A nossa vida não deve ser postiça
– Ezequiel Mavota, jornalista da Rádio Moçambique que cobriu a assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma
Ezequiel Mavota, jornalista reformado da Rádio Moçambique, foi, na companhia do falecido Emílio Manhique, com assistência técnica de César Fontes, a voz mais ouvida em Moçambique a trazer a boa nova da assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma, em 4 de Outubro de 1992, motivo mais que suficiente para chamá-lo a recordar-nos o que aconteceu naquele domingo, na capital transalpina.
Uma semana antes, estando no Centro Social do Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ), Ezequiel Mavota foi abordado, algo secretamente, para se preparar para viajar. O mesmo foi feito em relação a outros e à direcção do Órgão de Comunicação Social. Três dias depois embarcaram.
“Não nos foi dito directamente o que nos esperava. Foi um quadro do Protocolo de Estado que nos abordou no Centro Social do SNJ (sabes a fazer o quê!). O secretismo era tal que aqueles convivas não deviam saber do que se tratava. Mais tarde confirmámos com a nossa empresa”,conta Mavota sobre a sua primeira experiência profissional. Pessoalmente ia a Itália pela primeira vez e logo para um assunto transcendente.
Na verdade, os três profissionais da Rádio Moçambique, transmitindo em directo a cerimónia da assinatura do acordo, ocuparam um lugar de destaque, primeiro pelo seu carácter mediático, segundo porque à altura do acontecimento (tal como ainda, mas não em escala retumbante) só a RM podia cobrir o país até aos pontos onde ela era único meio de comunicação social.
“Conseguimos fazer uma belíssima reportagem em directo, segundo vimos a saber, que não obstante alguns recursos técnicos que já estavam a entrar paulatinamente, a opção pelo telefone foi a mais acertada, pela qualidade de som que chegava a Maputo, tanto é que as comunicações com Roma nunca tinham sido complicadas, isso assomado à competência do nosso técnico, César Fontes”, lembra-se Mavota.
Já no aeroporto de Maputo, de regresso com o acordo em mãos, os profissionais de comunicação social foram igualmente apresentados, o que lhes deixou empolgados, conforme diz hoje, Ezequiel Mavota, que não se cansa de repetir que a pressão sobre eles, em Roma, saída de Moçambique, era à medida do facto de que todos esperavam por aquele momento.
“Uma das coisas a ressaltar é que os nossos dirigentes moçambicanos estavam claros de que havia muita expectativa em torno daquele acontecimento e a comunicação social era chamada a dar a sua contribuição sem reservas”.
Vinte anos depois do AGP
sentimo-nos “tocados”
Sem reservas, Ezequiel Mavota diz ter notado com certa amargura que o produto que era de todos, que lhes tinha marcado para sempre, 20 anos depois era posto em causa. O acordo estava a precisar de reanimação, porque marcadamente doente.
“Sentimo-nos de certa maneira “tocados”, justamente porque de alguma forma nos momentos decisivos participámos. Estivemos em algumas fases sensíveis da construção da paz”,ajunta.
Ezequiel Mavota encara estes sobressaltos como desafios aos quais nenhum moçambicano está autorizado a desistir, a começar por aqueles que estiveram em Roma, tanto do lado do Governo como da Renamo, incluindo os que se apresentam como amigos do nosso país.
“Não pode haver dúvidas de que o mais importante é a paz, aquela paz genuína, muito embora tenhamos percalços. É preciso saber que esta paz é um edifício que construímos, resultado duma guerra que matou muita gente e não faz sentido que continuemos a nos matar”.
O nosso entrevistado evita fazer paralelismo com o actual diálogo, resultante do não cumprimento do que o Acordo de Roma ditou e o considera precário.
“Justamente porque é consequência do facto de haver pessoas que entendem que sempre que pensam que não estão a ser compreendidas recorrem às armas. As divergências, enquanto pessoas, nunca acabarão. Mas a partir do momento em que o Governo aceitou a assinatura daquele acordo com o então MNR, em minha opinião, é porque quis dar sinal de que considerava aquela formação política como parceira. As portas estavam completamente abertas”.
A fonte exemplifica com as tentativas de consolidação dessa irmandade, através da participação em órgãos de poder existentes no país, daí que “a forma mais avisada era continuarmos a redimir as nossas diferenças de forma civilizada como moçambicanos que somos. Não gostaria que houvesse muitos “Romas”, mas um Roma para todo o sempre. A nossa vida não deve ser postiça”.
O papel de Tomás Mário
e da artista Bertina Lopes
Ezequiel Mavota diz que a cobertura jornalística da cerimónia de assinatura do Acordo Geral de Paz foi um grande desafio à comunicação social moçambicana, mesmo tendo em conta que as empresas jornalísticas haviam enviado para o evento os seus melhores profissionais.
Dirigindo-se à classe, a nosso pedido, Mavota lembra-se dos momentos difíceis em Roma em que não havia onde desencantar qualquer informação, ainda que fosse dos governantes.
“Nessa altura, foi muito importante e, por isso, útil o papel de Tomás Vieira Mário, que trabalhava para a AIM (Agência de Informação de Moçambique) que já se encontrava em Roma, havia muito tempo, deslocado de Lisboa, onde era seu correspondente. Ele já conhecia algumas fontes e cantos”, diz Mavota.
De acordo com o nosso interlocutor, foi Tomás Vieira Mário que lhes levou à casa da artista Bertina Lopes, a moçambicana que foi conhecida nos meandros criativos nacionais como a “mãe das artes plásticas moçambicanas”, que vivia em Roma, onde veio a falecer a 10 de Fevereiro de 2012.
“Afinal, é lá onde os moçambicanos se encontravam. Era como que um Moçambique em miniatura, onde nos sentíamos em casa e dali já era possível todos os dias obter algo novo para os nossos ouvintes”.
O papel de Bertina Lopes, para lá da arte, na opinião do jornalista Mavota, pode ser encontrado mesmo no Acordo Geral de Paz e o nosso entrevistado nem gostaria que os moçambicanos se distraíssem a ponto de vê-la apenas pelo seu lado artístico e de simples cidadã nacional.
“Para mim ela exerceu um papel de relevo no processo, ainda que ela humildemente porventura não pusesse isso em conta”.
O mesmo repete sempre que se quer referir ao actual presidente do Conselho Superior de Comunicação Social. Para ele, numa altura completamente de pensamento monolítico, Tomás Vieira Mário foi capaz de fazer uma cobertura equilibrada, isenta, apenas guiada por um profissionalismo que nos nossos tempos escasseia.
“Tenho saudades desse tempo. É verdade que hoje temos bons profissionais, mas limitam-se a ir para o óbvio, não investigam e aquilo que ouvem é imediatamente notícia, sem mais nada a acrescentar”, lamenta o jornalista Ezequiel Mavota.
Texto de Pedro Nacuo
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