segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O último assalto ao eduardismo


POLÍTICA
 
 27 de Setembro de 2018


Severino Carlos


Com a tacada das prisões, o Presidente angolano conseguiu acenar positivamente para a comunidade internacional e, internamente, consolidou rapidamente o seu poder. Parece estar composto o ramalhete para que as hostes resistentes do eduardismo deponham as armas. O golpe foi de tal modo demolidor que não se sabe aonde irão encontrar fôlego para continuar a resistir ao rolo compressor do novo PR
João Lourenço comemorou o seu primeiro ano como Presidente de Angola em grande estilo. Exactamente num local onde qualquer estadista deseja estar: o palanque da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas. Estar nesse ‘pulpito’ da política mundial é coisa que o seu antecessor, José Eduardo dos Santos – de características muito próximas da misantropia – evitou o mais que pôde. JES optou quase sempre pela política de cadeira vazia nos areópagos internacionais, quando não enviou um representante para o substituir. Nos últimos anos foi Manuel Vicente quem lhe fez a vez.

Não podia, assim, haver maior simbolismo do percurso triunfante trilhado por João Lourenço como novo homem-forte do país. Em Nova Iorque, ele acabou por colocar a cereja no topo do bolo, ao mostrar aos seus pares do concerto das nações que a “sua” Angola será, em princípio, mais moderna e aberta ao mundo. Num ano apenas, João Lourenço logrou abrir realmente o país ao mundo muito mais do que o seu predecessor fez ao longo dos 38 anos em que esteve ao leme do Estado angolano.
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Um ano depois de ter chegado ao poder, o novo Chefe de Estado angolano deu um salto de cavalo no seu percurso. Mas o caminho não está totalmente desimpedido (foto Angop)
Mas está visto que João Lourenço não foi por essa via apenas pelos lindos olhos dos americanos, alemães, franceses ou até mesmo portugueses. Tendo chegado ao poder com os cofres do país literalmente lisos, reunir capital fresco para fazer o país andar era um imperativo até para a sua própria sobrevivência. Por isso, ao comando de uma nova estratégia de diplomacia económica, o novo Presidente angolano não hesitou em fazer de ‘caixeiro viajante’. Cirandou pelas principais chancelarias internacionais em busca de novas parcerias, dispostas a realizarem os investimentos de que Angola necessita para revigorar a sua economia.

João Lourenço não é propriamente um vendedor de ilusões e tem consciência que o petróleo, só por si, não pode ser moeda de troca suficiente neste momento. Sobretudo para o partenariado que se pretende com os países ocidentais. Nem mesmo qualquer arenga sobre as mudanças institucionais tendentes a constituir um ambiente de negócios mais arejado em Angola. Isso pode não ser acessório, e até é necessário, mas é claramente insuficiente.
O Presidente sabia, enfim, que tinha de oferecer algo mais apelativo que o crude. Exactamente aquilo que os próprios angolanos lhe pediram que concretizasse: passar à prática o discurso do combate à corrupção e à impunidade. Por isso é que a sua viagem aos Estados Unidos se fez acompanhar de uma sirene de fundo: no seu ainda curto consulado, a Procuradoria-Geral da República realizou detenções e prisões de figuras do alto escalão do país, membros do partido dominante, o MPLA. Algo que, curiosamente, está nos antípodas do que fez José Eduardo dos Santos, que, numa das suas viagens à maior potência do mundo levou como trunfo a cabeça do seu rival, Jonas Savimbi, que acabava de ser morto em combate pelas forças governamentais.

O que se está a passar em Angola – detenções e quejandos – configura uma limpeza de balneário com a qual João Lourenço faz por satisfazer não apenas os angolanos que lhe exigiam isso a todo o transe, como também se serve dessa acção para sinalizar aos parceiros internacionais que pretende cativar que Angola está, definitivamente, a corrigir os défices que apresentava como Estado de direito e que há segurança para o investimento estrangeiro.
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Retornado da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, João Lourenço encontrará o país em ambiente de quase catarse (foto Angop)
Já não restam dúvidas que no seu regresso a Luanda João Lourenço encontrará um país que o receberá, diga-se, em ambiente de histeria. Um pouco à semelhança do que os romanos faziam ao imperador Julius Cesar, a cada campanha vitoriosa de expansão do Império. Com a tacada das prisões, o Presidente angolano conseguiu, de facto, acenar positivamente para a comunidade internacional e, internamente, consolidou rapidamente o seu poder.

Era realmente importante para João Lourenço, em nome da credibilização do Estado, jogar em antecipação e assestar golpes directamente ao coração e aos símbolos do velho establishment. Assim se devem entender as prisões preventivas decretadas ao antigo presidente do Fundo Soberano e filho do ex-PR, José Filomeno ‘Zenu’ dos Santos, e ao seu principal cúmplice, Jean-Claude Bastos de Morais.
Deixá-los de fora, a “giboiar”, significaria abrir um alçapão que, com o risco do descrédito público, perigaria ou engoliria mesmo todos os esforços de combate à corrupção, impunidade e suas associadas – sobretudo num contexto em que tendencialmente o eduardismo iria mostrar as garras. Isabel dos Santos, com as suas intenções de interpor processos judiciais contra o Estado, já estava na primeira linha desse esforço para pôr a autoridade estatal em xeque. Para trás também está a má memória da derrota do Estado angolano na acção que instaurou em Londres contra Zenu e seu cúmplice suíço-angolano no âmbito da gestão do Fundo Soberano.

