheiros que outros amealhavam pelo mundo fora, em nome da organização por si dirigida. Está sepultado algures por aí, como qualquer anónimo. Foi um homem de acção no terreno e não de gabinete. Jamais em vida exigiu que se lhe chamasse presidente ou herói nacional, e muito menos que o sepultassem no panteão destinado aos nobres da casa, pois tal e qual é o conceito de bandido ou terrorista na política, o conceito de herói também é uma atribuição politica.

A fotografia que se publica junto a este artigo foi-nos gentilmente cedido por Pedro Marangoni, o tal homem que comandou o grupo que infrutiferamente tentou resgatar os prisioneiros de Sacuze em Dezembro de 1976. Segundo Marangoni, imediamente após tomar conhecimento do regresso triunfal de Matsangaice a Odzi, tratou de ir vê-lo com os seus próprios olhos. Matsangaíce estava estafado, com o corpo dorido e impossibilitado de calçar os pés, de tão inchados que estavam, pois acabava de fazer uma caminhada de 300 quilometros de ida e volta a Odzi. Não sabemos se ao longo dessa caminhada toda Matsangaíce foi recitando os versos do we shall overcome. Sabemos apenas que depois de libertar os prisioneiros de Sacuze ficaria cerca de quatro dias sem poder calçar os pés, por inchados que estavam. E terá sido com prazer que foi sentindo na palma dos pés o sabor da terra que foi dos seus avós durante esses quatro dias – pensamos nós. A despeito do cansaço e pretendendo repousar para recuperar as forças, gentilmente, Matsangaíce ainda acedeu ao pedido de Marangoni de tirar esta fotografia para que, na posterioridade, os que não o conheceram, o “conheçam”.
Eis então, no seu estado de pobreza absoluta, a lenda de que se fala.



NOTAS

[1] Marangoni e os seus homens não lograram alcançar Sacuze. Dias depois de  entrarem no território moçambicano viriam a colidir com uma unidade de guerrilheiros do ZIPA, na época, braço armado surgido das forças do ZANU e ZAPU. Do confronto resultou o grave ferimento e captura do cidadão português Rui Nunes da Silva. Rui Silva viria assim a ser passado ao Estado Moçambicano pelas forças zwimbabweanas e, mais tarde (em Abril de 1979), a integrar o primeiro lote dos sentenciados a  pena de morte por fuzilamento pelo Tribunal Militar Revolucionário em Moçambique.

[2] Destes, alguns voltariam ao Centro, tendo outros desaparecido para sempre, não se sabendo se fuzilados, se novamente fugitivos.

[3] Concebido pelas autoridades rodesianas, no início, as transmições em  português para Moçambique, iniciados em Abril de 1976 pela RBC (Rhodesia Broadcasting Corporation), tinham uma linha editorial um tanto ou quanto racista e contra a independência de Moçambique. Surpreendidos pelos teores das transmições daquela rádio, terá sido graças aos esforços de Orlando Cristina, Jacob Chinhara e Janota Luís que, junto às autoridades rodesianas demonstraram a inviabilidade daquela linha editorial, nasceria assim a Voz da África Livre. Este passou a transmitir para Moçambique com uma linha editorial completamente diferente da RBC, realçando a heroicidade dos moçambicanos na luta pela independência e condenando a FRELIMO pela traição aos princípios que nortearam os moçambicanos para essa luta.

OUTRAS FONTES CONSULTADAS:

Nembo Camacho. Maputo, 15 de Setembro de 1998, entrevista com o autor.
Guedes Gonsalves. Maputo, 8 de Abril de 2002, entrevista com o autor.
Pedro Marangoni, Carta ao autor, Outubro de 2005.
CABRITA, J. M., Mozambique, The Tortuous Roar to Democracy, Palgrave, 2000.
MARANGINI, P., A Opção Pela Espada, Editora Alcance, 2004

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