Ngoenha considera que o diálogo político não pode estar centrado em apenas dois partidos
Em entrevista à Stv, o filósofo moçambicano, Severino Ngoenha falou do novo modelo do diálogo político no país e avançou as linhas que considera fundamentais para garantir uma paz e estabilidade efectivas.
Como é que olha para esta mudança, que já vai no seu terceiro modelo?
Quando houve a primeira semana de tréguas, elas coincidiram com o período em que muitas empresas fecham para irem de férias... Confesso que tive medo que o período de tréguas fosse para dar uma pausa para as tropas voltarem com mais força e vigor. Depois, foi anunciado que a trégua seria prolongada por mais dois meses e dissemos que era preciso respirar. Na altura, lancei uma mini-ideia de que era importante que os académicos deixassem de assistir ao que acontece e tomassem iniciativa de propor alternativas possíveis; que seria bom que nos reuníssemos e tentássemos ver que modelos, que alternativas, que estradas podemos percorrer, para que fôssemos mais participativos na sorte do país, que é nosso, e não nos limitássemos em análises e em críticas, como tem acontecido na nossa acção e presença, no debate político nacional.
E esse apelo foi bem percebido?
Tenho a impressão de que algumas pessoas tentaram aproveitar-se disso. Os que estavam ligados aos partidos políticos, quando ouviram isso, mostraram interesse, porque não querem ficar fora de nada, outras têm muito medo ou receio, outras ainda pensam: o que iremos ganhar com isso? Mas eu queira que fosse um espaço do cidadão. Que as pessoas se encontrassem e não houvesse nenhuma cooperação internacional, não houvesse, à partida, nenhum partido político, mas, ao mesmo tempo, todos fossem informados. Queria que fosse um lugar em que nos encontrássemos não por preocupação com a militância por um partido, mas sim por militância pela paz e pelo nosso país, que é Moçambique. Algumas pessoas iam dizendo “sim, mas...”. Há um medo, um receio, por um lado, pelas práticas que têm sido nossas e comuns em Moçambique desde muitos anos, mas, por outro lado, uma cobardia que habita em nós de um medo excessivo e até pela perseguição e intolerância lá nos espaços que temos para mostrar as nossas ideias. E quando esse espaço não existe, ninguém vai nos dar, temos que reivindicar, lutar por ele, e só com ousadia poderemos fazer isso. A ousadia não esteve presente, depois, os eventos precipitaram-se (ainda bem) e, então, se um debate e nossa intervenção deve haver, não é tanto para aquilo que eu pensava organizar este fórum de pessoas para discutirmos, mas sim para vermos o que vai acontecer depois, o que faremos no futuro. Se chegarmos a um acordo de paz, será uma paz que irei considerar de negativa. Quero com isto dizer que será uma ausência de armas, uma ausência de disparos, de mortes. Mas uma verdadeira paz deve ser a criação de um espaço social e político em que as pessoas tenham ou possam satisfazer as suas necessidades materiais, espirituais, económicas, religiosas, etc.. A construção dessa paz positiva é um trabalho a realizar e não será pela assinatura de acordos pelos dois lados.
Olhando para este diálogo político em que existe interesse das partes, qual seria a diferença entre esses interesses e os interesses do povo moçambicano?
Este é o grande receio que tenho. Nós sabemos que entre a Frelimo e a Renamo houve uma espécie de acordo. Vi, há dias, na STV, um representante da Renamo em Manica a dizer que a população pode circular à vontade, pode ir aos distritos que não haveria nenhum problema. Ele estava muito contente, dava a entender que teria encontrado a solução, e isso é muito bom. Não há duvidas que é óptimo. Mas a que acordo eles chegaram, nós não sabemos. Houve cedências recíprocas? Se houve cedências, de que tipo foram? Imaginem só se as cedências fossem do tipo económico, que nós cedêssemos uma província, um corredor, uma mina de ouro, etc.. Isso satisfaria os homens da Renamo e satisfaria os homens da Frelimo, mas não satisfaria o povo moçambicano. O povo de Moçambique estaria satisfeito parcialmente, porque, de um lado, a paz negativa teria encontrado uma solução, mas a parte positiva, a reconstrução das casas, dos hospitais, o acesso à educação, saúde, a igualdade de acesso ao mercado económico, de trabalho, acesso à saúde não seria satisfeito. Portanto, estaríamos numa paz negativa para todos e simplicissimamente positiva para aqueles que foram beligerantes. O presidente Dhlakama disse há dias, numa entrevista, que haverá toques na Constituição. Ora, o que nós temos assistido na democracia moçambicana e nas democracias internacionais é que nos limitamos em ir votar a cada cinco ou quatro anos, dar praticamente um cheque em branco aos governantes para fazerem e desfazerem. Hoje, na teorização da filosofia política pergunta-se: como podemos repassar o poder novamente aos cidadãos? Isto significa que tem que se criar mecanismos para que, de verdade, as pessoas possam participar na tomada de decisões dos problemas que lhes dizem respeito.
Olhando, agora, para as novas características do diálogo, a novidade é que o processo se centra nesta fase em dois temas: a questão da descentralização e a dos assuntos militares. Aparentemente, os outros temas não foram incorporados ou resolvidos. Qual destes temas é verdadeiramente o tema?