Parece estar, pois, composto o ramalhete para que as hostes resistentes do eduardismo se ponham em sentido. O golpe foi de tal modo demolidor que se pode dizer que se ele, o eduardismo, ainda não depôs as armas, estará visivelmente combalido, não se sabendo mesmo aonde irá encontrar fôlego para continuar a dar luta.
Daqui para a frente, é mais expectável que João Lourenço venha a ter mais dificuldades noutras “frentes” internas, a começar por uma sociedade civil cada vez mais exigente. Há desde logo segmentos da sociedade civil que não se comovem completamente diante do rolo compressor posto em marcha para arrasar a corrupção e a impunidade. Eles vêem todo esse processo com olhos muito críticos e farão questão de escrutinar escrupulosamente o cumprimento dos postulados jurídicos, sendo caso disso as alusões que já são feitas quanto a uma ‘selectividade’ do actual processo de prisões – uma crítica que vista à lupa não deixa de fazer sentido.

Aqui há, também, lugar para o velho adágio de acordo com o qual ‘quem se apressa tropeça’ ou, ainda, ‘o apressado come cru’. De facto, em meio à ansiedade para quebrar a espinha dorsal aos corruptos, a ofensiva de João Lourenço não deverá perder de vista que o Estado de direito não é um mero cliché para vender aos estrangeiros. Na caça aos corruptos, a separação de poderes terá de ser respeitada, não devendo o entusiasmo dar lugar à irracionalidade que venha a perverter esse pilar da Lei Constitucional, passando-se de oito a oitenta.
Pior é que foi o próprio titular da PGR a abrir a temporada de caça contra os próprios erros que a instituição venha a cometer, a partir do momento em que admitiu a sua impreparação para fazer a investigação de determinados processos, para si complexos. E aí está o busílis: diante de tais fraquezas, é bem possível que advogados bons e matreiros como alguns dos que assumiram a defesa de figuras que estão neste momento em prisão domiciliar ou preventiva, possam conseguir ilibá-los de qualquer acusação, salpicando a credibilidade de toda a operada montada para banir o mais possível a corrupção em Angola.

Não será por mera casualidade que já haja neste momento quem questione se a PGR estará a agir realmente com toda a independência ou se não estará simplesmente a ir a reboque do Presidente da República com o que fica obviamente posta em causa a separação entre os poderes judicial e executivo.
De igual modo, outro aspecto complicado tem a ver com o princípio da igualdade entre os cidadãos, que pode não estar a ser respeitado em virtude de existir uma amnistia decretada pelo anterior PR, prescrevendo os crimes económicos que tenham sido cometidos até 2015. Por conta de tal fasquia, estarão a ser investigados e detidos essencialmente indivíduos implicados em situações recentes. Sabe-se, contudo, que as riquezas ilícitas mais cabeludas foram obtidas no período anterior a 2015, o que não deixa de impregnar o ambiente de alguma injustiça. Afinal, os figurões que sempre andaram, pornograficamente, a nadar em fortunas escandalosas são os mesmos que permanecem incólumes à passagem da retroescavadora de João Lourenço.

Outra chamada de atenção: o combate à corrupção não deve acobertar lutas e intrigas pessoais, vendetas ou a ambição de uns tantos pelos lugares dos outros. Mas, até prova em contrário, isto é o que por exemplo ficou subjacente às acusações que pesaram sobre o general Geraldo Sachipengo Nunda no chamado caso da “Burla à Tailandesa”. É evidente que o antigo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas foi vítima do cargo que ocupava, com certeza disputado por muitos ‘olhos gordos’. Apesar de ter sido “ilibado” das acusações, a verdade é que depois do sobressalto por que passou, não há detergente que o limpe completamente das nódoas causadas sobre a sua imagem. Nestes casos, a mancha fica sempre. Além de que não é confortador saber que aqueles que procuraram fazer a cama ao general Nunda permanecem por aí tranquilos, sem que sejam ‘importunados’ pela justiça.
Enfim, um ano depois de ter chegado ao poder, o novo Chefe de Estado angolano deu um salto de cavalo no seu percurso. Mas o caminho não está totalmente desimpedido. Não bastam as prisões. Elas hoje fazem o gáudio das massas ululantes; mas se os passivos da economia não forem melhorados, para trazer rapidamente bem-estar material e espiritual à maioria dos angolanos, vencendo-se as desigualdades, em breve o capital ora ganho por João Lourenço se irá esboroar. Então, as mesmas massas ululantes de hoje estarão a reclamar junto aos muros do palácio da Cidade Alta. Oxalá haja condições para que tal não suceda.

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