Provavelmente, o argumento mais forte contra a cientificidade das ciências sociais é aquele que as acusa de não explicarem nada. Explicar, no sentido restricto da ciência, costuma ser entendido como a revelação de relações causais. Isto é, algo está explicado quando somos capazes de demonstrar a existência de causa e efeito, onde o fenómeno em causa seria, na maior parte das vezes, o efeito duma outra coisa. Se esta maneira de conceber a explicação descreve correctamente o que acontece nas ciências ditas duras é uma pergunta que continua sem resposta unânime, embora uma boa parte da filosofia da ciência – sobretudo aquela que se diz “realista” – acredite que sim.
O problema deste entendimento da “explicação” é que coloca as ciências sociais numa situação muito difícil. Os fenómenos sociais resistem simplesmente a este tipo de relações lineares porque eles são, na sua essência, históricos, logo, sujeitos à contingência. A questão não é que as ciências sociais não possam imputar causas. Até porque podem. Por exemplo, a independência de Moçambique em 1975 foi o resultado (efeito) da luta armada de libertação nacional, a qual por sua vez foi o resultado (efeito) da colonização. O problema aqui, porém, é que só esta simples linha causal revela problemas sérios de clarificação do que uma coisa tem a ver com a outra. Para já, a independência como fenómeno é coisa muito complexa. Basta olharmos para outras “independências” em África para percebermos que o termo é vago. Se formulássemos uma “lei universal” do tipo “sempre que houver colonização seguida de luta armada de libertação nacional haverá independência, sendo que independência é o que aconteceu em Moçambique” poderíamos nos expor ao ridículo. A luta armada moçambicana foi uma manifestação específica do conceito mais vasto de “luta armada”. Sendo assim, embora possamos dizer que o colonialismo foi a sua causa, dificilmente podemos esclarecer porque nas nossas circunstâncias ela assumiu as características que assumiu. A partir daí também, e seguindo a mesma lógica, dificilmente podemos esclarecer porque esta luta armada produziu o tipo de independência que produziu.
O que quero dizer é simples: A história é tão irriquieta que é muito arriscado falar de causalidade de qualquer maneira em ciências sociais. Isso não invalida estas ciências. Reforça apenas o que alguns dos seus teóricos têm dito em sua defesa, nomeadamente que mais importante do que descobrir relações de causalidade é “entender” o fenómeno. “Entender” significa produzir descrições ricas do contexto que nos permite afirmar que um determinado fenómeno tinha maiores probabilidades de acontecer e se apresentar como se apresentou. Este reparo não é supérfluo. Ele refere-se a uma característica essencial da ciência que consiste na ideia de que o papel da ciência não é de prognosticar o futuro ou de dizer o que causou determinada situação, mas sim indicar as condições dentro das quais uma determinada afirmação faz sentido, ou não. Muitos cientistas sociais têm grandes dificuldades com isto, uma dificuldade que partilham com a esfera pública.
A dificuldade consiste em algo que num passado recente critiquei aqui no Facebook com enfoque no papel do que chamei de “intuição” na economia como ciência. Vou me citar porque acho os argumentos apresentados então ainda válidos. Escrevi:
“... eu tenho mais confiança na economia do que em economistas (...) Os problemas começam ... quando economistas passam da descrição para o prescritivo. Há um problema de fundo filosófico que já vem sendo debatido – o pontapé inicial foi dado há séculos pelo filósofo escocês, Hume, com a sua famosa tese de que não é possível extrair consequências normativas duma descrição objectiva “no ought from an is”. Esse problema tem a sua origem naquilo que é o ponto forte da economia, nomeadamente a sua capacidade de quantificação. Estatísticas, como todo o cursante de estatística inferencial aprende logo, não provam nada. Ajudam quem as usa a testar suposições. Dependendo do nível de conhecimento que existe sobre uma determinada matéria essas suposições podem ser muito ricas, permitindo a elaboração de modelos da realidade que nos dão a sensação de estarmos a fazer testes naturais. Há um certo sentido em que muito do que acontece nesse processo de quantificação – e correspondentes regressões – consistiria essencialmente no teste de intuições dos pesquisadores com todos os riscos a ele associados e já discutidos pela filosofia da ciência naquela ideia da “sub-determinação” de teorias pelas provas. Esta ideia, da autoria de Quine (e Duhem), consiste na premissa segundo a qual as provas de que dispomos não nos permitem identificar de forma conclusiva as crenças que devemos ter em relação a essas mesmas provas. Um exemplo simples para provocar os opinantes da Pérola do Índico: se tenho cofres vazios e no passado recente investi na EMATUM, na estrada circular e na ponte da Catembe, mas também a economia mundial está em recessão, etc., a conclusão segundo a qual os cofres vazios seriam o resultado da irresponsabilidade económica dum governo parece-me mais sustentada pela minha hostilidade a esse governo do que pelas ‘provas’ (...).