Penso que a descentralização, de certa maneira, engloba em si mesmo a questão militar. Nós somos um país muito centralizado, por questões históricas. Quando chegámos a 1975, ano da independência, só tínhamos um e único partido que ocupou o espaço que deveria ocupar, que governou do jeito que deveria. O tipo de governação que foi feita não se limitava ao topo, mas também às bases. Este partido também entrava nos quartéis, nas forças armadas, na polícia, etc.. Quer dizer que a questão militar é algo que deriva do facto de o país estar extremamente centralizado. Portanto, parece-me que a questão essencial e fundamental é como fazer com que o partido e Estado sejam duas coisas diferentes. E este é um processo que não vai ser resolvido com qualquer acordo, porque é um processo que será criado de forma contínua e paulatinamente. A Frelimo continuará a ser o único partido para muita gente que militava nas células em lugares mais recônditos do país, e a Renamo continuará a ser o representante anti-Frelimo para muitas pessoas por muitos anos. Então, a descentralização significa que nós temos um Estado e partidos que se confrontam ou dialogam em termos de programas que eles querem realizar e as pessoas devem posicionar-se, votar, num ou noutro, não por razões de origem históricas (porque a Frelimo nos libertou, a Renamo trouxe a democracia), nem por razões eternas, porque eu sou da Frelimo e devo continuar da Frelimo, eu sou da Renamo e vou continuar da Renamo, mas porque me apresenta um programa concreto de soluções para os problemas que eu enfrento.
Quando diz que a descentralização é um processo contínuo e longo, na sua óptica, o optimismo do presidente Dhlakama de em pouco tempo submeter o projecto de lei e o parlamento transformar já em lei, nesta componente da descentralização, é muito irreal?
Sob ponto de vista político e jurídico, isto podem fazer em dois, três meses, criar uma descentralização que agrade quer a Frelimo, quer a Renamo. Isso pode chegar ao parlamento e ser aprovado. O problema é a descentralização de facto, na prática, no terreno, onde estão mais de 20 milhões de habitantes. Descentralizar num país onde grande parte da população não sabe ler nem escrever, onde o pai sempre votou na Frelimo porque lutou e trouxe a independência, e outros lutaram contra a Frelimo, por isso, apoiam a Renamo... portanto, é necessário que a descentralização entre nos lugares mais recônditos do país e este processo é muito mais lento e muito mais difícil. E a incidência de toda uma sociedade, toda uma classe de académicos, intelectuais, sociedade civil, é importante para que as pessoas aprendam a tomar novo rumo, não por razões históricas, mas por programas políticos. Onde os partidos não se confrontam a questionar o que foi feito antes de ontem, mas pelos programas que apresentam para resolver os problemas concretos do quotidiano da população.
Então, a descentralização está para além de um documento?
A descentralização é um processo contínuo e vai levar tempo. Há países centralizados no ocidente que falam de descentralização há mais de 50 anos, mas continuam centralizados. É só olharmos para a França...
Qual é o seu entendimento do facto de se dispensar os mediadores internacionais e, dias depois, anunciar-se que a comunidade internacional retoma o diálogo com o papel de assessoria. Existe alguma diferença?
Nas nossas famílias, às vezes temos problemas, conflitos, e em alguns casos resultam de violência. temos assistido a muitos casos desta natureza recentemente no país, desde as classes consideradas mais nobres até às mais humildes. E como é que resolvemos os problemas? Resolvemo-los em casa e, quando não conseguimos resolver entre nós, chamamos os pais, tios e avós para ajudarem. É claro que se existirem condições para que os moçambicanos resolvam o problema internamente, não há necessidade de se chamar os vizinhos. O problema surge quando não conseguimos encontrar solução de forma contínua e termos paz no seio familiar, isso é que nos leva a procurar ajuda. Bater à porta e pedir ajuda é reconhecer que sozinhos estamos com dificuldades. A história mostrou que estamos a passar por um processo contínuo de dificuldades. Isso levou a que as conversações entre a Frelimo e a Renamo fossem à Roma e que tivessem mediação internacional. Não obstante, caímos no mesmo problema e passamos por mediações nacionais e internacionais. Não vou dizer que a mediação internacional ou nacional é boa, vou dizer que devemos fazer tudo o que for necessário para que esta paz efectiva que é muito almejada chegue logo, porque ela é condição para a vinda da paz positiva. Se conseguíssemos resolver o problema entre nós, mostraríamos que nós temos problemas e conseguimos resolver os problemas internamente. Temos que ter capacidade de avaliar a situação, se estamos ou não em condições de resolver o problema sozinhos. Se estamos, iremos, caso não, teremos que pôr o orgulho de lado e pedir ajuda.
Qual é o seu pensamento? Temos capacidade de resolver o problema sozinhos?
Primeiro, quer dizer que os próprios beligerantes não estão em acordo entre si. A posição da Renamo sempre foi a intervenção dos mediadores exteriores, e esta é uma condição para que o debate esteja numa condição positiva. Quando os intervenientes não estão de acordo sobre as premissas pelas quais o debate vai ser levado a cabo, nunca vai chegar a uma solução positiva, temos que satisfazer isto. Basta que um beligerante exija como condição a participação de outros, isso significa que esses outros devem ser convocados. Em termos de estatuto, tem que se discutir como será a actuação deles, se será como mediadores ou assessores. Para mim, o mais importante não é a presença nem o estatuto que eles têm, mas sim que nós criemos condições que nos levem a um diálogo que nos faça sair do conflito e avancemos para a segunda etapa, que seria, como me referi anteriormente, a paz positiva.
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