... Para fazer os dados falarem precisamos de muita intuição, muita da qual é ideológica. Em matéria de desenvolvimento este problema manifesta-se de forma aguda porque estamos todos comprometidos com fins bons – o bem-estar – o que transforma a pesquisa numa conversa com os nossos próprios valores, e menos com a própria realidade. Uma das maiores manifestações deste problema é aquilo a que se deu o nome de problema da indução, a saber a expectativa de que o futuro seja idêntico ao passado. Esta tem sido a maior tragédia enfrentada pelos países africanos na sua relação com aqueles que nos querem desenvolver. O desenvolvimento é concebido como o processo através do qual fazemos aquilo que os outros pensam ter feito no passado para sermos como eles. E como as coisas da vida são muito mais complexas e caóticas do que os esquemas simples que põem esse pessoal em movimento a análise abandona o campo da objectividade e torna-se num exercício normativo de chamar nomes: com corrupção nunca haverá desenvolvimento (treta); desenvolvimento precisa de boas instituições (outra treta); desenvolvimento só é possível com democracia (mais outra treta); crescimento económico sólido só é possível com industrialização (idem). Não é que não haja cunho de verdade nessas intuições. Há, mas os contextos precisam de ser esclarecidos; as causalidades precisam de ser melhor formuladas. Acima de tudo, o que dá coerência a estas intuições é apenas a observação do que os desenvolvidos são hoje e a conclusão bastante apressada segundo a qual a ausência de corrupção, as boas instituições, a democracia e os níveis de industrialização de hoje seriam as variáveis que explicariam o desenvolvimento. É preciso muita credulidade para lidar com factos desta maneira.”
Isto é o que me ocorre dizer neste momento em que o país está em crise e temos que nos preparar para as investidas dos “Titio Tirutão Sabe-Tudo” que nos vão dizer com ar grave que, no fundo, tudo isto era previsível. Li ainda esta manhã um texto algo patético do jornalista britânico Joseph Hanlon, que padece deste problema da intuição acrescido dum ainda maior, nomeadamente o do viés da razão retrospectiva. Em presença de sinais e efeitos claros duma crise – ao que parece, o país vai declarar falência (ninguém pergunta, por exemplo, se as condições do perdão da dívida em Setembro de 1999 iriam realmente permitir que o país se “desenvolvesse” – não quero cair no erro da indução, mas acho importante dizer que já nessa altura critiquei isso e continuei a fazê-lo sobretudo com referência ao facto de que um dos problemas desse perdão foi de ter sido feito para que Moçambique pudesse ... se endividar! – de tal maneira que eu, pelo menos – e há dados do FMI acessíveis a todos que mostram isso – considero que mesmo sem as famosas “ocultas” o país caminhava, com a ajuda do FMI, a uma situação insustentável de dívida) – em presença de sinais de crise, dizia eu, está claro para todos nós que este seria o único desfecho possível. E, como não podia deixar de ser, a corrupção não pode faltar nessa equação.
Enquanto abordarmos o país na base da repetição de lugares-comum que nos confortam e nos ajudam a protegermos as nossas crenças, vai ser muito difícil pensar a Pérola do Índico com utilidade. É como no quotidiano: quando a vida aperta, os falsos profetas com as suas soluções simplistas ganham conjuntura. Mesmo sob o risco de ser mal-entendido, a credulidade leva-nos à “mazionização” do nosso país... Não conheço nenhum país, nem mesmo os EUA, que se desenvolveu declamando “Huma Sathanyi!” (sai de mim diabo!).
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